quarta-feira, 27 de agosto de 2014

AUTOCONSCIÊNCIA PURA  

Reduzido ao essencial, um ser humano pode ser descrito como autoconsciência pura. Este fenômeno é experimentado raramente. Comigo aconteceu anos atrás quando aguardava num hospital, após uma cirurgia, a hora de poder voltar ao quarto. Durante a cirurgia não tive consciência de nada nem de mim, nem do que acontecia comigo ou fora de mim. Blackout, apagão total: é assim que posso definir o estado de anamnese em que me encontrava. Nem sequer a consciência de não existir me tinha restado. Não só não sabia quem era, mas sequer sabia que era ou não era alguém.

Durante o período pós-operatório de recuperação da consciência continuei a não ter consciência de nada, com uma exceção: eu sabia que existia. Que me encontrava no centro de um “halo opaco de luz”. Era uma luminosidade crepuscular. À pouca distância de mim este crepúsculo era absorvido por uma espessa parede de trevas impenetráveis. Eu era apenas autoconsciência, isto é, consciência de mim mesmo. Nem medo, nem preocupação me impediram de aguardar tranquilamente o retorno à vida normal. Tanto os sentidos como a razão tinham entrado em licença para que eu pudesse entrar mais plenamente na posse de mim mesmo. Naquela hora eu só pertencia a mim e a mais ninguém. Eu só era eu e nada mais do que o único ser do mundo com quem tinha que aprender a conviver com dignidade e em pé de igualdade.

Mais tarde descobri que esta experiência, além de ser fundamental, pode ser reproduzida em gabinete. Já os antigos sábios da Índia recomendavam a prática da meditação como meio de ajudar uma pessoa a se descobrir e a se encontrar consigo mesma.
           
Onde um budista preconiza os méritos da meditação, São João da Cruz passa a indicar outro caminho, o da contemplação. Faz questão de eliminar do seu conceito de contemplação qualquer interferência das faculdades inferiores de natureza humana, como os sentidos e a razão. De acordo com o seu modo de ver, a relação da alma com seu Bem-Amado não é o fruto de um cálculo bem feito e não resulta de um modo equilibrado de distribuir tarefas. Segundo ele, o amor não é o resultado de um pacote de contas bem feitas.
           
O amor eleva a alma e a coloca acima de tudo e fora do alcance de outra tentação que não seja a de se perder cada vez mais neste oceano de Amor sem limites que é o Amor Divino. “E assim a ditosa alma que tem a grande ventura de ser tocada por este Amor, tudo saboreia, tudo experimenta e faz tudo quanto quer, com grande prosperidade, sem que alguém possa prevalecer diante dela nem coisa alguma venha a atingi-la, porque a essa alma se aplicam as palavras do apóstolo: “O espiritual julga todas as coisas e por ninguém é julgado” (I Cor 2,15) -  (São João da Cruz – Obras Completas p. 853).
           
É extremamente perigoso tratar como doença um fenômeno como o da “Emergência Espiritual”. Não são doentes os que entram em crise de “Emergência Espiritual”. São, pelo contrário, os que estão por descobrir uma nova dimensão da saúde total.
           
A fé, como a entende João da Cruz, não é nem distinta da noite em que opera, mas ela é esta “Noite Escura”. É assim que se deve entender o pensamento de João da Cruz. A fé nos oferece um conhecimento que em tudo se assemelha ao que nos proporciona uma noite escura. A escuridão de uma noite nunca é total. Animais noturnos se aproveitam deste fato para cuidar da sua sobrevivência.

A fé não mergulha a pessoa em trevas, mas oculta e esconde parte da verdade, dando assim à inteligência do homem tempo de avaliar e integrar em sua vida concreta a parcela da verdade revelada acessível. A fé está a serviço da ação mais do que do conhecimento teórico. Ela enriquece a vida toda de uma pessoa e não apenas a sua inteligência. De um cientista não costumamos exigir que seja um homem de fé. De um político, sim, exigimos que creia no que diz e faz. Dele também exigimos que deposite em seus eleitores e auxiliares a mesma fé que deposita em si.
           
