quarta-feira, 31 de julho de 2013

UM RETORNO ÀS CATACUMBAS

As catacumbas eram minas de pozzolana abandonadas. A pozzolana era uma argila, que, misturada com cal e água, dava um material muito usado nas construções de alvenaria. Era o equivalente do nosso moderno cimento. As galerias destas minas formavam uma rede intrincada e complexa. Quem não a conhecesse, corria o perigo de não encontrar mais o caminho da volta.

A catacumba era, portanto, um lugar seguro, mas era preciso conhecê-la bem. E os cristãos a conheciam melhor que as autoridades romanas. Os agentes do “Serviço Secreto” do Império sabiam da sua existência, mas não se atreviam a penetrar em seu interior. Os cristãos, ao contrário, conheciam muito bem como entrar e como sair dela sem se extraviar e sem o risco de cair nas mãos dos agentes policiais romanos.

Uma catacumba é formada por quilômetros de galerias estreitas que se cruzam e entrecruzam constantemente, constituindo o conjunto de um refúgio ideal para quem necessita de segurança.

Uma das “ordens menores” da Igreja católica tem o nome de “ostiariato”. O “ostiário” era a pessoa encarregada de vigiar a entrada, o “ostium” de uma catacumba para impedir que a Assembleia reunida em seu interior fosse atacada de surpresa pela polícia romana.

A Comunidade Cristã só ocupava uma pequena parte de uma catacumba, o espaço próximo à entrada, mas, em caso de urgência, sabiam como sair pelos “fundos”. Havia mais que um modo de entrar numa catacumba. E os cristãos os conheciam a todos.

Por que esta familiaridade das Comunidades Cristãs com o ambiente de uma catacumba? Porque o núcleo mais compacto e numeroso das Comunidades Cristãs da época era composto de escravos e de membros da plebe romana. Eram todos, ou em sua maioria, homens e mulheres que viviam à margem dos setores mais opulentos do Império. Uma “mina abandonada” era o que mais se parecia com a sua condição social.

Relembrando a palavra de Jesus: “O Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20), um cristão obrigado a procurar um espaço social fora de Roma e longe do “capitólio”, só podia sentir-se à vontade no ambiente aparentemente “morto” de uma “catacumba”! A Igreja das Catacumbas conseguiu sobreviver a duzentos anos de perseguição porque seus líderes descobriram que o “cimento” que une os membros de uma Comunidade Cristã não é o poder de uns poucos e a submissão passiva das maiorias, mas o amor com que cada um dos seus membros ama os seus irmãos e suas irmãs em Cristo.

Um cristão que ia a uma catacumba para se encontrar com outros membros da sua família espiritual sabia que podia confiar, sem pestanejar, em cada um dos que ali se encontravam. Sem esta confiança a Igreja das Catacumbas não teria conseguido sobreviver a 200 anos de perseguição!

A confiança de cada membro de uma Comunidade Cristã nos demais membros desta Comunidade é muito mais fundamental e imprescindível do que a presença de uma autoridade forte. A Igreja das Catacumbas deve a sua sobrevivência ao amor fiel com que seus membros se amavam uns aos outros. Um “informante” do “Serviço Secreto” romano teria morrido de vergonha só com a ideia de entregar à brutalidade de um carrasco uma só destas pessoas maravilhosas que o tinham acolhido com tanto amor!

Voltar a nos encontrar novamente reunidos no recinto de uma Catacumba não é essencial. Mas é absolutamente imprescindível retornar ao “espírito” que animava os homens e as mulheres que lá se reuniam! Uma Igreja, em que o que mais importa é confiar no “padre” ou “pastor” do que no “vizinho” ajoelhado a seu lado, não merece a mesma confiança e a mesma fé que um cristão depositava em sua Igreja, quando esta Igreja ainda era “pobre”, fraca e marginalizada.


In “Se não vos converterdes...” – manuscrito de Pe. José Marcos Bach, SJ.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

METACIÊNCIA, FILOSOFIA E TEOLOGIA

Em nossos dias a melhor filosofia está sendo feita por físicos e biólogos. A palavra metafísica desapareceu do vocabulário. Em seu lugar entrou em uso o conceito de metaciência.

