quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O AMOR GERA IGUALDADE NA RELAÇÃO DO CASAL
O grande problema ético com que um casal de hoje se defronta não é a ignorância ou desconhecimento da lei moral, mas a energia necessária para pô-la em prática. De pouco adianta apelar para a coragem de um soldado que não vê o menor sentido em expor-se ao risco de perder a vida. Não há sistema moral capaz de gerar por si as energias que sua implantação requer. Todo apelo moral é impotente. Por isso é necessário ir além do discurso e da pregação moral.
A frequência dos sacramentos, a oração e a penitência são meios que nenhum tratado de espiritualidade deixa de mencionar. Mas também tudo isso não basta porque representa uma forma de ajuda externa. Temos que ir mais longe, isto é, temos de penetrar no íntimo das pessoas, pois é lá que está a chave da solução. Não há truques mágicos capazes de proporcionar a um casal a energia necessária para recomeçar sempre de novo, pois o casamento é um edifício que é preciso consertar e remodelar sempre de novo. Casar é como ir morar numa casa que nunca vai ficar pronta.
Donde tirar a paciência para não desanimar? Este é o problema para o qual a espiritualidade cristã tenta encontrar uma solução. Ela se baseia na crença de que a salvação não vem de fora, mas do interior do próprio homem. Não há juramentos e convenções capazes de suprir a falta de convicções pessoais. Não é a Igreja que deve proteger a um casal católico. É o próprio casal que deve fazer isso. E se ele não estiver empenhado em fazer do seu casamento uma experiência digna de ser levada até o fim, isto é, até a plenitude, então é inútil cercá-lo com muros de proteção. O tentador sabe muito bem como escalar um muro. A única coisa que não consegue é penetrar em recintos onde o homem e Deus estão unidos num propósito comum. 
A fidelidade conjugal é uma graça de Deus, o resultado de um amor que une entre si o homem e Deus muito antes de se tornar imperativo moral. Pobre é a fidelidade quando resulta tão somente do sentido de obrigação moral. A fidelidade conjugal ou é um desdobramento da fé em Cristo, ou só terá condições de sobrevivência sob a forma de um compromisso que não se pode trair. Hoje a infidelidade conjugal é vista menos como traição ou tentação do que como alternativa e como válvula de escape. O adultério tornou-se chique. A fidelidade deixou de ser vista como prova de amor. Agora o sinal de exuberância sexual é a infidelidade.
Entre os judeus adúltero era apenas o homem que se passava com a esposa de outro judeu. Adúltera, no entanto, era toda a mulher casada que fosse pilhada na cama com outro homem. Dois mil anos de cristianismo não foram suficientes para apagar por completo a diferença entre o modo como é encarado o adultério. Nesta área o peso maior do compromisso conjugal recai ainda sobre a mulher. Ora, se o cristianismo tivesse fermentado a fundo a nossa assim chamada cultura cristã, esse tipo de discriminação já não poderia existir. A existência de uma dupla moral sexual prova que nesta área ainda há muito caminho a ser percorrido. A mulher é pessoa tanto quanto o homem, não em sentido análogo, mas unívoco. Se tomarmos o fato de alguém ser pessoa como base de valoração, qualquer tipo de duplicidade moral é simultaneamente injusta e errônea. Paternalismo e machismo são fonte de pecado e não apenas preconceitos.
É próprio do amor gerar uma relação de igualdade entre duas pessoas. Por isso é preciso ter consciência de que qualquer forma ou tentativa de inferiorização de um dos parceiros é muito mais do que uma inócua manifestação de ignorância. Não é somente pecaminosa. É fonte envenenada de injustiças sem conta. Não podemos contentar-nos com apelos à boa vontade de um casal. Temos que pensar em reformar a casa em que são obrigados a viver. Isto é, temos que reformar o tipo de matrimônio que lhe impomos em nome da lei e do direito. Essa mudança o casal não tem condições de realizar. Mas pode começar a tarefa, rompendo com alguns dos elementos estruturais que mais contribuem para inferiorizar um dos parceiros em proveito do outro. A educação dos filhos é uma dessas áreas em que as responsabilidades são, via de regra, mal distribuídas, para mencionar apenas um exemplo.
Um casal que não tem a consciência nítida de que sua união envolve, acima de tudo, um compromisso com Deus, ainda não descobriu o caráter sacramental e religioso do matrimônio. Todo matrimônio é por sua natureza um ato religioso, pois foi o Criador que o instituiu, já na aurora dos tempos históricos, como muito bem o demonstra a Bíblia. O casamento entre cristãos é duplamente sagrado, pois, além do compromisso com a vontade e as intenções do Criador, envolve outro compromisso, muito mais radical e cimentado com o Amor de Cristo.
A indissolubilidade do matrimônio cristão resulta de um laço duplo, o natural e o sobrenatural. O casal cristão dispõe de energias espirituais de que o casamento não-cristão não dispõe. Quando um casal de cristãos apresenta e revela o mesmo grau de instabilidade que um casal de ateus, faria bem em casar de novo pelo religioso. Pois é inadmissível que possa contentar-se com enfrentar em tudo o mesmo tipo de problemas com que se defrontam os que vivem o seu casamento completamente desligados de qualquer compromisso religioso.
Um casal cristão dispõe da vantagem de poder contar não só com os recursos da natureza, embutidos na sexualidade de cada um dos parceiros, mas tem o privilégio de poder contar com as energias poderosas da graça de Cristo. O fracasso de um casamento entre cristãos sempre envolve um grau de culpabilidade muito maior do que o de casais que nunca ouviram falar em Cristo ou em Deus. Seria, porém, cometer uma tremenda injustiça, imputar a culpa toda apenas ao casal.
Grande parte dela deve ser imputada às Igrejas que têm o dever sagrado de zelar pelo progresso espiritual de seus fiéis. No terreno da Fé em Cristo ou se progride, ou se regride. Não há como permanecer num meio termo confortável. Nas coisas do espírito ou se avança ou se estagna, dizia São João da Cruz. Acontece aí algo parecido com a situação em que se encontra uma pessoa colhida por uma tempestade de neve: sentar-se à beira do caminho é o mesmo que pedir para morrer. De uma nevasca se pode fugir, mas é impossível fugir do mundo e de si mesmo.
Um casal experiente sabe que a vida conjugal e familiar oferece oportunidades sem conta a quem quiser aproveitá-las. As chances de crescimento espiritual são em certa medida bem mais abundantes e convidativas do que as que o celibatário encontra na solidão de seu mosteiro. Só um modo muito unilateral e preconceituoso de pensar pode levar alguém a atribuir ao celibato poderes sobrenaturais que nega ao sacramento do matrimônio.
Quem não casa não é por essa razão melhor que aquele que resolve casar. A capacidade de amar independe por completo do estado de vida que uma pessoa abraça. Não existe essa coisa chamada graça de Estado. O Estado de Graça, esse sim, existe, mas nada tem a ver com Estado de vida.
Tudo o que acontece entre Deus e a alma é absolutamente íntimo, misterioso e indevassável a tal ponto que nem a própria alma sabe a quantas anda. É terreno sigiloso em que qualquer julgamento não merece mais crédito que outro palpite qualquer.
Todos são chamados à santidade. Só há uma condição: a entrega total e absoluta de si mesmo ao Amor Incondicional de Deus que assumiu forma e expressão humana na Pessoa de Jesus.