A fé nasce não da ignorância, mas resulta de uma forma superior, mais arguta de compreensão da realidade. Representa, portanto, mais que o fruto de raciocínios exaustivos, conduzidos com rigor. O ato de fé é um ato de inteligência, tão digno de respeito e de confiança quanto o raciocínio lógico mais bem feito.

Padre Marcos Bach

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA
Epikéia é uma palavra que não ocorre no texto da encíclica papal Veritatis Splendor. O conceito como tal não é rejeitado, mas é tratado de forma implícita e com grande reserva. Um grupo de moralistas alemães publicou um livro onde põem a nu o medo que os homens do Vaticano têm da liberdade de consciência do Povo de Deus. Nos documentos oficiais do Vaticano o povo é tratado com suspeita, como se no campo moral não houvesse condições de tomar decisões sem o apoio maternal da Igreja de Roma. Até mesmo teólogos moralistas de notória competência e comprovada fidelidade à Igreja foram contemplados por Roma com um claro “puxão de orelhas”.
O Magistério Romano teme a ignorância do povo católico muito menos do que a possibilidade de perder a autoridade sobre a consciência deste povo. As massas são volúveis e podem trocar de partido a qualquer hora. Todo burocrata tem medo de tudo que possa baralhar os seus esquemas consagrados. Para ele nada mais sagrado do que a tradição. Nenhum sistema autoritário admite que alguém possa pensar em depositar menos confiança na palavra do grande guia e condutor do povo do que em sua própria consciência. É próprio de sistemas totalitários estabelecer normas rígidas tão claras e precisas que não sobra espaço para a exceção.
Desde os tempos de Aristóteles os estudiosos da Ética se acostumaram a opor ao rigor da lei o princípio da Epikéia. Pode-se definir a Epikéia como inclinação a tomar sempre o partido da liberdade e da caridade toda vez que as circunstâncias o exigirem.
A justiça, a caridade e o respeito à liberdade de consciência não permitem que alguém tome sempre o partido da lei. Toda lei é relativa a uma situação e a um determinado conjunto de valores. Por isso não é lícito cumpri-la de modo mecânico e cego. Não é função do legislador detalhar estas circunstâncias. É tarefa do súdito discerni-las. Cabe a ele definir em última instância se lhe é permitido cumprir a lei ou não. Ser-lhe-á mais fácil optar pela resposta correta se tiver em mente que toda lei possui um espírito e uma letra. Nenhuma lei cai do céu tão perfeita que não necessita de eventuais corretivos.
A lei que proíbe o uso dos métodos artificiais do controle da natalidade não partiu da mente de Deus, nem direta, nem indiretamente. É uma lei humana. Apoia-se em argumentos filosóficos, já que neste campo a Palavra de Deus Revelada é omissa. Ora, em filosofia uma verdade vale o que valem os argumentos em que se apoia. O lado frágil e problemático de toda a doutrina da Igreja sobre planejamento familiar é a ausência de apoio teológico e escriturístico. 
Se os argumentos são discutíveis, a tese que se destinam a sustentar também é discutível. Aí vem a pergunta que raramente aflora nas discussões: pode o papa impor em nome da lei de Deus como obrigação moral uma tese filosófica tão discutível quanto a que sustenta a imoralidade de uso de métodos contraceptivos, arbitrariamente taxados como artificiais, isto é, como antinaturais? E a razão, que lugar lhe resta em tudo o que se refere ao uso dos meios mais apropriados de controle da natalidade?
Uma lei não se pode aplicar ao pé da letra. Por trás de cada lei está a intenção do legislador que é a de proteger ou promover os interesses do bem comum. Depois vêm os termos em que é formulada. Estes podem ter um sentido claro. Mas podem ter também um significado ambíguo. O sentido das palavras pode muito bem mudar com o tempo. Permanece a palavra, mas o seu sentido já não é mais o mesmo.
Por fim, vem a interpretação da lei. Quem pode interpretá-la? É só o legislador ou o representante da autoridade? E o súdito fica apenas com a obrigação de cumpri-la? São só os superiores que têm condições de saber o que é bom para o povo? O interesse pelo bem comum é privilégio reservado às autoridades? Será que se pode tratar o povo como se no meio dele não houvesse ninguém capaz de se governar por si mesmo?
O bom filho não é necessariamente aquele que pede a bênção do pai para tudo. Não devemos cometer o erro de identificar os interesses da Igreja com os de um determinado papa. Cada um deles tem o seu modo peculiar de ver o mundo, que não é necessária e obrigatoriamente o único certo. Há papas que se inclinam mais para um conceito hierático e hierárquico de Igreja. Outros como João XXIII e João Paulo I preferiram a imagem da Igreja Povo de Deus. Este último conceito, consagrado pelo Concílio Vaticano II, desloca o acento do vértice para a base. Amplia-o dando-lhe uma extensão que inclua todos os seus membros. O batismo, que é o mesmo para todos, gera uma igualdade tão fundamental para a vida da Igreja quanto a diferença entre hierarquia e povo, clérigos e leigos.
Por isso tudo, um casal católico consciente e adulto não se coloca em oposição à Igreja. Procura corrigir e melhorar o que lhe é proposto ou imposto pelos seus pastores. Se nossos leigos católicos tivessem a consciência de que também são Igreja, haveria espaço  e condições para um diálogo muito mais adulto e promissor do que a atitude resignada e servil que a maioria deles adota.
O que caracteriza o conceito aristotélico de Epikéia é a preocupação pela justiça. A aplicação de uma lei não redunda necessariamente em ato de justiça. Mesmo a mais justa das leis pode tornar-se fonte e causa de injustiça. Basta exagerar-lhe o rigor e a severidade. “Supremum jus, suprema injustitia”! Assim reza um dos axiomas fundamentais do Direito Romano. Tudo indica que, ao condenar todos os métodos artificiais sem exceção, o Magistério da Igreja católica abriu as portas a muita injustiça. Injustiça social e moral. 