Metacientista é um cientista que não se contenta com experimentar, observar e constatar. Transforma o conhecimento adquirido em ponto de partida para a aquisição de novos conhecimentos.  Na mente de um Einstein ou de David Bohm uma descoberta científica é menos um termo de chegada do que um ponto de partida. O nome que se poderia dar a esta nova postura científica me parece ser este: Ciência Especulativa.
 
Todo bom cientista é também, a seu modo, um filósofo. Temos motivos para depositar esperança no desenvolvimento da especulação científica. Ciência e Filosofia se encontraram e estão avançando de mãos dadas. Só resta que o mesmo aconteça com a Teologia.

Falar sobre Deus ignorando o universo material é o mesmo que criticar ou enaltecer a figura de um artista ignorando suas obras. Que ideia teríamos de Miguelangelo ou de Da Vinci não fossem a Capela Sixtina e a Última Ceia? Fazer teologia (Theologein, em grego) é mais do que pensar sobre Deus, é falar de Deus. Fazer teologia é muito mais do que debruçar-se sobre o texto de Livros Sagrados. Para merecer o título de teólogo não basta publicar de quando em vez um livro ou um artigo. A atividade de um bom teólogo inclui a pregação. Jesus, o maior teólogo de todos os tempos, que falava de Deus como antes dele ninguém o fizera, era também o maior e o mais eloquente Pregador que a história conhece.

A palavra pregar vem do termo latino praedicare, que por sua vez é sinônimo de predicere, predizer. Predizer significa dizer ou falar antes. Antes de quê? Antes da ação correspondente.

Na antiguidade judaica era a figura do profeta que desempenhava tanto a função de pregador quanto a do crítico social. Cabia a ele separar o que no comportamento do povo e na atitude política dos governantes tinha futuro e o que não merecia fazer parte dele. Os profetas de Israel eram homens que possuíam uma visão holística da vocação messiânica do seu povo. Viam o Todo (Holos, em grego) em cada “parte” e cada “parte” na perspectiva deste Todo.

Para o apóstolo Paulo este Todo não possuía conotação política, mas, sim, histórica e psicológica. Era para ele o pleroma, a plenitude, um estado de espírito, fruto da união definitiva da alma com Cristo. Símbolo deste estado de perfeita felicidade é o amor que une entre si um casal cristão. A força santificadora do matrimônio cristão reside no seu caráter sacramental, na sua transparência e capacidade de manifestar de forma simbólica toda a beleza, grandiosidade e generosidade com que Deus ama a humanidade toda.

Na Pessoa de Jesus Deus assumiu um compromisso (Aliança) com criaturas aparentemente incapazes de compreender o que estava acontecendo. “Nesciunt quid faciant”. “Não sabem o que fazem”. Nem sequer sabem o que querem. Comportam-se como se fossem cataventos. Voltam-se sempre para o lado donde sopram os ventos aparentemente mais favoráveis. Gastam suas melhores energias trabalhando, ou, então, farreando, de sorte que já não lhes restam mais forças quando aparece uma oportunidade de se entreter na oração com o seu Deus. São eles que compõem a quase totalidade dos que se dizem cristãos. Por incrível que possa parecer, é esta, precisamente esta, a humanidade da qual Ele, o próprio Deus, quis tornar-se membro. Com este passo Deus se privou da liberdade de contentar-se com as riquezas infinitas do seu próprio Amor Divino. Como um pai que a certa altura da sua carreira tem que assumir os “amores” de seus filhos, Deus se comprometeu em Jesus a não ignorar mais a vida amorosa dos que escolheu para serem companheiros e irmãos do seu Filho.

Fazer teologia significa falar com carinho e amor deste mistério insondável que é o Amor Divino. Isto não se faz formulando teses ou repetindo pela enésima vez o que já foi dito. Teologia se faz em assembleia e não em gabinetes de trabalho. Teologia se faz orando. Tudo o que a mera reflexão é capaz de nos oferecer é palha, comparado com o que o sorriso puro de uma criança é capaz de nos ensinar. “Agradeço-te, ó Pai, porque revelaste o essencial do teu projeto de amor aos pequeninos e humildes” (Mt 11,25).