Padre Marcos Bach 

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

ESPAÇOS AMPLOS E RESTRITOS À PARTICIPAÇÃO

Há sociedades que oferecem espaço amplo à participação de todos na condução dos negócios públicos. E há sociedades que reservam este espaço a uns poucos detentores do poder decisório, reduzindo a maioria à condição de instrumentos passivos.

As sociedades totalitárias, absolutistas e paternalistas dispensam quase por completo a participação ativa da consciência individual de cada um. Reprimem até toda e qualquer forma de conscientização. A alienação psicológica e moral lhes serve melhor aos interesses. A autonomia moral das consciências não se ajusta a seus modelos paternalistas de governo. A tutoria moral é uma das muitas tentativas mais bem sucedidas de esvaziar a liberdade de consciência de todo e qualquer sentido e conteúdo.

Em muitos casos a tutela moral é exercida em nome da religião e por seus representantes. Ou, então em nome da pureza ideológica do partido. O paternalismo se oculta por detrás de atitudes aparentemente inspiradas na mais pura das solicitudes. O que, no entanto, não impede que a consciência da grande maioria de “menores morais” fique impedida de atingir a plena autonomia.

Como Deus não se dirige ao ser humano a não ser através da sua consciência, não podem ser tomados como legítimos representantes de Deus e interlocutores morais válidos aqueles que se atribuem autoridade e poder sobre as consciências dos que consideram seu rebanho e feudo.

Em todas as sociedades existem as figuras do “sábio”, do “sacerdote” e do “médico”. A cada uma dessas figuras o povo atribui um poder especial, que os demais membros da coletividade não possuem.

O “sábio” é fonte de saber arcano e secreto, cuja posse lhe garante uma posição social privilegiada.

O “sacerdote” é aquele que priva diretamente com a divindade. Conhece os caminhos que levam até os deuses.

O “Pajé” ou médico oficial da tribo possui o segredo das plantas, raízes e ervas medicinais. Emana dele um fluido misterioso que cura o doente, desde que tenha fé.

O homem do povo não conhece a relação direta com Deus. Em suas rezas e devoções se dirige ao “santo”, à “Santa Virgem” e ao sacerdote. Este lhe oferece como alimento espiritual a “palavra” de Deus e os “Sacramentos da Salvação. Em tudo isto o aspecto menos cultivado é o contato pessoal, direto e imediato com Deus.

As coisas de devoção tomam o jeito de um comércio. Bastante bem explorado. O excesso de elementos intermediários entre o homem e Deus tem o inconveniente de coisificar e despersonalizar e relação religiosa, alienando a pessoa de uma das mais poderosas fontes de energia espiritual.

O homem de hoje já adquiriu o hábito de procurar o médico por qualquer motivo. Em lugar de cuidar de sua saúde pessoalmente, faz um pouco de tudo para estragá-la.

Todo cortejo de dependências conflita de maneira frontal com o princípio moral da autonomia. Segundo uma lei básica da vida o ser se organiza a partir “de dentro”. À medida que recorre à assistência externa diminui a sua capacidade de autonomia.

A questão que ainda hoje coloca as autoridades em guarda diante das exigências da liberdade de consciência, pode ser formulada deste modo: “merece a consciência tamanho voto de confiança, quando se tem em conta a situação sociocultural concreta?”. A autocensura é ótima onde existem pessoas capazes de exercê-la.

Para a consciência cristã o sentido da autoridade não coincide nem com o exercício do poder nem com a conservação de um determinado sistema de ordem. O objetivo imediato da atividade de um magistrado cristão (seja ele religioso ou civil) é a promoção moral da comunidade humana, a que serve. Esta, por sua vez, não é idêntica à ordem. A qual, portanto, não pode ser identificada com as necessidades e exigências de um sistema. 

O conflito entre autoridade e liberdade de consciência ocorre as mais das vezes em virtude de uma formulação errônea do conceito de autoridade e ordem e sua relação com o desenvolvimento de uma comunidade. Tratar os seus membros como “menores” do que são na verdade, não é o modo mais inteligente de conduzi-los à maioridade ética e social. A autonomia moral não constitui nenhuma ameaça séria ao exercício legítimo da autoridade. Somente não se dá com o arbítrio, o autoritarismo, o absolutismo. Os piores inimigos da autonomia moral e que constituem as camadas mais parasitárias da sociedade são o tecnocrata, o burocrata, o plutocrata. E no campo religioso, o hierocrata, o administrador das realidades sagradas.

