quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A MORTE E O ENCONTRO COM A VIDA

Durante milênios a morte foi identificada como momento final da vida de uma pessoa. Cercando-se de luto, chorava-se a morte de uma pessoa. A cor do luto era o preto e o sentimento mais adequado ao estado de espírito dos sobreviventes era a tristeza. Rir num enterro ou num velório era tão inadmissível e impróprio quanto blasfemar o nome de Deus.

A morte exigia e impunha respeito. Um respeito que a vida parecia não impor. A morte e tudo o que tinha alguma ligação com ela era cercada por uma aura de sacralidade. Faltou, porém, estender esta aura de respeito sagrado à vida e das suas manifestações mais significativas.
        
Num campo de batalha dá para perceber a distância que separa o respeito pela vida do respeito pela morte. Nem sequer é preciso ir a um campo de batalha, basta sentar-se ao volante de um carro e pôr-se a dirigi-lo em meio ao trânsito infernal de uma rodovia.
        
Temos a cada passo que damos oportunidade de constatar a trágica distância que separa nosso discurso sobre a morte do discurso hipócrita com que enaltecemos a dignidade infinitamente maior da vida.

A relação da morte com a vida, geralmente definida como luta, a palavra grega para caracterizar esta luta é a palavra agonia. Em condições normais é agonizando que as pessoas se despedem da vida. Dois são os equívocos que poluem esta concepção. Primeiro erro: a morte não põe fim à vida de uma pessoa. Segundo erro: a agonia não representa o estágio derradeiro do processo de morte.
        
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, após um desmaio descreveu a experiência com o seguinte comentário: “Como deve ser agradável morrer”!

O fariseu conseguiu bulir com a paciência de Jesus porque teimava em atribuir a si e a suas boas obras o mérito exclusivo da sua justiça. É evidente que não podiam concordar com Jesus, quando o Divino Mestre se referiu a eles dizendo: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20).
        
A morte é um acontecimento em que a pessoa não dispõe mais de si mesma. A morte não se experimenta nem se vive. A morte se sofre.
        
Teilhard de Chardin faz uma distinção entre o que ele chama de passividades de diminuição e passividades de crescimento. Os que viram Jesus expirar na cruz provavelmente saíram do Gólgota convencidos de que tinham assistido ao fim de um belo sonho. Devem ter sido bem poucos os discípulos de Jesus que ainda depositavam alguma fé em suas promessas.

Para o apóstolo Paulo Cristo seria o maior impostor que a história conheceu “se não tivesse ressuscitado dos mortos, pois toda a nossa fé seria vã no caso de ele não ter ressuscitado” (I Cor 15,17). Tão vã como a nossa fé seria a ressurreição de Cristo, caso o universo todo não tivesse ressuscitado com ele. Foi Santo Ambrósio que carimbou a expressão segundo a qual o universo inteiro deixou de ser o mesmo depois que Cristo ressuscitou. “In eo surrexit mundus”, diz Ambrósio.
        
A dimensão cósmica da ressurreição de Jesus, envolvendo por igual místicos e cientistas, poetas e historiadores, antropólogos e teólogos é tão fundamental, que qualquer concepção antropológica bairrista deve ser descartada a limine, como defeituosa e viciada. Não é somente o teólogo que precisa tratar o cientista com mais respeito. É também o cientista que precisa de mais humildade. O “Cogito, ergo sum” de René Descartes, só expressa a metade de uma verdade maior. O místico se põe em combate com esta verdade maior através de oração. Pois é além das fronteiras determinadas pelo pensamento que o Logos Divino se encontra à espera da consciência do homem.

A palavra mortificação não encontrou espaço no vocabulário científico. Só encontrou espaço no vocabulário teológico. A morte faz parte da vida. Ela não ocorre só uma única vez, como acontece com o nascimento. Ela, a morte, acompanha a vida desde que esta teve início.
Morte e vida não são antônimas, são sinônimos. A morte sempre foi interpretada e vista como inimiga da vida e como fim de vida. Mas quem familiarizou seu pensamento com o de Cristo e do apóstolo Paulo, concebe a morte como um avanço na vida. A morte não põe fim a nada, exceto a um cativeiro, que com o passar do tempo, ia se tornando cada vez mais insuportável.
        
A moderna tanatologia científica ainda patina em terreno escorregadio porque continua vendo a morte como a viam Sócrates e Platão, Sêneca e Cícero.

O falecido cientista americano David Bohm acusou o mundo científico de estar sendo vítima de uma colossal autofraude, achando que o mundo real coincide com o mundo formal do cientista. Que não existe mais nada além do horizonte determinado pela mente do observador científico. É do mesmo autor a tese de que além da realidade formal existe outra realidade que ainda não teve tempo nem sequer foi solicitada a se manifestar.

A crença de que a nossa razão e nossos sentidos nos colocam em condições de nos manifestar o universo por inteiro deve ser descartada como infantil. A ciência nunca nos vai revelar tudo o que ainda não sabemos. Até hoje o pensamento científico ainda não encontrou um lugar para Deus. A fé que nos leva até Deus é tão confiável quanto a razão. Einstein não se envergonhou da sua condição de crente.