In “A Igreja que eu Amo” Livro de Pe. José Marcos Bach,SJ – Ed. Própria.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

CARACTERÍSTICAS DA IGREJA PRIMITIVA

É falsa a crença de que Jesus, ao se despedir do cenário histórico, tenha legado a seus discípulos um Projeto mal definido ou até se tenha abstido de se preocupar com a continuação da obra por Ele iniciada.

“Não vos deixarei órfãos, mas estarei convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). Esta palavra de Jesus foi perdendo força e credibilidade à medida que os apóstolos foram morrendo e seu lugar foi ocupado por “representantes de Cristo na terra”.

“Enviar-vos-ei o meu Espírito e ele vos ensinará na hora certa o que deveis de dizer” (Lc 12,12). Também esta palavra de Jesus acabou se perdendo em “ouvidos de mercador”!

Os primeiros cristãos não se sentiam órfãos, nem se comportavam como tais. Paulo se dizia apóstolo de Cristo, mas nunca se fez passar por “representante de Cristo”. Paulo nunca se atribuiu outra “autoridade” que aquela que lhe conferia a sua “incondicional fé em Cristo”. No fim de sua sofrida existência, diz com orgulho: “Completei a carreira, guardei a fé”  (2Tm 4,7).

O Cristo que o apóstolo Paulo pregava não é um Cristo ausente e distante da vida concreta dos membros de suas comunidades. É um Cristo que se alegra com os que estão alegres e sofre com os que sofrem.

Um bom retrato da Igreja apostólica nos é fornecido pelo livro Atos dos Apóstolos! São várias as características desta Igreja:

- Ela era doméstica, pois os seus membros se reuniam em famílias. No início o Templo de Jerusalém e a Sinagoga eram frequentados  pelos cristãos, mas após a destruição do Templo e a dispersão dos judeus, as comunidades cristãs passaram a se distanciar cada vez mais da sinagoga e do judaísmo, adquirindo personalidade religiosa própria. As “igrejas” fundadas pelo apóstolo Paulo eram pronunciadamente domésticas  e seus líderes eram chefes de família. Uma nota distintiva desta “igreja” era a posição destacada que nela ocupavam as mulheres. Lídia (Atos 16,14) e Priscila (Atos 18,2) são mulheres, que devido à sua posição social, muito contribuíram para a difusão da Fé Cristã. Ao traçar o perfil do bispo em sua carta a Tito, Paulo descreve-o como “marido de uma só esposa” (Tito 1,6).

- Ela era eminentemente “comunitária” e em certa medida até “democrática”. Dos seus membros o povo dizia: “Vede como eles se amam!”. Quando o apóstolo Pedro tomou a decisão de preencher o número dos “doze”, confiou à Comunidade a tarefa de escolher o substituto de Judas, o Iscariotes.

- Outra característica das primeiras Comunidades Cristãs era a crença na volta iminente de Cristo para completar a sua obra e iniciar a instauração do Reino de Deus. A “parusia”, isto é, o retorno de Cristo, era tido como iminente. Algo que poderia acontecer ainda em vida dos mais jovens. Esta crença motivou muitos “proprietários” de terras a vendê-las e a depositar o dinheiro, assim obtido, nas mãos dos Apóstolos. Tudo o que os membros da Comunidade possuíam era considerado “propriedade comum”! Este “comunismo” da Igreja Primitiva diferiu num aspecto fundamental do “comunismo” de Karl Marx, pois nele o direito de gerir os bens e de distribuí-los era exercido pela Comunidade, representada na figura do “diácono”, em lugar de confiar esta função ao Estado, representado na figura do “Comissário”!

- Na Igreja Primitiva ainda não havia espaço para a figura do “sacerdote”. O apóstolo Paulo se autodefine orgulhosamente como apóstolo de Cristo, mas não há uma única passagem em suas cartas em que se defina como “sacerdote”!

A “missa”, como a conhecemos hoje, só foi inventada mais tarde. Os fiéis se reuniam em “Assembleia” e a “Celebração Eucarística” era definida como “Banquete”, como “Ceia”, pois era realizada no fim do dia. A palavra “ágape” (= “banquete”) era empregada para definir o que se estava realizando. A ideia de definir como “sacrifício” o que se estava fazendo, só apareceu mais tarde! O “culto litúrgico” era visto, antes de tudo, como repetição simbólica do que acontecera no Cenáculo em Jerusalém e que passou à história com o nome de “Última Ceia”. Só bem mais tarde este gesto litúrgico passou a ser interpretado como símbolo do “sacrifício de Cristo na cruz”!