Padre Marcos Bach

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

MARX DESMASCAROU O CAPITALISMO

Marx viu muito bem que uma sociedade submetida às leis do mercado só pode merecer o epíteto de “sociedade pirata”. O mercado é uma abstração ideológica e sua existência não se baseia em argumentos científicos.

O que chamamos de mercado é composto de pessoas. Parte delas quer vender ou trocar. A outra parte compõe-se de consumidores (diríamos hoje). Pessoas que querem comprar, adquirir e entulhar suas casas com produtos cujo valor é altamente perecível. Tanto a moda como o avanço tecnológico funcionam como escavadeiras: limpam o campo de mercadorias obsoletas! Montanhas de computadores já foram parar no lixo porque neste terreno, mais que em muitos outros, vigora a “lei do melhor”. Melhor, ao menos por ora, é o produto que produz mais e dá mais lucro a quem o fabrica e vende.
          
O que Marx, afinal, queria? Queria uma sociedade sem proprietários! Queria uma sociedade baseada no trabalho e não no capital. Como bom judeu, conhecia a Kabala judaica e sabia qual o papel que o trabalho desempenha no campo social. “Quem não trabalha, não come”, dizia o judeu Paulo de Tarso. “A cada um segundo a sua capacidade e de acordo com a sua necessidade”, dizia Marx.
          
Quem quer compreender Marx deve ter em mente que seu propósito era lançar as bases de uma sociedade em que a preocupação pelo material deixasse de ser problema. Enquanto os pais do liberalismo econômico se preocupavam mais com o destino do capital, Marx se preocupou quase que exclusivamente com o futuro dos que só podem contar com o trabalho como instrumento de promoção social e como meio de dar um sentido e uma relativa aura de dignidade à sua existência. Se as Igrejas cristãs da época tivessem tido a capacidade de compreender que o homem é mais importante que as máquinas por ele construídas, hoje a face do mundo talvez fosse outra, bem mais humana.
          
Marx era um homem inteligente e bem intencionado, pobre e sem grandes ambições. No fim da vida chegou à conclusão de que tudo o que escrevera e pregara teria que ser revisto. Morreu sem terminar a obra monumental da sua vida, que é O Capital. Se é verdade, morreu como arrependido tardio. Não teve tempo de refazer o seu itinerário messiânico.
          
Apareceram os Lênins, os Stalins, os Mao Tsé-Tungs e os Pol Pots, que se encarregaram de transformar em trevas o que no pensamento de Marx era luz, aurora e prenúncios de um novo tempo. “Não sou marxista”. Marx mesmo dizia que não era marxista. Acho ridículo prender-se a fórmulas. Ou a dogmas. Marx desmascarou o capitalismo e a falsa noção de liberdade do liberalismo. Fez o que Cristo fez em outra área ao desmascarar a hipocrisia do sistema religioso judaico do seu tempo. Não conseguiu, no entanto, ir além do terreno das boas intenções por não ter dado em seu sistema ao amor o lugar que Cristo lhe reservara.    
          
Rejeitar a contribuição de Marx para o advento de um mundo mais humano não constitui prova de grande inteligência. Menos ainda é prova de grande fé em Deus. O pensamento marxista é muito mais incompleto do que falso. Falta quem se anime a completá-lo, acrescentando-lhe a dimensão do amor que desconhece. É preciso apoiá-lo numa base mais sólida e confiável do que a frágil e lábil consciência da classe proletária.
          
Se Marx se esqueceu de falar no amor, é possivelmente por não crer nele. A sua vida matrimonial foi a mais burguesa e proletária ao mesmo tempo que se pode imaginar. Tinha por propósito delinear as estruturas de uma sociedade justa da qual o amor faria parte. Não se lembrou que a justiça é fruto do amor, ao contrário do que supunha. Pretendeu construir um edifício começando pelo telhado.

Marx nasceu, viveu e morreu burguês. Nem por isso alguém se lembrou de condená-lo. (Na prática) viveu e morreu pobre. Este fato por si só o recomenda como pessoa digna de admiração.

Não é crime nenhum sonhar com uma sociedade rica, cheia de conforto material, desde que esta fartura obedeça a três requisitos fundamentais: primeiro, não impede o coração de aspirar a valores mais altos, que são os valores espirituais. Um belo leito não deve impedir um casal de perceber a diferença que existe entre prazer e conforto dum lado, e amor e felicidade do outro.

Segundo, permanecer consciente de que o problema, se algum há, não está na abundância, mas no excesso. Uns têm demais e por isso é que outros saem de mãos abanando dos nossos “Supermercados”.

Terceiro, usar as coisas, mesmo as que nos pertencem, de acordo com a lei como se nos tivessem sido confiadas em comodato, sob a forma de empréstimo.
          
O conceito cristão de propriedade econômica difere por completo do conceito romano e capitalista. Um judeu ortodoxo comporta-se em relação aos bens materiais como funcionário e gerente de riquezas que não lhe pertencem. Para ele a Terra Prometida e suas riquezas são propriedade de Javé, o Deus de Israel.

Os judeus sempre defenderam com tenacidade indomável a Terra que Javé lhes confiara. Se hoje existe um Estado de Israel, é porque 2.000 anos de exílio e diáspora não foram capazes de apagar da consciência do povo judaico a fé na promessa messiânica feita por Javé a Abraão. A fé nas promessas de Jesus foi a marca registrada das primeiras Comunidades Cristãs.