O Apocalipse menciona repetidas vezes a existência de uma “segunda morte” (Ap 21,8), dando com esta afirmação a entender que a morte faz parte de um processo que se estende para além do tempo histórico.
        
A egolatria é um vício do qual só poucos conseguem livrar-se completamente antes de morrer. No terreno do desenvolvimento espiritual não há lugar para respostas automáticas. A morte não nos vai levar a um mundo povoado de painéis, cada painel repleto de chaves e teclas, bastando apertar a tecla certa para obter a resposta correta.

O objeto da fé é o mistério. A fé, mesmo a fé em Cristo, não se destina a fornecer explicações. Apenas diz o que é, mas não diz porque é assim. A única verdade com relação à morte é esta: ela não ocorre no termo final da vida, mas representa apenas o início e o momento inaugural de uma nova fase da mesma vida que aparentemente chegou ao fim. Está na hora de pensar seriamente em substituir a concepção terminal da morte por outra mais condizente com a realidade. Esta outra concepção podemos defini-la como inaugural.
        
Se alguém dissesse que a vida das pessoas só começa a se tornar real a partir do momento em que ela morreu, poderíamos concordar com ela, desde que atribua não à morte, mas à ressurreição o destino ulterior da sua vida.

Devemos ao apóstolo Paulo esta preciosidade teológica: “Assim como uma estrela difere das outras, do mesmo modo os corpos ressuscitados diferem uns dos outros” (I Cor 15,15).
        
A destinação inicial dos que morrem é determinada pelo modo como cada pessoa viveu a sua vida. Quem viveu sua vida servindo à corrupção, não deve esperar outra coisa após a morte a não ser um prolongamento da forma como viveu sua vida até então. Quem quer participar da gloriosa ressurreição de Cristo tem que ter vivido como Cristo viveu e ser tão livre como Ele foi.

Nada corrompe tanto o espírito do homem do que o apego aos bens materiais. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mt 19,24). “Coais os mosquitos, mas engolis os elefantes” (Mt 23,24).
        
Ganância e avareza são vícios a que um cristão se encontra tão exposto quanto o banqueiro mais avarento. Ao morrer, cada qual, seja ele quem for, poderá colher apenas o que semeou. Não há indulgência plenária capaz de suprir eventuais falhas de natureza administrativa. De nada adianta ter em vista fins elevados se os meios empregados para alcançá-los não são adequados. Para ser adequado um meio tem que ser, acima de tudo, eficiente.
        
Nada impede tanto a eficiência espiritual de uma pessoa quanto o apego aos bens materiais. Não são os bens em si que dificultam a maratona espiritual de uma pessoa, mas o fato de ter-se identificado com eles.
        
Quando bens materiais são promovidos à condição de objetos de um culto idolátrico, quando a ausência de Deus já não é mais sentida como vício e como doença, as condições sociais de um povo estão atingindo um nível de degradação simplesmente irrecuperável. No campo religioso já atingimos este nível de degradação.

O apocalipse menciona em três passagens a possibilidade de uma “segunda morte” (Ap 21,8). Menciona também a possibilidade de uma “segunda ressurreição” após a “primeira ressurreição” (Ap 20,5). Não conheço teólogo que tenha dedicado alguma atenção a esse aspecto da escatologia cristã. Depois da morte o que aguarda a alma do falecido é um julgamento severo. Primeiro será submetido a um juízo particular. Muito depois, no limiar do fim dos tempos, será submetido com os demais membros do gênero humano a um julgamento coletivo que na bíblia recebeu o nome de juízo final.
        
Pessoas que tiveram morte clínica e passaram pela “Experiência de Quase Morte” narram que tiveram que responder à pergunta feita por um Ser de Luz: “Que Fizeste da Tua Vida?” Responder a esta pergunta fora fácil porque tinham acabado de ver sua vida inteira numa espécie de filme o que lhes permitiu distinguir, sem possibilidade de engano ou erro o que nela fora positivo e o que não o fora. Ninguém mencionou algo que se pudesse definir como julgamento. Parece que na hora final cada qual é convidado a fazer seu próprio julgamento.
        
Ao iniciar sua vida todo ser vivo é incumbido da tarefa de construir-se a si mesmo. Dois biólogos chilenos, Maturana e Varela, deram a esta tarefa o nome de autopoiese. Assim como um poeta usa palavras para construir sua poesia, do mesmo modo cada ser vivo usa células para edificar um novo representante de sua espécie, semelhante a si mesmo. Como, porém, pode um punhado de células embrionárias ter uma ideia do que é preciso inventar para edificar um ser tão complexo, com órgãos tão diversificados, como é todo ser vivo?
Ao enterrar um morto tiramos de circulação tão somente o seu cadáver, nada mais do que o invólucro mortal é entregue à destruição. Tudo o que faz parte de seu Eu Superior o falecido levou consigo. O que acontece depois é tema de especulação, pois são escassas as informações que possuímos.
        