Padre Marcos Bach

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

FAMÍLIA E PATERNIDADE RESPONSÁVEL
O termo Paternidade Responsável é recente, embora seu conteúdo tenha feito parte dos assuntos tratados pelos moralistas em seus compêndios. O conceito nasceu da necessidade de enquadrar a atividade procriativa numa moldura ética nova, mais adulta e exigente do que a anterior, essencialmente procriativa e natalista.
O que levou os moralistas e legisladores eclesiásticos a mudar de posição? Em primeiro lugar foi o crescimento descontrolado da população mundial: a chamada explosão demográfica. E as outras ameaças que a acompanham, como o perigo de convulsões sociais em virtude da miséria, a qual aumenta na mesma proporção em que cresce o número de bocas, pedindo pão.
Um número excessivo de habitantes representa um risco ao equilíbrio ecológico, que só aumenta em vez de diminuir. As grandes metrópoles são verdadeiras armadilhas: um punhado de loucos pode paralisar com relativa facilidade uma cidade como São Paulo. A energia elétrica, a água e os mantimentos, tudo isso vêm de longe! Sem falar no problema causado por verdadeiras montanhas de lixo. O risco da espécie humana se extinguir por falta de nascimentos está excluído. A mortalidade infantil só é alarmante em regiões aonde o progresso da medicina ainda não chegou. A estes fatores é preciso acrescentar um dado estatístico típico de países civilizados: o aumento da idade média das pessoas.
A educação de um filho passou a significar um investimento bem mais pesado que no início do século XX. Como força de trabalho o filho menor não conta. Um filho a mais significa uma despesa a mais. É evidente que um pai responsável vai pensar duas vezes antes de acrescentar ao seu minguado orçamento doméstico um gasto para o qual não possui cobertura orçamentária. O tempo em que a situação deste tipo de problema ficava por conta da divina providência já passou, se é que houve alguma vez uma época em que Deus tomava a si o encargo de fechar o balanço de pais irresponsáveis.
Eugenia ou eugenética passou em nossos dias a ser um ramo da biologia. Pena que ainda não tenha encontrado espaço e abrigo no pensamento moral católico. A eugenia se ocupa com a qualidade do produto procriado. Ela faz parte e é capítulo importante da paternidade responsável.
Ser bem gerado e bem nascido é um direito de todo ser humano. Parte essencial da obrigação dos pais é colocar no mundo um produto de primeiríssima qualidade, se possível. Esta preocupação constitui parte essencial do seu compromisso com a humanidade toda.
Alguém poderá perguntar: “Que culpa tem a criança por nascer com graves defeitos congênitos?”. Nenhuma é claro. Mas seus genitores podem ser responsabilizados quando se expõem ao risco de ter filhos defeituosos, sabendo da possibilidade ou até da probabilidade que isso aconteça. Ser pai responsável significa muito mais do que ter um filho. Criá-lo significa bem mais do que providenciar para que não morra de fome.
Por que não se pensa em dedicar um dia do ano à memória daquelas mulheres que evitam ter filhos que não estão em condições de criar? Se honramos a mulher que abraça a virgindade, nada nos impede honrar com um dia especial os casais obrigados pela realidade a renunciar às alegrias que uma família mais numerosa lhes poderia proporcionar.