É importante que a Igreja fale à humanidade a linguagem da fé. Mais importante é que seja para o mundo um sinal e uma garantia de esperança. Sua missão essencial, porém, é ser pregoeira do amor. Quando os papas falam do amor, tem-se a impressão de que para eles o amor é apenas uma obrigação moral, igual a tantas outras. Preferem empregar termos como caridade e solidariedade, em lugar da palavra amor.
          

João da Cruz, Teresa de Ávila e Teresinha falam do amor com o calor e a veemência própria de quem está apaixonado. Não se importam muito em saber se o que pensam e dizem está de acordo com as regras do ensinamento ortodoxo. Dedicam mais fé no amor do que nos ensinamentos da fé. São gigantes da fé na medida em que têm a coragem de subordinar os preceitos da sua fé às exigências do seu amor para com Deus e para com a humanidade toda. 
Padre Marcos Bach

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

DEGRADAÇÃO HUMANA NÃO CABE A NINGUÉM

Para um homem de mentalidade moderna viver de esmolas é tão inaceitável quanto viver do roubo. O apóstolo Paulo, fabricante de tendas, vangloriava-se de viver do fruto do seu trabalho.
          
Houve época em que viver de esmolas era considerado como demonstração de fé na Providência Divina. Este tempo passou. Hoje não é fácil encontrar quem não concorde com Paulo: “Quem não trabalha não tem direito a comer”.
          
Hoje vivemos uma época atormentada pela falta de empregos. Como convencer um desempregado de que ele não é um mendigo?
          
O trabalho não é apenas uma obrigação e uma necessidade social. É, acima de tudo, um direito. Um direito natural, inerente à própria condição humana.
          
No paraíso socialista sonhado por Marx, o acesso ao mercado de trabalho é tão fundamental quanto o direito à vida. É parte integrante de uma vida humana digna deste nome.
          
Se é verdade que o trabalho dignifica o homem, porque condenar tantos honrados pais de família à mendicância? Quem não tem emprego só pode ter-se na conta de mendigo numa sociedade acostumada a julgar as pessoas a partir do que produzem.
          
Marx nunca foi um trabalhador no sentido usual do termo. Sempre foi o que se pode chamar de “rato de biblioteca”, homem de gabinete. Seu exemplo destoa de tudo o que escreveu. Era um homem de ideias, um tanto alienado do mundo do trabalho tal como o conhece e sofre um operário ou um camponês.

Marx também foi a seu modo um contemplativo: passou os melhores anos da sua vida debruçado sobre a antevisão de um mundo futuro a ser construído. Era um visionário, tanto no bom quanto no mau sentido da palavra.
Basta um olhar bem superficial sobre o panorama do mundo atual para se ter uma ideia do que é um mundo dominado por especuladores calculistas e por materialistas profissionais.
          
O Projeto Messiânico de Marx fracassou. É cômodo tripudiar sobre a desgraça alheia. Marx, Lênin e Stalin tentaram. O fato de não terem tido sucesso pleno não diminui o mérito de terem tido a coragem de tentar.

Marx preocupou-se com o futuro da humanidade. Lutou contra o sistema capitalista porque se convencera de que o capitalismo era simplesmente incompatível com valores fundamentais de uma sociedade humana aberta ao progresso, como justiça social, igualdade de direitos e liberdade civil. Foi ingênuo: a sociedade europeia não estava madura para trocar o que conseguira conquistar, com muito suor e sangue, por um pretenso paraíso social tão utópico quanto a ideia de colonizar a lua.

Moderno, no meu entender, não é apenas aquele que está em dia com o pensamento e a escala de valores do seu tempo. Seria o mesmo que cair no logro de Marx, supondo que a história se encaminha para um ponto ideal. É bom não esquecer que Marx era hegeliano. O “leite” que serviu é o mesmo que alimentou a carreira acadêmica de Hegel. Trocou os sinais, mas ficou fiel aos mesmos parâmetros que nortearam o pensamento de Hegel.
          
Na base da filosofia de Hegel e de Marx está a fé na existência de um mundo anterior e superior a tudo o que o homem esteja em condições de criar e impor por vontade própria. O mundo é dominado por ideias que determinam a história humana muito antes que apareça um Marx, um Lênin ou um Mao Tsé-Tung. Marx diria: “o que determina o futuro histórico da humanidade pouco depende do que os homens pensam, mas depende por completo do que os homens fazem”. Para Marx a história é um conjunto de acontecimentos que apontam um rumo. Só compreende a história aquele que tem a capacidade de perceber o mais contido em cada evento histórico.