A diferença entre a atmosfera que reina num banquete e a que caracteriza a execução de uma sentença de morte é absoluta e total. Por isso pode-se afirmar que os cristãos da Igreja Primitiva estavam mais próximos da verdade e do pensamento de Jesus do que os atuais “rezadores de missa”.

Jesus não morreu na cruz na condição de “vítima” da maldade humana. Entregou-se livre e espontaneamente nas mãos de seus inimigos e algozes.

“Por isso o Pai me ama porque eu dou a minha vida e novamente a reassumo! Ninguém m’a tira e eu a ofereço espontaneamente” (Jo 10,17). Mais que vítima da maldade humana Jesus foi “vítima” de seu imenso amor pelos homens. É por isso que os primeiros cristãos foram mais sábios do que nossos teólogos de hoje. Cristo encerrou em caráter definitivo a era dos “sacrifícios” dando início a uma “Nova Era”! Ninguém tem mais o direito de tirar ou de invadir a vida de alguém!

Do manuscrito “SE NÃO VOS CONVERTERDES...” de Pe. José Marcos Bach, SJ

terça-feira, 9 de julho de 2013

ENTREVISTA COM O NOVO PAPA

A ciência progrediu aos saltos nestes últimos decênios. A impressão que se tem é de que a Igreja católica não conseguiu acompanhar este avanço. O que Vossa Santidade pensa a respeito deste assunto?

Papa: “A complexidade do universo que os cientistas nos estão revelando é tal que nem sequer eles mesmos conseguem compreendê-lo. A crença de que o mundo científico é povoado por gênios e que o mundo da fé é povoado apenas por reacionários, fundamentalistas fanáticos e analfabetos, não corresponde à verdade. A ideia que a maioria dos nossos intelectuais tem da natureza do tempo é a mesma que dele tinham Aristóteles ou Galileu. São muito poucos os que se deram conta do caráter revolucionário das descobertas de Einstein ou das implicações práticas da Teoria Quântica. Também no campo científico é possível encontrar pessoas que se negam a pensar mais longe do que o horizonte das suas conveniências. Em se tratando de formular teorias, somos todos, cientistas e teólogos, mais corajosos do que quando somos convidados a pô-las em prática.

A verdade é multiforme e se pode chegar a ela por mais que um único caminho. Os meios de chegar até ela são diferentes, mas o resultado final é um só e consiste na consciência de ter-se aproximado um pouco mais da Verdade Suprema. Cientistas, filósofos, místicos e poetas só merecem fé se souberem respeitar uns aos outros.

O diálogo da ciência com a fé não pode ser conduzido por especialistas deste ou daquele ramo do saber humano. Não pode ser confiado a pessoas acostumadas a pensar sempre numa única direção. O fato de sabermos hoje que o universo é muito maior e bem mais complexo do que se podia supor uns poucos séculos atrás, nos convida a sermos mais humildes e menos prontos a proclamar como definitivo o que na melhor das hipóteses não é mais do que uma pequena bolha de saber na superfície de um oceano de interrogações para as quais ainda não temos resposta satisfatória. Considero a curiosidade intelectual aspecto fundamental da fé de um autêntico cristão adulto. Sou dos que acreditam que nos encontramos aqui neste planeta para aprender algumas lições que só a passagem por ele nos pode ensinar.

Quem de nós não sabe por experiência que até o erro pode ensinar alguma coisa!? Errar é humano, mas só na medida em que dele nos servimos para aprender como não se deve proceder. O medo de errar pode ser tão nocivo à fé quanto a impostura a céu aberto. Não somos infalíveis nem precisamos da infalibilidade para sermos cientistas ou cristãos honestos e merecedores de respeito. Basta que sejamos humildes servos da Verdade, cada qual a seu modo e dentro do campo da sua competência”.


Do manuscrito “O NOVO PAPA” de Pe. José Marcos Bach, SJ