Ainda alguns decênios atrás se podia dizer: “Nada sabemos, pois ninguém voltou para contar”. Mas hoje aumentou significativamente a possibilidade de trazer de volta à vida pessoas que os médicos já tinham declarado mortas. A morte clínica não encerra o processo de morrer. Isto só ocorre quando o cérebro deixa de funcionar. A verdadeira morte é a morte cerebral. E esta geralmente só ocorre após a morte clínica. Deste modo o moribundo tem tempo para fazer uma avaliação da sua vida toda, e caso lhe for aconselhado por misteriosos seres de luz, poderá retornar ao corpo que acabara de abandonar. Este retorno é penoso e sofrido. A morte continua sendo um enigma e seus estágios derradeiros continuam sendo uma incógnita.
        
Viver para os romanos era o mesmo que estar entre os homens, “inter homines esse”. Morrer significava para eles deixar o convívio humano. No entanto, faz parte das verdades básicas da fé cristã a crença na comunhão dos santos. A morte abre espaço para novas e inusitadas formas de convívio e de comunicação.
        
Para que duas pessoas possam se comunicar desembaraçadamente entre si é preciso que possuam em comum o mesmo nível de consciência. “Simile simili gaudet” diziam os romanos, “igual atrai igual”, dizemos nós.

Padre Marcos Bach

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O QUE NOS COMPETE COMO SERES HUMANOS

O discurso teológico tem contribuído muito para distorcer o verdadeiro sentido da Vinda de Cristo à Terra dos Homens. Se Deus quisesse tomar o lugar dos homens e ocupar um espaço histórico que eles não souberam preencher, Deus não teria assumido a natureza humana e se comprometido com a Evolução futura da humanidade do modo como o fez. Cristo veio inaugurar uma nova forma de fazer história, e não apenas um novo capítulo de um processo histórico em andamento. Passaram-se 2.000 anos e a humanidade ainda não se deu conta de que o modo como egípcios, babilônios e romanos faziam história está superado. Há um ponto a partir do qual não é mais permitido pensar em recorrer às armas.
        
Este patamar a humanidade atingiu em 1945. A explosão da primeira Bomba Atômica foi o sinal de que a guerra não é mais uma alternativa política aceitável. Os gulags e campos de concentração nazistas não surgiram do nada. Tornaram-se realidade concreta porque já faziam parte da consciência social e moral de cristãos e judeus.
        
Se a Mensagem política de Jesus tivesse sido compreendida, ninguém admitiria que fossem gastos anualmente trilhões de dólares em armamentos.
        
Se a Mensagem moral de Jesus tivesse sido compreendida, os homens se amariam infinitamente mais uns aos outros.
        
Se a Mensagem religiosa de Jesus fosse levada a sério, os homens teriam muito menos medo uns dos outros.
        
Se a Mensagem espiritual de Jesus fosse entendida como merece, daríamos muito mais valor e importância ao que se passa no interior da almas e nos planos mais profundos das consciências do que àquilo que acontece fora daí.
        
O essencial não cabe em estatísticas nem pode ser transmitido por televisão. Do que de essencial se passa em seu interior até a própria pessoa não consegue ter ideia. No entanto, é lá, no mais íntimo de sua consciência, nos planos de natureza transpessoal, que é decidido o destino não só de cada indivíduo em particular, mas do universo inteiro.

Ninguém se torna mais sábio sem que o cosmos todo saia daí melhor informado acerca da sua verdadeira natureza.

Teilhard de Chardin dizia que o homem é a flecha da Evolução. Ao contrário de outras congêneres, o homem carrega em sua ponta a vida, e não a morte. É na ponta da sua flecha que o arqueiro Zen concentra toda a sua atenção. A flecha, diziam eles, sabe aonde ir e como fazê-lo. Basta indicar-lhe o alvo e apontá-la na direção certa, tudo o mais ela fará por conta e iniciativa própria.
        
Não há, ao que me parece, metáfora mais apropriada para descrever a relação do observador com o objeto da sua pesquisa. E a descreve de maneira sucinta e clara a atitude básica de cada pessoa para com a sua própria consciência.
        
Toda a sabedoria do universo o Criador a condensou no interior da consciência de cada ser humano. O cristianismo não é uma religião de órfãos necessitados de um padrasto ou de menores incapazes de responder por si mesmos. Um cristão adulto é aquele que não precisa mais de quem lhe ensine como ser discípulo de Cristo. “A ninguém chameis de pai, porque um só é o vosso Pai” (Mt 23,9).
        
A Igreja, cujas bases Cristo veio lançar, dispensa por completo todas as formas de tutela moral e espiritual, política e psicológica que nenhuma Igreja cristã até hoje conseguiu abolir.
        
O verdadeiro seguidor de Cristo não é um galé, um pobre coitado que sem as bênçãos de sua Igreja não saberia o que fazer e como escapar das chamas do inferno.
        
O cristão adulto não é aquele que usa a sua Igreja como instrumento da sua própria salvação. A ideia de que a Igreja é um lugar de refúgio para quem é incapaz de se defender por si mesmo, irritou não só a Nietzsche. Está irritando um número cada vez maior de cristãos.
        
A plataforma política de Jesus se encontra sintetizada no assim chamado Sermão da Montanha. Lá disse coisas tão escandalosas como estas:
        
“Bem-aventurados os mansos porque eles possuirão a terra” (Mt 5,5).
        
“Bem-aventurados os pobres” (Lc 6,20).
        
“Se não vos tornardes como as crianças não entrareis no Reino dos Céus” (Mc 10,15).
        