Padre Marcos Bach

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

CONSCIÊNCIA E LIBERDADE SÃO SINÔNIMOS
Autodisciplina significa ser capaz de responder de forma plena por sua liberdade. Ela inclui como elemento essencial o respeito pela liberdade do outro.
Por que restringir a liberdade de quem sabe usar dela sem prejudicar a de seus semelhantes? Em nome de Deus? Em nome do bem comum? Em nome da moral? Que moral é essa que tem medo da liberdade?
O que derrubou o comunismo não foi o desastre econômico por ele provocado, mas a ânsia de liberdade. É o que dizem analistas sérios e competentes. O mesmo destino terão todos os outros regimes semelhantes. Não pode haver progresso verdadeiramente digno do homem sem ampliação constante e significativa do espaço social, psicológico e ético destinado à ação criativa e à iniciativa moral da consciência do homem.
Consciência e liberdade são, até certo ponto, sinônimos: uma não poderia existir sem a outra. Por isso é altamente prejudicial sob o aspecto psicomoral separar as duas. A consciência sem a liberdade torna-se órfã. E a liberdade sem consciência é precisamente aquela que nos está conduzindo à desgraça e à desorganização social.
Todo organismo vivo precisa de um espaço apropriado para se desenvolver. Esta é uma lei que também se aplica ao ser humano. O espaço do homem é bem mais complexo e exigente do que aquele em que uma planta consegue medrar. O ambiente físico, a atmosfera psicológica, o nível ético, a estrutura socioeconômica e a atmosfera espiritual mais que tudo, formam o mundo do homem. O que a ecologia é para a planta, a sociedade é para o homem. “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”, diz um ditado popular. Também vale para o desenvolvimento moral de uma sociedade o princípio da livre iniciativa. Onde o amor é tratado como uma espécie de epifenômeno moral ou como um dever entre muitos outros, não existe clima propício à eclosão de uma consciência moralmente adulta.
O crime premeditado, a violência gratuita, não são obra da consciência, mas nasceram da falta de consciência. Sensibilidade moral, respeito pela pessoa humana e pela natureza são disposições que só desabrocham na consciência de pessoas que sabem amar. E o amor é um sentimento que não é possível prescrever nem impor. O amor é um sentimento nobre, é como a princesinha dos contos de fada: só acorda quando despertada por outro amor. Só aprende a amar quem se sabe e se sente amado por alguém. De nada adiantam receitas, doutrinas, instruções. A princesinha adormecida no coração de cada ser humano merece respeito. Acordá-la com gritos e pauladas é o mesmo que tentar matá-la. O príncipe que tiver a intenção de despertá-la só dispõe de um meio verdadeiramente eficaz: o beijo!
É da natureza do ser humano só amar a quem for capaz de cativá-lo. Em toda relação de amor está presente um jogo de sedução.
Será que não é possível substituir uma moral que afugenta precisamente os mais audaciosos por outra mais atraente e mais sedutora? Qual o futuro de uma religião e de um sistema moral que não atrai nem desperta entusiasmo? O que os jovens querem é saber o caminho que conduz à felicidade! Um sistema ético deveria ser exatamente isso: um roteiro que aponta o caminho para a FELICIDADE!
Saber o que se deve fazer é uma coisa. Estar em condições de realizá-lo, é outra bem diferente.
Os documentos da Igreja insistem em sublinhar as obrigações e responsabilidades de um casal católico. Aos casais que encontram dificuldade em praticar o que a Igreja prescreve, recomenda-se a oração e a frequência dos sacramentos. É o mesmo que receitar churrasco gordo a um subnutrido. É remédio demais para a maioria dos casais atormentados por problemas familiares. A oração é um santo remédio, não há dúvida, mas não é porrete, remédio capaz de curar tudo. Apelar para a fé também pouco adianta, pois a fé serve para iluminar o caminho, mas não tem o poder de resolver qualquer espécie de problema.
Um dos grandes defeitos do discurso moral da Igreja está na falta de uma base psicológica adequada ao nível em que ela coloca as exigências do sistema moral que apresenta. Sem o apoio de um substrato psicológico e material satisfatório, o dever conjugal se transforma bem depressa em fonte de frustrações e de conflitos. Para fazer do ato conjugal um ato de amor, um casal necessita de muito mais do que uma cama e um pouco de paciência. Uma cama limpa, um ambiente tranquilo, uma disposição festiva e uma vontade de sair da rotina do dia para mergulhar no mundo encantado e místico, que é o mundo do amor: tudo isso é, no mínimo, tão importante quanto qualquer prescrição moral.
Ignorar o substrato psicofisiológico é grave. Ninguém constrói uma casa sem examinar bem o solo do lugar em que pretende construí-la. Os Papas da Igreja católica se preocupam até por demais com a solidez do edifício, isto é, do sistema doutrinário a que chamam de Sagrada Doutrina da Fé. Pouca atenção prestam às condições do solo a que este edifício se destina.  As estruturas sociais e familiares existentes e as condições psicológicas dos candidatos ao casamento não recebem a mesma atenção.
Pior do que ignorar e menosprezar as condições de natureza infraestrutural é supor que o matrimônio perfeito é aquele que em tudo responde às exigências da lei moral. Também aqui vale a palavra de Jesus: “Depois que tiverdes feito tudo o que vos foi prescrito, dizei: somos servos inúteis”. No Reino de Deus não há lugar para os que só fazem o que é da sua obrigação. Para ser um bom cristão não basta cumprir a lei. Por defender e sustentar esta tese é que São Paulo entrou em choque com os representantes do judaísmo oficial do seu tempo.
A moral representa tão somente uma etapa na caminhada do homem. Para ele só há um termo final de chegada: a perfeita união com Deus! O comportamento moral não produz a união com Deus, mas é condição indispensável para que ela aconteça. O homem só tem o direito de propor aliança com Deus depois que tiver tomado posse plena de si mesmo. Quem quer conhecer a Deus tem que conhecer primeiro a si mesmo, dizia Santo Agostinho. Antes de se tornar um pressuposto moral, o conhecimento de si mesmo é o fruto de um esforço pré-moral, que é o esforço psicológico.
Mas o ser humano é mais do que a síntese de tudo o que já foi através das gerações que o precederam. A preocupação pelo futuro faz a diferença entre homens e animais. A diferença existente entre a biologia e a história é a mesma que separa o animal do homem. O futuro da espécie humana não se encontra registrado em genes: deve ser criado. O ponto de partida não é o passado, mas é com base nas potencialidades ainda inexploradas do homem e da natureza que se há de construir a humanidade da Nova Era, a das viagens interplanetárias e do diálogo com civilizações extraterrestres.
Este novo representante da raça humana deve ser criado. O modelo já existe: é o Homem Novo, nascido do Espírito, ao qual se referem Cristo e o apóstolo Paulo. Ele não sairá da retorta de algum alquimista, nem da proveta de um geneticista. Só pode ser o produto de um novo processo cultural e de um modo novo de despertar no homem o potencial imenso de faculdades até hoje inaproveitadas. Em matéria de recursos tecnológicos quanto resta por ser inventado!
É uma lástima que o progresso tecnológico, embora bem modesto, se encontre tão à frente do progresso moral e espiritual da humanidade. É só pensar na capacidade humana de dar e receber amor. Psicólogos há como Rollo May, Viktor Frankl e Erich Fromm, que não hesitam em afirmar que amor e amizade são algo de muito raro. São terrenos praticamente inexplorados. Um “grande amor” é tão raro quanto à passagem de um cometa. “Dois, três a cada século,” dizia Albert Camus.