Nas entrelinhas dos documentos papais encontra-se a suspeita totalmente gratuita de que o egoísmo tomaria conta da vida familiar não fosse a atitude enérgica e firme da Igreja de Roma. Quem já conviveu mais intimamente com casais sabe do montante de renúncias que a vida conjugal exige de um casal razoavelmente consciente.
As atrações que a vida conjugal oferece pode induzir alguém a abraçar o matrimônio. Mas seria ilusório imaginar que só o prazer interessa a um casal. Bem cedo nossos casais mais conscientes aprendem uma das lições mais elementares da vida: a de que “a primeira palavra do amor, é não”!
A ideia estapafúrdia de que são os egoístas que optam pelo casamento enquanto os generosos escolhem a vida celibatária, continua tão viva hoje como nos tempos de Santo Agostinho. Quem quer ter uma ideia dos estragos que este preconceito já causou e continua causando deve ler o livro de Eugen Drewermann: Kleriker. E o livro de Uta Heinemann: “Eunucos por Causa do Reino de Deus”. Este último já foi traduzido para o português.
O diálogo entre casais e os celibatários profissionais da Igreja católica é dificultado não só pelo autoritarismo clerical, mas, acima de tudo, pela nuvem de equívocos, suspeitas recíprocas e de preconceitos que sobre ele paira. Tomei parte em muitos encontros de casais com clérigos. Em todos eles não houve nada que se pudesse contabilizar como passo para frente.
Foi a hierarquia católica que desarticulou os movimentos leigos destinados a confiar à autoridade de leigos todas as tarefas que o Vaticano II definira como atribuição específica do laicato católico. Leigos mais conscientes e adultos, mais livres e autônomos, iriam colocar em cheque a supremacia e o autoritarismo clerical. Mataram a cobra com medo de que ela viesse a mordê-los. Pior: mataram uma cobra mansa, imaginando tratar-se de uma cobra venenosa.
Não são as renúncias em perspectiva que atraem um jovem casal a se unir em matrimônio. Só o prazer tem o dom de atrair a vontade de uma pessoa.
Quem acha que os/as candidatos/as à vida religiosa ou ao sacerdócio são masoquistas natos, engana-se. O que leva um rapaz a optar pelo celibato não é o celibato, em si, mas as riquezas a que dá acesso. A renúncia ao prazer seria tão estúpida quanto a opção pelo sofrimento, se a opção pelo prazer não dependesse da capacidade de renunciar a ele. Quem quer ter acesso a prazeres de qualidade superior, deve aprender a renunciar a prazeres de ordem inferior. Os prazeres que um macaco pode ter não são dignos do homem. O homem não seria o que é se não tivesse tido a capacidade de abrir mão de tudo aquilo que faz a felicidade de um chimpanzé.
Quantos, mesmo em nossos dias, ainda estão por descobrir esta verdade? Quem se considera melhor e mais generoso por ter renunciado ao matrimônio, não o faz por amor ao sofrimento e à solidão, a menos que seja masoquista ou solipsista inveterado. O que leva um jovem a optar pelo sacerdócio são as alegrias e prazeres que a condição de padre lhe oferece. Nenhuma pessoa normal abraça o celibato por amor ao sofrimento. O mesmo vale também dos que optam pelo casamento.
Só há um tipo de pessoa que precisa do sofrimento para ter prazer. É o sadomasoquista. Também a renúncia à atividade sexual pode ser fonte de prazer. Pois há outros prazeres bem mais nobres do que qualquer espécie de prazer físico. Casados e celibatários só começam a se entender e a falar a mesma língua quando o assunto da conversa é o amor. A simples troca de preconceitos não merece o nome de diálogo.