“Ao que te bate numa face ofereça-lhe também a outra” (Lc 6,29).
        
“Ao que quiser levar a tua capa deixe-lhe também a tua túnica” (Lc 6,29).
        
Há uma forma de violência que gera vida. O que é o nascimento de um novo ser humano senão um processo extremamente violento? Retribuir o bem com o bem, já é difícil. Que esforço não é exigido de quem adota como lema responder sempre ao mal com o bem? A mansidão cristã não tem nada em comum com covardia ou medo de lutar.
        
Jesus, “manso e humilde de coração” (Mt 11,29), soube ser violento, tanto em gestos como em palavras. Tanto Paulo (I Tim 2,2), como Pedro (I Pe 3,4) nos convidam a viver uma vida mansa e tranquila.
        
São Francisco de Sales, homem colérico e impetuoso por temperamento, passou à história como santo modelo de mansidão. A energia é tanto mais poderosa quanto mais tranquila, serena e mansa for a pessoa.
        
Verdadeiramente sábio não é aquele que fala mais. Verdadeiramente forte e poderoso não é aquele que se investe de um máximo de autoridade e poder.
        
A nova civilização que se está esboçando é liderada por pessoas que como Gandhi e Nelson Mandela acreditam que o futuro da humanidade depende de atitudes e virtudes que de momento ainda são identificadas com conceitos derrotistas como “entreguismo”, “pacifismo irresponsável”, etc.
        
Todo aquele que se nega a abrir mão de privilégios e de “direitos adquiridos” pode ser considerado inimigo do futuro da humanidade. Isto vale também para a Igreja católica. Há nela gente demais com poder demais e gente demais sem poder nenhum.
        
É evidente que Cristo não teve em mente uma situação tão escancaradamente injusta quando confiou o destino da sua Igreja à direção do Espírito Santo.

Padre Marcos Bach

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O MEDROSO  E O CORAJOSO

O medroso evita o perigo e só pisa em terreno que julga seguro. Sente-se seguro quando percebe que está indo por onde a maioria também costuma passar. Prefere passa por onde os donos do mapa estão passando. Só grandes estradas aparecem em mapas. Veredas e atalhos não têm esta honra. Os lugares mais lindos e poéticos de um país raramente podem ser visitados por quem não se dispõe a fazê-lo a pé, andando por becos e atalhos que só os nativos do lugar conhecem.

Existem por toda a parte espaços enormes que podem ser classificados apropriadamente como marginais, onde é mais fácil ser livre e autêntico. Não é necessária grande coragem para ir morar neles. A única condição exigida é desprendimento e espírito de pobreza.

Só pode ser considerado verdadeiramente pobre aquele que como os demais pobres pouco ou nada tem a perder.

O corajoso se conhece por sua capacidade de enfrentar riscos e de correr perigos. Enquanto o covarde foge do perigo, o corajoso se dispõe a atravessá-lo, indo mais longe na direção a uma fronteira tida como intransponível. Tanto o medo como a coragem crescem na medida em que deles se faz uso.

O risco maior que o corajoso corre é a de confundir coragem com temeridade. Temeridade não é excesso de coragem, mas falta de prudência. Para ser virtuosa a coragem tem que aliar-se à prudência. David enfrentou Golias de tanga e empunhando uma funda. Além de não ligar para os insultos de Golias, evitou aproximar-se da lança de Golias.

O corajoso não é alguém que despreza o perigo ou o adversário. Todo corajoso digno de respeito possui um elevado grau de autoconfiança. Não espera da coragem mais do que ela é capaz de lhe proporcionar. Os resultados mais preciosos ele os espera da sua inteligência e da sua capacidade de integrar conhecimento intelectual num plano concreto da ação.

Para continuar a ser medroso e covarde basta continuar a ser medroso e covarde. Para continuar a sê-lo basta acrescentar mais medo ao já existente. Para readquirir um pouco da coragem perdida é preciso duplicar a dose. Duplica-se a dose quando se alimenta em sua consciência a coragem de ter coragem.

Quem passou anos da sua vida embalando sua consciência em falsas seguranças não deve esperar que sua coragem adormecida e latente desperte de forma espontânea e sem exigir dele esforço algum. Ao contrário do que acontece nos contos de fadas, nenhum príncipe encantado vai aparecer para despertar um covarde adormecido. “Acaba por perder a sua vida todo aquele que não se dispõe a perdê-la” (Lc 9,24).

Para que um centro cresça é preciso que a periferia cresça junto com ele. Houve uma época em que São Paulo se orgulhava de ser a cidade brasileira que mais crescia. Hoje já não há mais paulistano que queira ver a sua cidade maior do que já é.

Audácia é o nome desta coragem de ter coragem. “Audaces fortuna adjuvat”, diziam os romanos. A “fortuna não se alia aos que têm medo da sua coragem”. Estes acabam, via de regra, tendo até medo do seu próprio medo.

O corajoso não se orgulha da sua coragem. Não estufa o peito nem se vangloria de ser melhor que os outros. Sabe muito bem que não há modo mais perigoso de enfrentar a vida do que enfrentar seus desafios com coragem.