Padre Marcos Bach

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A LEVEZA DO AMOR

Não há dúvida: o Pai do Céu nos ama! Mas não alardeia este fato aos quatro ventos! Obriga-nos a procurá-lo e a descobri-lo! Como todo bom cavalheiro, Deus é discreto: seu Amor não pesa, não fere e não machuca ninguém. É leve como a luz!
           
É esta leveza que o devasso profana! Jamais deveríamos aceitar como sendo cristão um sistema moral que acrescenta mais peso ao que já é pesado por natureza.
           
Vida é leveza! É por isso que as plantas crescem para cima! Não fosse a sua leveza, astro algum conseguiria flutuar no espaço com a elegância que lhe é própria.
           
Sabemos (ou poderíamos saber) que o amor torna leve o que sem ele seria simplesmente insuportável! O amor pode tornar leve e feliz até a vida de um escravo!

Se em nada o diminuiu, o que Cristo veio acrescentar ao amor humano? Primeiro transformou-o em moeda corrente, igualando em dignidade o amor do pobre ao do rico, o amor da faxineira ao do sacerdote. Mais do que supor e exigir igualdade, o amor a cria.
           
Lá onde existem diferenças de ordem hierárquica, o amor ainda não teve tempo ou oportunidade de manifestar-se em toda a sua pujante plenitude!
           
Jesus se parecia tanto com os seus discípulos que Judas teve que dar um sinal aos soldados que o vinham prender.
           
O pedaço de pão dado a um faminto tem o mesmo valor que o pão eucarístico, pois em ambos o que determina o valor aos olhos de Deus é o amor com que é praticado e não o gesto em si. “Se tiveres alguma diferença com teu irmão, deixa o sacrifício e reconcilia-te primeiro com ele” (Mt 5,24).
           
Jesus popularizou o mandamento do amor. Há, no entanto, quem acha que Ele foi longe demais e que acabou vulgarizando o amor, despojando-o de certa aura de sacralidade ligada a formas de vida consagrada ao culto divino.
           
No pensamento de Jesus todo amor dignifica, eleva e enobrece! Não são as pessoas que degradam o amor ou o tornam nobre. O amor possui o poder de enaltecer aos olhos de Deus tanto aquele que ama quanto aquele que é amado! O desejo de ser amado faz parte de uma boa saúde psico-moral e mental! A necessidade de amar é a mesma que a de respirar!
           
O que Cristo veio trazer-nos é um amor novo, uma faculdade qualitativamente superior de amar. Fez o que o pomicultor faz quando enxerta uma das suas macieiras silvestres. Pode-se comparar a contribuição de Cristo à economia da evolução humana com a atividade de um perito em horticultura. Jesus chama a Deus de agricultor (Jo 15,1).
           
O vigor e a vitalidade de um bom enxerto depende de dois fatores básicos:
1) O chamado “cavalo” ou “hospedeiro” será tanto mais apropriado à tarefa quanto mais selvagem e rústico for. Pode ter espinhos e não produzir mais que frutos inaproveitáveis, mas deve ser resistente a pestes e pragas. Mais que tudo deve ser perito na arte de deitar raízes, raízes abundantes, fortes e profundas! Deve ser especialista na arte de tirar do solo e da atmosfera o máximo de nutrientes aproveitáveis!
           
Sua contribuição para a produção de belos frutos é indireta, mas absolutamente indispensável. É ele que aproveita o adubo colocado em seu raizame. É ele, o humilde “cavalo”, que transforma umidade em seiva e a canaliza para o alto da planta. Os frutos, quem os produz são os ramos, mas o mérito principal por tudo não lhes pertence!
           
2) O “hóspede” que veio morar na mesma planta juntamente com o “hospedeiro” formando com ele um todo indissolúvel, é de estirpe mais nobre! É representado sob a forma de uma “gema” ou de um ramo extraído de um galho ou ramo produtivo de uma planta adulta. Numa planta bem enxertada só a gema tem o direito de brotar e de se expandir. É extremamente importante impedir o aparecimento de “ladrões”, de rebentos parasitários, tão vorazes quanto uma célula cancerosa! O erro do tumor cancerígeno e maligno não reside no fato de andar sempre com fome, mas no fato de se esquecer de que pertence a um Todo Maior e que outros conjuntos orgânicos também andam com fome.
           
O amor próprio passa a se tornar cancerígeno e maligno a partir do momento em que nos esquecemos de reparti-lo! Quem casa com a intenção de acrescentar algumas vantagens a mais à sua liberdade de solteiro, está redigindo o primeiro parágrafo do seu futuro pedido de divórcio!

Padre Marcos Bach

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

ERA DA “AMORIZAÇÃO”

Estamos entrando na Era da “Amorização”, como a chama Teilhard de Chardin. Tudo o que esperávamos alcançar competindo e rivalizando, matando-nos e nos explorando mutuamente, o podemos conseguir de maneira muito rápida e fácil, amando-nos uns aos outros como Cristo nos ensinou. Cristo se atreveu a cruzar o Rubicon que separava o Céu da Terra e os homens de seu Criador. Veio trazendo consigo um “fogo” desconhecido até então, o “fogo do Amor”. “Vim para lançar fogo sobre a terra e o que mais desejo é que ele se alastre” (Lc 12,49).
        