Padre Marcos Bach

terça-feira, 5 de agosto de 2014

UM NOVO MODELO DE FAMÍLIA QUE SEJA BELO E ATRAENTE

Se queremos uma nova sociedade humana temos que pensar num novo modelo de família. E se temos o propósito sério de não continuar a malhar em ferro frio, temos que pensar no tipo de rapaz e de moça com que vamos poder contar para a execução de tal projeto.
        
Não basta esboçar um modelo teórico de família se não temos quem o execute na prática. Um modelo não se impõe por decreto e de cima. Um modelo tem que ser belo e atraente, pois é pelo caminho do fascínio que ele se imporá à consciência dos futuros pais e mães de família.
        
Não se ama nem se deseja o que não se conhece. A família é um valor cultural a respeito do qual existe muito mais palpite do que conhecimento científico e filosófico. Normas não faltam, o que falta é conhecimento. (Comparando):  Preocupamo-nos com o estado do carro e um pouco menos com a trafegabilidade das estradas, mas quase nenhuma atenção prestamos à capacidade e ao estado de espírito dos motoristas. No caso da família o motorista é o casal. Se eles não sabem como dirigir uma família, ninguém poderá substituí-los nesta tarefa, nem escola, nem igreja.
        
O que se pode esperar de jovens que gastam tempo precioso, saúde e o melhor das suas energias em bacanais, orgias noturnas? O que terá com que contribuir para uma futura vida de família o punhado de jovens fanatizados, mais dispostos a dar a sua vida do que vivê-la plena e integralmente?
        
Quem está mais disposto a dar a sua vida e a sacrificar-se por uma grande causa não deve pensar em fundar uma família e faz bem quando decide abraçar a vida celibatária. Quem tem vocação para mártir não deve abraçar a vida matrimonial. O matrimônio não é nenhum calvário e a família não é nenhum purgatório ou lugar de expiação.
        
Alimentamos a crença de que a juventude termina com o início da vida de casado. Com o casamento termina a vida fácil. Não é isto que o casal de noivos é obrigado a ouvir nos cursos de noivos? A vida que um rapaz e uma moça levaram antes de casar será a mesma que vão viver depois quando casados. É superstição pura e irresponsabilidade total imaginar que uma simples troca de etiqueta social possa operar o milagre de transformar um libertino irresponsável num pai de família responsável e digno de crédito. Ninguém se converte “a toque de caixa” e “ex opere operato”, isto é, por obra do poder mágico de um gesto sacramental.

Quem desperdiçou a juventude é, via de regra, aquele a quem não foi permitido ser nem adolescente nem criança. É pura ilusão imaginar que ele tenha condições de um dia se comportar como adulto.

Se queremos que a humanidade de amanhã seja melhor que a de hoje, temos que dar mais ouvido ao que o mundo jovem nos está dizendo. Extremamente importante é saber o que eles pensam da família e que tipo de família pretendem fundar um dia.
        