Padre Marcos Bach

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

NÃO HÁ PERDAS A LAMENTAR

Durante milhares de anos os estudiosos da coisa do céu e da terra eram poucos. Vendo que as estrelas do céu pareciam não sair nunca do lugar, deram ao céu o nome de firmamento.

O caráter vibrante e pulsátil do universo só foi descoberto pelo físico alemão Max Planck no início do século XX. Tanto como a luz, o átomo também vibra e pulsa, pois se dilata e se contrai milhões de vezes a cada segundo.

Não sou cientista, mas a minha condição de teólogo me leva a fazer a pergunta que Luis de Gonzaga costumava fazer em situações idênticas: “Quid hoc ad aeternitatem?” “O que isto me aproveita para a eternidade?”. Será que os princípios da Teoria Quântica começam a vigorar com força redobrada depois quando nos encontrarmos livres dos laços que nos prenderam ao mundo material?

Se existe uma relação de natureza causal entre tempo e velocidade, então deve de existir a fortiori uma relação causal entre velocidade e eternidade. Einstein ainda era de opinião que a velocidade da luz era a velocidade máxima que uma entidade material podia desenvolver sem se desmaterializar por completo. Hoje já se sabe que à velocidade da luz o tempo deixa de fluir em direção do passado. Ultrapassada a velocidade da luz o tempo inverte a direção e começa a se movimentar do presente em direção ao futuro.

O passado deixa de ser passado e passa a ser parte essencial de um presente eterno. A saudade muda de direção. O que aliena nosso desejo não é aquilo que já tivemos um dia, mas que o tempo se encarrega de levar consigo. Não faz sentido sentir saudade quando tudo o que é desejável ainda está por vir. Tudo o que de bom está à nossa espera se encontra no dia de amanhã. Não há perdas a lamentar, pois tudo o que merece nossa atenção ainda nos espera.

A saudade do saudosista leva-o a lamentar quando a atitude mais inteligente o levaria a se rejubilar. Nada está perdido, tudo se encontra a salvo da ação deletéria do tempo. A salvação eterna consiste em subtrair-se à ação do tempo e viver antecipadamente em clima de eternidade e de perpétuo rejuvenescimento.

“Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mc 13,11). Pois tudo o que se encontra à vossa frente já está assegurado.

Padre Marcos Bach

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

CIÊNCIA MÍSTICA

Ciência mística é o campo do conhecimento humano que excede a capacidade dos sentidos e da razão. A palavra mística tem a mesma raiz etimológica que a palavra mistério. Faz parte do mistério tudo o que não pode ser apreendido nem pelos sentidos, nem pela razão.
        
A observação científica e a reflexão filosófica só conseguem apanhar e explicar uma parcela bem modesta da realidade do universo.
        
Tendo chegado ao fim da sua vida, Einstein reconheceu que o universo é um grande mistério.
        
Se o universo material se subtrai à compreensão do homem, o que dizer da dimensão espiritual do universo? Se é verdade que “a essência da matéria é espiritual”, como queria Einstein, então é possível que o fracasso dos cientistas nas suas tentativas de explicar a matéria se deva ao fato de não terem incluído em sua metodologia os aspectos espirituais do universo material.
        
Se o universo é um mistério, o que dizer do homem, este microcosmos  infinitamente mais complexo e aberto ao infinito do que a mais poderosa das galáxias?

Do exposto resulta uma pergunta: “Será que não existe um método de investigação capaz de nos levar à compreensão do que talvez com demasiada pressa definimos como mistério”?
        
Einstein atribuiu a uma forma de suas descobertas científicas. Crer significa aceitar como verdadeiro algo que nem a razão, nem os sentidos conseguiram provar.
        
A palavra cientifismo é empregada para denominar a atitude dos que se negam a aceitar como verdadeiro o que não foi provado! O místico não persegue a verdade à procura de provas. Sua visão da realidade se contenta com rastear pistas.
        
A distância que separa o teólogo do místico é brutal! O teólogo quer apanhar Deus na rede dos seus raciocínios! O místico se contenta com saborear o aroma que permanece no ar depois que Deus passou!
        
Um místico e um teólogo não falam a mesma língua. Assim como a linguagem do nariz não é a mesma dos olhos. Ambos os sentidos fornecem, no entanto, ao homem a mesma mensagem estética.
        
O Deus de Teilhard é o mesmo de Karl Rahner. Só que o de Teilhard tem “cheiro de terra” e o de Rahner carece de “cheiro”.
        
Durante séculos teólogos e cientistas faziam questão de sublinhar a pretensa incompatibilidade entre Ciência e Fé. Nos últimos cem anos foram dados passos gigantescos no sentido de pôr fim a esta guerra inglória.
        
Quando dizemos que o cristão não se apega a regras e que não necessita de outro poder além daquele que sua fé em Cristo lhe proporciona, estamos mexendo em “vespeiro”, pois é inútil ir à procura de uma religião que dispensa seus fiéis de alguma forma de obediência. E de alguma forma de disciplina imposta.

O místico é alguém que adquiriu grande familiaridade com os planos superiores da sua consciência. Com o seu Self, diria Jung. Com a sua consciência espiritual, diria Assagioli.
        
Os conhecimentos que o Supraconsciente lhe fornece não são iguais aos que sua razão e seus sentidos lhe proporcionam, pois são de natureza intuitiva. Por intuição se entende uma espécie de conhecimento em que o sujeito entra em contato direto e imediato com a verdade, a qual se lhe revela sem o concurso de intermediários.
        