“O dia em que a humanidade descobrir o Amor será como no dia em que descobriu o fogo” (Teilhard). É com este “fogo” que Cristo deseja “batizar” a cada um de nós (Cf. Lc 3,16). 

A jornada espiritual de uma alma em demanda do seu habitat definitivo é precedida de muitos preparativos, mas a viagem propriamente dita só tem início a partir de certo momento: é quando o “avião” está pronto para decolar!
        
Cada passageiro em sua poltrona, a despensa bem fornida de “provisões de boca” e os tanques abarrotados de combustível: verificado tudo isto, o piloto pede autorização para levantar voo! Dá para voar sem passageiros e sem “munição de boca”. O que não dá é voar sem combustível.
        
O combustível que impulsiona uma alma em sua jornada espiritual rumo ao infinito e ao desconhecido é o Amor de Deus. É Deus que fornece à alma o combustível de que ela necessita. Todos os místicos cristãos são unânimes neste ponto: “a santidade é obra exclusiva de Deus”! Ninguém se torna santo, como Deus é santo, por mérito próprio! O máximo que a alma pode fazer por conta própria é abandonar-se inteiramente e sem resistências ao “fogo do Amor Divino”. Nenhum autor descreveu todo este processo tão bem quanto São João da Cruz.
        
O processo de santificação da alma começa no momento em que alguém, inspirado pelo Espírito de Deus, toma a decisão de se confiar totalmente ao Amor do seu Deus! De esperar só dele o que até então esperara de si e de outros. Esta decisão equivale a uma sentença de morte e a uma capitulação incondicional do Eu em benefício do Self. Representa o início de uma jornada em direção ao seu próprio interior. O verdadeiramente santo é alguém que se conhece melhor que ninguém, pois aprendeu a arte de se “ver como Deus o vê”. Quem se abandona de todo ao Amor Divino acaba vendo tudo com “os olhos de Deus”: vê as coisas todas em sua verdadeira dimensão! Não despreza o verme que rasteja a seus pés! O santo é alguém que valoriza tudo e não despreza nada. Consegue ver grandeza e beleza onde outros só veem baixeza!
        
O primeiro passo que Paulo deu após a conversão foi “cair do cavalo”. Logo em seguida “ficou cego” até o dia em que lhe vieram a cair dos olhos as “escamas” que o impediam de ver as coisas como Cristo as via!

Nos tratados de espiritualidade a jornada espiritual é dividida em três vias: a via purgativa; a via iluminativa; e a via unitiva. Em síntese: o candidato à vida perfeita deve passar por um processo preliminar de “purificação”. Tudo o que o impede de refletir com perfeição a imagem de Deus deve ser eliminado.
        
Paralelo a este, um segundo processo tem início: o da “iluminação”, como o chamam os místicos. Um último passo é dado quando a alma começa a trilhar a chamada “via unitiva”.
        
Desintoxicar a mente, o espírito e a alma, descarregar lastro inútil, livrar-se de dependências viciosas e de toda e qualquer espécie de medo: eis a primeira tarefa que aguarda o candidato à perfeição cristã.
        
Muitos principiantes desistem já no meio do primeiro estágio, pois ele exige paciência, perseverança, honestidade fora do comum e muita humildade. Hábitos adquiridos ao longo de anos são pertinazes e não cedem facilmente. Certamente não é com uma “confissão geral” que é permitido considerar encerrada a via purgativa. Vícios são matreiros e têm o mau hábito de camuflar-se transformando em “virtude” o que em verdade continua sendo vício. Substitui a falta de fé colocando em seu lugar o fanatismo e em lugar do zelo pelo bem coloca o escrúpulo, e assim por diante. Cria falsas virtudes que sob muitos aspectos são piores e mais prejudiciais à alma do que o vício declarado e consumido.
        
Nos Evangelhos aparecem os fariseus como mestres consumados na arte de fingir e de ostentar como virtude o que na realidade nada mais era do que vício camuflado, vaidade e orgulho disfarçado.
        
O diabo, diz Santo Inácio, é especialista na arte de imitar Deus. Suas “luzes” são traiçoeiras, pois ofuscam em lugar de mostrar o caminho!
        
A Via Iluminativa é marcada pelo desejo de saber e de aprender.
        
Aprender é mais do que colher informações e do que decorar lições. Na opinião de Einstein só havia um modo de adquirir conhecimento: passar da simples reflexão para a experiência. Conhecimento é, segundo ele, informação que passou pelo crivo da experiência pessoal. Conhecimento é, pois, uma informação que nos afetou em profundidade e de forma irreversível e que nos enriqueceu espiritualmente.
        
Está desaparecendo do cenário cultural o cientista que julga poder “fazer ciência” sem se envolver subjetivamente com o objeto da sua pesquisa. A tal de objetividade científica está virando mito e quimera!
        
Experimento e experiência não têm o mesmo significado e pertencem a atitudes diametralmente opostas! Conhecer algo é mais do que saber como explicá-lo. Um mistério escapa de qualquer tipo de explicação. Seria impossível conhecê-lo se conhecimento e explicação fossem inseparáveis. Creio que não estamos longe do dia em que será axioma a tese de que só se consegue conhecer o que se ama!
        
O universo dos átomos e de suas subpartículas está tão sedento de amor quanto o mais apaixonado amante. Todos eles vibram e o que esta vibração é, senão amor? Quem julga que está amando, mas é incapaz de vibrar, se engana rotundamente: seu amor não passa de ilusão! Se a energia que põe um átomo a vibrar é uma “energia de amor”, como quer o físico David Bohm, então Francisco de Assis teria razão se voltasse para tratar o átomo como “irmão”!
        