São jovens que arrebatam medalhas nos jogos Olímpicos. São jovens que morrem nos campos de batalha. Tem-se a impressão de que ser jovem é algo que começa logo no início da existência, chega aos tropeços e termina bem depressa. Além de tudo cometemos o erro de considerar o corpo como portador da juventude, deixando de lado a alma, a mente e o espírito. Confundimos saúde com bem-estar físico e juventude com vigor físico. Além de definir mal o que significa ser jovem e além de situar de maneira errada a juventude no contexto existencial todo, cometemos o erro de não preparar nossas crianças para esta fase tão crucial de suas vidas.
        
Ser jovem não é algo que dura pouco e mais se parece com castigo do que com festa.
        
Enquanto a moçada sonha com emprego e casamento, suas mães lotam os institutos de beleza e as clínicas de cirurgia plástica. O jovem quer tornar-se adulto o mais depressa que for possível. Os “coroas” fazem de tudo para dar a impressão de que continuam jovens.
        
A juventude é uma propriedade da vida humana e não apenas uma fase passageira. E não é condicionada pelo estado físico de uma pessoa. É curioso verificar que o cérebro humano não envelhece. Mesmo estropiado, sempre volta a encontrar um modo de se refazer. Velho é aquele que se autodefine como tal. Jovem pelo resto da vida é o adolescente que soube assumir a sua borbulhante juventude.
        
A preocupação dominante em nossos ambientes educativos não inclui a tese de que infância, adolescência, mocidade, meia-idade e terceira idade formam um todo unificado e não podem ser tratados como etapas separadas e sem interrelação entre si. A passagem de uma etapa para outra não pode ser interpretada como ruptura. A larva que se torna crisálida carrega consigo tudo o que de aproveitável conseguiu acumular durante o tempo em que era bicho cabeludo.
        
O bom comportamento de um adolescente depende do modo como este pôde viver a sua infância. Jovem responsável será o que pôde viver a sua adolescência sem o sufoco de uma disciplina castradora.
        
O adolescente quer aprender a ser moço e este quer aprender a ser adulto. Cada nova fase oferece um repertório inesgotável de lições novas. A criança que nada aprende jamais será outra coisa do que uma “grande criança”.
        
O velho sábio digno de toda a admiração e de todo o amor deste mundo é tão infantil quanto o bebê aninhado no colo da mãe. É adolescente tão iconoclasta quanto os que mais o são. E jovem porque continua tão otimista e idealista como era no tempo em que frequentava a universidade.

O Matrimônio e a Família

É o matrimônio e a família uma invenção da mãe-natureza ou uma criação da mente racional do homem? Ou por outra: é a família, como a conhecemos, o resultado de um processo biológico e biogenético ou é, pelo contrário, um processo especificamente cultural e tipicamente humano? Podemos confiar à natureza a tarefa de orientar o homem quando o assunto é vida em sociedade? Se fôssemos entregar a machos e fêmeas a organização da atividade sexual, provavelmente nos encontraríamos no mesmo estágio evolutivo que o chimpanzé bonobo. Ou, na melhor das hipóteses, estaríamos marcando passo com nossos ancestrais remotos, com os representantes do Homo Troglodita. A humanidade progrediu neste terreno porque criou mecanismos de controle social, tirando o assunto do terreno da livre iniciativa particular e impondo restrições à livre expansão do desejo individual.
           
Da subordinação do interesse individual ao da espécie é que nasce a Moral. Entre lobos o privilégio de engravidar as fêmeas é prerrogativa do chefe do bando que terá este direito enquanto for o macho mais forte do bando. Mais importante do que manter os outros machos afastados do “harém” era manter as fêmeas em clausura e impedi-las de usar seus encantos naturais para seduzir outros machos. Mais que aos machos é preciso trazer de olho as fêmeas. “É através de uma mulher que o pecado entrou no mundo”, rezam os Livros Sagrados de judeus, cristãos e muçulmanos. A mulher é o perigo. Manter a mulher longe do altar é imperativo categórico de quem deseja proteger a virtude contra o vício. Não é por acaso que a palavra virtude tenha parentesco etimológico com a palavra latina “vir”, que significa varão.
           
Já entre os judeus antigos a mulher de verdade era a dona de casa circunspecta e corajosa, capaz de administrar sozinha os bens do marido. Aqui no Brasil tornou-se emblemática a figura da Amélia, mulher de verdade, disposta a “engolir todos os sapos” que o marido lhe jogava no prato.
           