O conhecimento místico é essencialmente visionário. É por isto que os místicos preferem servir-se de imagens e de símbolos, de comparações e de extrapolações e hipérboles para descrever suas experiências. O falso místico se apega às imagens como se elas fossem a verdade, assim como o mau teólogo se prende a dogmas e o mau cientista se escraviza a uma visão teórica da realidade.
        
O que caracteriza a mente visionária de um místico é sua extraordinária abertura mental e elasticidade intelectual e moral. Um místico sempre está disposto a aceitar mudanças, caso elas se imponham.
        
A teologia mística é essencialmente negativa: não descreve Deus, mas dá apenas o que deve ser excluído da sua Imagem.
        
Um místico autêntico, como São João da Cruz, sabe distinguir muito bem o que é de Deus e o que faz parte da tentativa humana de se apoderar de Deus. E de usar uma imagem sua com o fito de tirar proveito da sua familiaridade com Deus. O que se dá neste caso é que alguém se ajoelha diante de uma “imagem” que ele mesmo criou, em lugar de se ajoelhar perante Deus.
                  
Deus não cabe em ícones, em imagens e conceitos teológicos. Menos ainda em dispositivos canônicos!
        
Motivo de sofrimento é para um místico sentir-se condenado a viver num mundo que além de não ser o seu, é em tudo o oposto do seu.

O instrumento de pesquisa preferido do místico é a !
        
Einstein já admitiu que o melhor das suas descobertas científicas devia-o à fé e não à pesquisa propriamente dita. Como cientista sabia que “quem não procura, não acha”! Como “religioso” ele sabia que não basta procurar, que é preciso procurar no lugar certo, com os meios certos e no tempo certo! Tudo isto ultrapassa a racionalidade do esforço científico e lhe acrescenta algo de essencial.
        
A atitude de fé se baseia na certeza de que o universo tem um sentido e que a história da humanidade obedece a um plano. Sem esta fé é inútil tentar compreender o homem e o mundo em que vive.
        
A inglória luta entre fé e ciência está com os dias contados. Não fosse a quantidade de interesses e vaidades investida nesta luta, ciência e fé já teriam realizado, há muito, o “matrimônio sagrado”, o “Hierós Gamós” dos alquimistas. Decretar a separação entre fé e ciência é o mesmo que condenar tanto o homem de fé como o cientista a viver divorciado de si mesmo. Há aspectos da verdade humana que só a fé nos pode revelar! Mas há outros aspectos da verdade que só a ciência consegue desvendar.
        
A fé não supre a razão. Sobrepõe-se a ela e lhe dá “asas”. Asas mais poderosas que a capacitam a voar mais alto.
        
A fé de que falo não é a fé teológica que se baseia em “verdades reveladas” e pode ser controlada por autoridades eclesiásticas. Não é sobrenatural, pois embora venha do “Alto”, não representa um dom acrescentado à capacidade natural da consciência humana. O sobrenatural pressupõe a existência de uma base natural.
        
A experiência mística é um ato de fé na sabedoria do universo material e na natureza antes de ser um ato de fé sobrenatural. Sem esta fé natural a fé sobrenatural apoiada em “verdades reveladas” e na Palavra de Deus carece de apoio que toda planta encontra em suas raízes.