Átomos, elétrons, quarks são “irmãos” nossos, participam em comum conosco da mesma vida sem fronteiras nem limites de tempo. São “eternos” como nossa alma, já que também eles têm alma!
        
Está havendo uma aproximação entre a cosmovisão do místico cristão e a do cientista de última geração! Conclusão: o espírito e a matéria não existem separados. E não podem ser compreendidos um sem a sua relação com o outro! O “espírito” é o “dentro” e a “matéria” representa o lado de “fora” de um cosmos que é simultaneamente “espiritual” e “material”. Espírito e matéria não se excluem mutuamente, mas se complementam, convergindo para uma síntese de ordem superior!

Padre Marcos Bach

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A BELEZA DA INTROSPECÇÃO

A palavra meditação é empregada para descrever um exercício de introspecção cujo objetivo último é colocar o consciente em contato com o inconsciente.
        
O yoga, tal como é praticado no hinduísmo, tem por objetivo penetrar no inconsciente de maneira tão completa que do mundo exterior e dos conteúdos do consciente nada mais reste.
        
A meditação, tal como é praticada nas Escolas do Zen-Budismo não visa a eliminação do consciente. Pelo contrário, pois visa colocar as atividades do mundo exterior e os conteúdos da consciência consciente em harmonia com o inconsciente.
        
Faz parte da sabedoria oriental a crença de que o espírito do homem é governado e dirigido por forças sediadas em seu próprio interior. E que é a partir daí que a humanidade irá definir e decidir o seu destino. As civilizações vêm e passam. Se a herança que transmitem à posteridade não for um tipo humano mais evoluído, então sua passagem pela história nada mais foi do que uma lamentável perda de tempo.
        
Muito antes de Kant os sábios do Oriente antigo já sabiam que o produto mais nobre da mente humana não é o pensamento, mas a inspiração. Ou por outra: o conhecimento intuitivo é superior ao conhecimento racional e muito menos sujeito a distorções e interpretações equivocadas do que este último.
        
A meditação não se faz substituindo ideias menos corretas por outras mais confiáveis. Não consiste em substituir um raciocínio por outro mais apurado. O primeiro passo a ser dado por quem quer aprender a arte de meditar é deixar de pensar. Quem só usa a sua mente para produzir pensamentos acabará tendo o mesmo destino que o burro da fábula, que morreu pensando.
        
Tudo o que conseguimos pensar a respeito de nós é lixo na medida em que nos contentamos com o que a nossa mente racional nos ensina. Deixando de lado tudo o que a mente racional nos diz, o que resta em nosso interior é um grande vazio. Deixando de lado as palavras, o que sobra é silêncio.

Mas este vazio é na realidade um plenum, repleto como está de mensagens secretas. E o silencio é só aparente, pois também ele se encontra repleto de melodias misteriosas.
        
Vazio e silêncio são espaços de que a inspiração necessita para se manifestar. A palavra meditação é usada para significar um exercício de introspecção destinado à eliminação do pensamento racional e sua substituição por uma forma superior de conhecimento que é a inspiração.
        
É um fato, para o qual não existe explicação, que são de má qualidade as ideias que herdamos de nossos ancestrais e as que fazem parte do processo educacional a que submetemos a juventude.
        
O pensamento é um instrumento precioso, desde que usado com moderação. A Verdade não tem limites e se estende além, muito além do alcance da mente racional do homem. Palavras como Razão Superior, Supraconsciente e Planos Transpessoais da Consciência começam a aparecer com frequência cada vez maior nos estudos de psicologia.
        
A verdadeira estatura do homem é muito maior do que supunham tanto o ateu Freud quanto os autores de nossos catecismos e compêndios de moral.
        
Cogito, ergo sum”, “penso, logo existo”. Foi assim que o filósofo francês René Descartes proclamou o início da Era Moderna. O homem moderno se orgulha da boa qualidade dos seus pensamentos. Mas o físico americano David Bohm os considera como poluídos e como parte de uma monumental “fraude”. O mundo verdadeiramente real não é o que os cientistas definem como sendo real. O mundo real dos cientistas está para a Realidade Total como a miragem está para a realidade da paisagem em que se manifesta.
        
Um cientista, imbuído de Fé em Cristo, diria que o futuro da humanidade está para o seu presente como o não-manifesto está para o manifesto. É injusto julgar a humanidade partindo do que seus representantes mais conspícuos realizaram até hoje. A atmosfera de mistério que envolve o futuro da humanidade sempre encantou o espírito da pequena minoria de contemplativos místicos da humanidade. Se quiseres ter uma ideia exata do que o homem é capaz de ser, olha para o que ele ainda não é, mas é capaz de vir a ser.
        
Ninguém apostou mais no futuro da humanidade do que Jesus. Quem insistisse em julgar a obra de Cristo tomando como base e como critério a atuação do cristianismo atual, mais honesto seria afirmar que o essencial de tudo o que Jesus tinha em mente ainda está por acontecer. Reduzir o depósito da fé a um conjunto de doutrinas fazendo caso omisso dos frutos que esta fé já produziu ao longo do tempo na vida de milhões de pessoas, é desconhecer a sua essência.
        
Um cientista, como Einstein, não diria: “Penso, logo existo”. Diria talvez: "Sei que sei cada vez menos, logo existo”. O místico diria: “Admiro este admirável universo, tão belo, que tenho vergonha de tocá-lo”. Nenhum deles usaria a palavra ter, possuir, para definir a sua relação com a Verdade.

Livrar-se da prisão do pensamento puramente racional representa tão somente um passo, o primeiro entre muitos outros. Entre os quais está a contemplação. A palavra vem do latim contemplare e possui a mesma raiz semântica que a palavra templo. A sensação de quem contempla é a de quem entra num santuário ou num templo.

Padre Marcos Bach