Nossa situação no campo do relacionamento sexual é desastrosa. Onde foi que erramos tanto a ponto de não sabermos mais se vale a pena retomar o fio da história ou se o mais indicado é desfazer-se do passado e começar da estaca zero?
           
Durante milênios exageramos no terreno dos controles sociais. Elaboramos um código moral hipócrita e repressivo, onde evitar o mal era mais importante que praticar o bem. Guindamos o celibato e a abstinência sexual à condição de castidade perfeita. Permitimos que a mulher fosse subordinada ao homem e tratada como cidadã de categoria inferior. Não permitimos que uma criança descubra o sexo e a sexualidade como uma das maiores maravilhas do mundo. Associamos sexo e prazer à noção de pecado numa medida que beira à histeria, ao menos no ambiente dos devotos da virtude angélica.

Bem cedo uma criança aprende a cobrir o sexo com o manto da vergonha. Associamos sexo com sujeira e porcaria. O que acontece ao abrigo dos lençóis de uma cama de casal é tabu, assunto que não se comenta.
           
O animal obedece a seus impulsos sem o menor constrangimento. Um homem que fizesse o mesmo se exporia ao risco de morrer apedrejado. Somos “animais”, mas temos que renegar nossa animalidade se quisermos que não nos internem num Jardim Zoológico.
           
Não somos anjos, mas no campo sexual somos incitados a imitá-los. Já que anjos são por natureza seres assexuados, a prática da castidade angélica só pode coincidir com a prática da abstinência total.
           
O animal pode confiar em seu instinto e os anjos podem confiar em sua condição de espíritos puros, só homens e mulheres não podem confiar em seus impulsos “venéreos”. Sabem que se existe em alguma parte, dentro e/ou fora deles, um ponto de equilíbrio, uma forma de comunhão sexual mais tranquila, ela se encontra de momento mais distante do que nunca. E o que é pior: a perturbação aumenta com cada nova descoberta científica. A confusão aumenta na mesma proporção em que descobertas científicas e metacientíficas ampliam o leque de conhecimentos que temos da sexualidade humana.
           
Esta confusão de ideias, de valores e de critérios de avaliação é típica de épocas de transição. Há na história do progresso humano épocas em que a mente humana mais se assemelha a um liquidificador ou batedeira. Neste período da história as mentes mais argutas se dedicam à tarefa de retalhar o manto inconsútil das verdades consagradas.

Padre Marcos Bach

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

CARACTERÍSTICAS DA PRIMEIRA IGREJA DE CRISTO    

É falsa a crença de que Jesus, ao se despedir do cenário histórico, tenha legado a seus discípulos um Projeto mal definido ou até se tenha abstido de se preocupar com a continuação da obra por Ele iniciada.

“Não vos deixarei órfãos, mas estarei convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). Esta palavra de Jesus foi perdendo força e credibilidade à medida que os apóstolos foram morrendo e seu lugar foi ocupado por “representantes de Cristo na terra”.

“Enviar-vos-ei o meu Espírito e ele vos ensinará na hora certa o que deveis de dizer” (Lc 12,12). Também esta palavra de Jesus acabou se perdendo em “ouvidos de mercador”!

Os primeiros cristãos não se sentiam órfãos, nem se comportavam como tais. Paulo se dizia apóstolo de Cristo, mas nunca se fez passar por “representante de Cristo”. Paulo nunca se atribuiu outra “autoridade” que aquela que lhe conferia a sua “incondicional fé em Cristo”. No fim de sua sofrida existência diz com orgulho: “Completei a carreira, guardei a fé” (2 Tm 4,7).

O Cristo que o apóstolo Paulo pregava não é um Cristo ausente e distante da vida concreta dos membros de suas comunidades. É um Cristo que se alegra com os que estão alegres e sofre com os que sofrem.