Padre Marcos Bach

terça-feira, 14 de outubro de 2014

CONSCIÊNCIA SOBERANA
Uma pesquisa feita nos Estados Unidos revelou que o número de americanos moralmente adultos não ultrapassa a casa dos l5%. Bernard Shaw já dizia que 5% da humanidade pensa; que 10% pensa que pensa, e que os restantes 85% preferem morrer a ter que pensar.
Humor à parte e descontada uma dose inevitável de exagero e pessimismo, a verdade parece estar do lado desses números. A maturidade moral não parece constituir o lado forte do homem moderno. Em que um casal europeu ou americano difere de um casal indiano ou chinês em termos de consciência moral? Ora, se a maturidade moral é fenômeno raro, entende-se porque o Papa Bento XVI em sua encíclica moral (Veritatis Splendor) resiste à ideia de fazer do planejamento familiar uma questão de consciência. Se o número de casais moralmente adultos é tão reduzido como os fatos estão a sugerir, então é realmente temerário confiar à consciência do casal a responsabilidade exclusiva pelo que faz ou pretende fazer.
O tom das encíclicas papais dá a entender que elas se destinam a pessoas que ainda necessitam do pulso firme e da ordem perentória de um pai solícito, no caso o Papa. Os que não estão em condições de encontrar por si mesmos a solução correta, fazem mal quando ignoram a voz do Papa e o ensinamento da Igreja. Mas aqueles que se podem considerar de posse de uma consciência adulta o suficiente para não precisar da ajuda de muletas morais, não só podem, mas têm a obrigação de assumir a plena responsabilidade pelo que fazem. Esta obrigação também se estende ao planejamento familiar.
Um axioma jurídico diz: “Abusus non tollit usum”. O abuso não justifica a abolição pura e simples de uma prática. O fato de 85% dos casais (suponhamos que a porcentagem corresponda à realidade) não possuírem sequer o mínimo de maturidade moral requerido e que com justiça se pode esperar de uma pessoa culta e civilizada, não dá à autoridade alguma o direito de impor a todos, sem distinção, a mesma regra. Toda regra que não admite exceção é basicamente imoral e fonte potencial de injustiças.
Estrangular a liberdade de espírito de um filho de Deus é bem mais grave do que usar a pílula. Não é de leis e proibições que a humanidade precisa mais, mas de homens e de mulheres capazes de transformar a sua união em verdadeira ponte para o sempre e para o além! O que revela a pessoa moralmente imatura é precisamente a sua incapacidade de se deixar conduzir por sua própria consciência.
A visão que este papa tem da consciência é pessimista. Não só desconfia da falta de consciência moral, como desconfia de forma sistemática da consciência individual. Confia muito mais em sua própria infalibilidade como papa do que na honestidade da consciência em si mesma. É a primeira vez na história da Igreja que um papa trata a liberdade de consciência com tanta reserva. Reforçar a Doutrina Moral não é a maneira mais inteligente de atacar o problema da falta de moral. O que falta não são normas e leis, mas a vontade política de pô-las em execução. Falta, além disso, consciência, isto é, uma visão clara do sentido da existência humana. Uma situação desse tipo não se corrige depreciando o papel da consciência moral. A consciência continua soberana apesar das suspeitas com que a tratam os documentos oficiais da Igreja. Virá o dia e a hora em que todos, sem exceção, seremos julgados por ela.
Quando os compêndios de moral se referem à consciência errônea estão fazendo confusão entre consciência e pseudoconsciência. A consciência autêntica é interior, íntima e pessoal. A pseudoconsciência é uma superestrutura de natureza psicossocial, em certo sentido exterior à pessoa. Resulta de uma educação disciplinadora, destinada a fazer da criança um elemento socialmente assimilável. Quanto mais injusta, despótica e opressora for a sociedade que proporciona à criança este tipo de educação, tanto mais tirânica será o seu superego. Basta seguir Freud, identificando como ele o fez, superego com consciência moral para completar o estrago.
A desconfiança do papa é justificada. Só o alvo não é aquele que menciona. Não é a consciência que não merece fé. É todo um sistema pedagógico equivocado que está se desmoralizando por si mesmo. Na raiz dos problemas sexuais de hoje não se encontra a falta de disciplina, mas a incapacidade das pessoas de se disciplinarem por si mesmas. Tão prejudicial à vida em sociedade é a falta de autoridade quanto na Igreja católica é o seu excesso, já como mal crônico.
Autodisciplina significa ser capaz de responder de forma plena por sua liberdade. Ela inclui como elemento essencial o respeito pela liberdade do outro.

Padre Marcos Bach

terça-feira, 7 de outubro de 2014

REVISÃO DO CONCEITO FAMÍLIA

Nenhuma instituição social, seja ela política, cultural ou religiosa se dispõe a admitir sua parcela de culpa numa determinada situação. Seus porta-vozes não admitem que a situação da família seja tão desastrosa quanto dão a entender as estatísticas. Basta verificar os números para chegar à conclusão de que é preciso pensar em fazer mudanças, mudanças profundas, capazes de abalar a estrutura e até a própria base cultural do atual conceito de família.

À crença ingênua de que estas mudanças vão ocorrer à revelia do homem e de sua disposição de operá-las, é preciso opor, não apenas outra crença, mas uma atitude de como a que Jesus exigia de seus discípulos. O homem crente transfere à competência de terceiros o que na verdade é de sua responsabilidade pessoal.

Atribuindo à autoridade dos pais sobre os filhos uma origem divina, esta passa a ser exercida em nome de Deus e sob a jurisdição da Igreja, representada no caso por sua classe dirigente. A autoridade dos pais é de inspiração divina, não resta dúvida, mas seu exercício não pode ser terceirizado, isto é, não passa pela jurisdição e intermediação da Igreja ou de outra entidade religiosa qualquer.

O casamento é muito mais do que um simples contrato social. A simples definição do quadro jurídico-moral através da distribuição de direitos e deveres passa ao largo do essencial.
A família que vamos precisar, ainda não existe. Por ora não passa de ideal utópico. Os modelos existentes, o patriarcal, o doméstico e o atômico contêm elementos aproveitáveis, mas cada um deles por si é incapaz de prestar a uma humanidade mais evoluída a contribuição social que só ela é capaz de oferecer. Seria rematada estupidez pensar em substituir a família por outra instituição qualquer: política, ideológica ou religiosa.

É preciso ter a ousadia de pensar em algo de novo, em algo que pela primeira vez está procurando um lugar na história dos homens.

Utópica é toda realidade que ainda não encontrou um lugar (topos, em grego) na vida social humana, mas que o está procurando.

A família humana não é uma invenção da natureza, mas é obra do espírito humano. O tempo em que a luta pela vida se resumia na luta pela sobrevivência física e biológica, está cedendo lugar a outro tempo, o tempo da luta pela sobrevivência espiritual. É mais que evidente que o tipo de organização social centrado na luta pela sobrevivência física só pode dar origem a um modelo de organização familiar do mesmo tipo.