A IGREJA DOS APÓSTOLOS

Um bom retrato da Igreja apostólica nos é fornecido pelo livro Atos dos Apóstolos! São várias as características desta Igreja:

- Ela era doméstica, pois os seus membros se reuniam em famílias. No início o Templo de Jerusalém e a Sinagoga eram frequentados pelos cristãos, mas após a destruição do Templo e a dispersão dos judeus, as comunidades cristãs passaram a se distanciar cada vez mais da sinagoga e do judaísmo, adquirindo personalidade religiosa própria. As “igrejas” fundadas pelo apóstolo Paulo eram pronunciadamente domésticas e seus líderes eram chefes de família. Uma nota distintiva desta “igreja” era a posição destacada que nela ocupavam as mulheres. Lídia (Atos 16,14) e Priscila (Atos 18,2) são mulheres que, devido à sua posição social, muito contribuíram para a difusão da Fé Cristã. Ao traçar o perfil do bispo em sua carta a Tito, descreve-o como “marido de uma só esposa” (Tito 1,6).

- Ela era eminentemente “comunitária” e em certa medida até “democrática”. Dos seus membros o povo dizia: “Vede como eles se amam!”. Quando o apóstolo Pedro tomou a decisão de preencher o número dos “doze”, confiou à Comunidade a tarefa de escolher o substituto de Judas, o Iscariotes.

- Outra característica das primeiras Comunidades Cristãs era a crença na volta iminente de Cristo para completar a sua obra e iniciar a instauração do Reino de Deus. A “parusia”, isto é, o retorno de Cristo, era tido como iminente. Algo que poderia acontecer ainda em vida dos mais jovens. Esta crença motivou muitos “proprietários” de terras a vendê-las e a depositar o dinheiro, assim obtido, nas mãos dos Apóstolos. Tudo o que os membros da Comunidade possuíam era considerado “propriedade comum”! Este “comunismo” da Igreja Primitiva diferiu num aspecto fundamental do “comunismo” de Karl Marx, pois nele o direito de gerir os bens e de distribuí-los era exercido pela Comunidade, representada na figura do “diácono”, em lugar de confiar esta função ao Estado, representado na figura do “Comissário”!

- Na Igreja Primitiva ainda não havia espaço para a figura do “sacerdote”. O apóstolo Paulo se autodefine orgulhosamente como apóstolo de Cristo, mas não há uma única passagem em suas cartas em que se defina como “sacerdote”!

A “missa”, como a conhecemos hoje, só foi inventada mais tarde. Os fiéis se reuniam em “Assembleia” e a “Celebração Eucarística” era definida como “Banquete”, como “Ceia”, pois era realizada no fim do dia. A palavra “ágape” (= “banquete”) era empregada para definir o que se estava realizando. A ideia de definir como “sacrifício” o que se estava fazendo só apareceu mais tarde! O “culto litúrgico” era visto, antes de mais nada, como repetição simbólica do que acontecera no Cenáculo em Jerusalém e que passou à história com o nome de “Última Ceia”. Só bem mais tarde este gesto litúrgico passou a ser interpretado como símbolo do “sacrifício de Cristo na cruz”!

A diferença entre a atmosfera que reina num banquete e a que caracteriza a execução de uma sentença de morte é absoluta e total. Por isso pode-se afirmar que os cristãos da Igreja Primitiva estavam mais próximos da verdade e do pensamento de Jesus do que os atuais “rezadores de missa”.

Jesus não morreu na cruz na condição de “vítima” da maldade humana. Entregou-se livre e espontaneamente nas mãos de seus inimigos e algozes.

“Por isso o Pai me ama porque eu dou a minha vida e novamente a reassumo! Ninguém m’a tira e eu a ofereço espontaneamente” (Jo 10,17). Mais que vítima da maldade humana Jesus foi “vítima” de seu imenso amor pelos homens. É por isso que os primeiros cristãos foram mais sábios do que nossos teólogos de hoje. Cristo encerrou em caráter definitivo a era dos “sacrifícios” dando início a uma “Nova Era”! Ninguém tem mais o direito de tirar ou de invadir a vida de alguém!

Padre Marcos Bach