Hoje nos defrontamos com uma realidade em que a sobrevivência física é mais precária do que nunca. As armas nucleares nos deram de presente a possibilidade de nos autoextinguir como espécie biológica. Sem falar nas armas químicas e biológicas. A água que bebemos vem de longe e a comida que colocamos em nossas mesas não é fruto do nosso trabalho. Não foi produzida por nós, nem sequer por alguém que nos ama.

O ambiente urbano não é o mesmo que o ambiente rural. A maioria dos que vivem nas cidades é composta de pessoas que nasceram no campo e ainda trazem a roça em suas almas. Existe em suas consciências uma dicotomia, um fosso que as impede de encontrar a unidade interior. A necessidade as prende à cidade, mas a saudade as mantém presas ao mundo rural. Sentem-se deslocadas, divididas e incapazes de morar plenamente em si mesmas. “Quem quer ser normal deve saber morar, sem restrições, em si mesmo”, afirma Carl Gustav Jung.

Não são apenas os indivíduos que podem tornar-se esquizofrênicos, mas é possível que o mal atinja uma família inteira. É óbvio que não se pode esperar de uma família urbana o que se pode exigir de uma família campesina.

Muita capacidade de discernimento é necessária para impedir que se jogue fora o que não pode faltar numa visão verdadeiramente inteligente do papel da família numa sociedade para a qual não apenas o passado histórico, mas até o planeta Terra se tornou pequeno demais. Além deste, de jogar fora o que deve ser conservado, existe o perigo de conservar o que deve ser abandonado.

Discernir significa separar, julgar. E tem como objetivo possibilitar uma escolha mais inteligente e racional. É no terreno dos valores que se pretende operar uma triagem.

Num ambiente social conservador o antigo vale sistematicamente mais do que o novo. O moderno é visto com suspeita. Uma verdadeira teia de preconceitos e uma vigorosa onda de desconfiança cercam, ainda hoje, tudo o que integra os valores do mundo moderno. Os preconceitos mais robustos e as suspeitas mais arraigadas contra o moderno provêm dos setores religiosos. Um dos valores mais destacados do mundo cultural moderno é o processo de secularização ou laicização.

Tem por objetivo restabelecer a autonomia do profano em relação ao sagrado. Atinge os setores religiosos institucionalizados na medida em que estes procuram proteger seus interesses, abrigando-os sob o manto do sagrado.

A tutela religiosa de que a família é alvo, é amparada pela tese de que ela é uma instituição de origem divina, cabendo, por isso, aos representantes de Deus a missão de zelar por ela. Este zelo envolve mais do que simples cuidado, pois envolve também poder e autoridade.

Qual a religião em que a família não é considerada domínio religioso? Sujeita, portanto, à autoridade de superiores autopromovidos à condição de tutores da família.

Nada há no homem que seja mais livre e soberano que a sua consciência. Ninguém tem mais respeito por esta liberdade que o próprio Deus. A extensão deste respeito chega a ser escandalosa, pois inclui a existência de um inferno e de ambientes sociais em que é permitido rejeitar Deus.

O amor de Deus não é um amor que não é permitido renegar e desprezar. O amor é sempre muito maior do que a capacidade humana de compreendê-lo e de lhe corresponder. Jesus sabe disso melhor do que ninguém. Nossos amedrontados pastores ainda estão por descobrir a diferença que os separa da Pessoa do Bom Pastor.

Pastor inteligente e digno da confiança de suas ovelhas é aquele que sabe consultar o instinto de suas ovelhas.

Autonomia não é o mesmo que independência. O homem é um ser social não porque necessita da companhia de semelhantes seus, ou porque dependa deles. Aquele que ama não renuncia à sua liberdade, mas a funde com a de outro. Só o amor consegue esta façanha.

Fusão é mais do que simples soma. É síntese. A soma de um (1) mais um (1) é dois (2). Mas o resultado da multiplicação de um por um é um.

Aplicando esta técnica ao amor pode-se dizer que o amor não soma, nem divide, mas multiplica. Não destrói a unidade existente, mas a eleva a um plano superior, mais rico em potencialidades. A condição de ser social não torna o homem um necessitado, um indigente, um indivíduo incompleto e que a única resposta que lhe resta é a atitude de submissão e o sacrifício de parcela da sua liberdade em proveito do bem comum.

Nem dependência nem independência, mas interdependência, é este o laço que uma relação de amor costuma gerar.

Na medida em que uma dependência passa a ser recíproca, ela deixa de ser humilhante e injusta e passa a ser libertadora.
Simone de Beauvoir, em sua autobiografia, atribui a sua conversão ao ateísmo pela ideia de que Deus não precisava dela, ao passo que ela dependia em tudo de Deus. A verdade é, no entanto, outra: “Deus, cansado de se ver servido por escravos amedrontados e pusilânimes, resolveu dar início a um novo capítulo da história humana em que o homem é elevado à condição de sócio de Deus. O próprio Deus, assumindo o homem como sócio, tornou-se, Ele mesmo, ‘Sócio’ do homem”.

Se é verdade que o resultado desta nova sociedade é lastimável sob tantos aspectos, também é verdade que este é o único modo de tornar o homem sujeito da sua história e não mero espectador.

Padre Marcos Bach