A GRANDE MUDANÇA
1. Quando Jesus morreu, o Templo em Jerusalém ainda permanecia de pé
e o Sacerdócio ainda era uma instituição poderosa e aparentemente cheia de
vida, feita para desafiar não só a passagem do tempo, mas destinado a durar
para sempre. “Tu es sacerdos in aeternum
secundum ordinen Melchisedec” era o bordão com o qual os sacerdotes do
Templo embalavam seus sonhos messiânicos. Poder sentar-se ao lado do Messias
era um sonho, que até os filhos de Zebedeu, os apóstolos Tiago e João, nutriam.
O Messias que os judeus esperavam era um enviado de Deus, revestido de grande
poder, e com a força do seu poder invencível, esmagaria os inimigos de Israel,
um após outro. Por não corresponder a esta expectativa, os Sumos Sacerdotes
judeus rejeitaram a Jesus.
Não devemos esquecer que durante
os primeiros três decênios de sua existência o cristianismo conviveu com a
existência do Templo e a presença de Sumos Sacerdotes no comando político do
povo judeu. Durante este tempo era visto mais como seita judaica, à semelhança
dos essênios, do que como movimento desencadeado por alguém, cuja filosofia de
vida era radicalmente oposta ao pensamento judaico oficial da época. Os
primeiros cristãos se reuniam no Templo para orar. Pouco ou nada os distinguia
dos demais judeus devotos do seu ambiente social. Foi nesta época que os
apóstolos Pedro e Paulo se desentenderam. Pedro, mais judaizante que Paulo,
queria impor às comunidades cristãs algumas prescrições de natureza ritual que
Paulo tinha por superadas e abolidas por Cristo. Paulo defendia a liberdade lá,
onde Pedro ainda pretendia manter em vigor exigências de natureza legal e
ritual que Paulo considerava abolidas por Cristo. “Para sermos livres é que
Cristo nos libertou”, escrevia ele aos Gálatas (Gl 5,1). Esta briga entre o
pensamento de Pedro e o de Paulo ainda não terminou, pois o trono de Pedro
ainda continua sendo ocupado por sucessores de Pedro. Onde encontrar hoje um
bispo disposto a enfrentar um papa como o apóstolo Paulo enfrentou a Pedro? (Gl
2,11). O Concílio de Jerusalém foi provavelmente o último em que a voz de um
bispo ainda valia e pesava tanto quanto a palavra de um papa. Hoje um Concílio
é apenas uma paródia do que nos seus melhores dias uma sessão do Senado romano
vinha a ser: um instrumento a serviço do povo.
2. Tudo mudou drasticamente quando os “aríetes” das legiões romanas puseram abaixo os muros do Templo, não
deixando lá pedra sobre pedra. Com a derrota, os judeus perderam o símbolo
máximo de sua unidade nacional que era o Templo de Jerusalém. Com o fim do Templo,
outra instituição nacional, o sacerdócio, deixou de existir também.
Há perto de 2000 anos que o
judaísmo sobrevive sem templos e sem sacerdotes. O que prova que ambas as
instituições, o Templo e o Sacerdócio, não são essenciais para a vida de um
povo e sua sobrevivência religiosa.
Enquanto o mundo cristão voltou a
erguer templos e reintroduziu o sacerdócio, os judeus dispersos pelo mundo
erguiam Sinagogas e confiavam a Rabinos a tarefa de presidir as suas assembleias.
Repartiam entre si a sabedoria milenar contida em seus Livros Sagrados em vez
de oferecer sacrifícios a um Deus que apreciava a pureza de coração muito mais
do que a vista de suculentas postas de carne ou o aroma de perfumes exóticos.
Significativo e sintomático, sob
todos os pontos de vista, é o fato de que o termo sacerdote não aparece nos
Evangelhos. Jesus era um leigo, como se diria hoje. Não era nem levita e muito
menos se fazia passar por sacerdote. Só muito tempo depois de sua passagem por
esta vida mortal, alguém se lembrou de elevá-lo à condição de “Sumo Sacerdote
da Nova Lei”. Em todas as culturas e religiões cabe à figura do sacerdote o
papel de oferecer sacrifícios aos deuses. Em todas elas os deuses sempre viviam
às custas de seus devotos. A carne mais suculenta, o pão mais saboroso e a
fruta mais deliciosa eram oferendas dignas de um deus. Oferecer em sacrifício
uma ovelha manca era sacrilégio. “Só o melhor é digno de Deus”, diziam os
sacerdotes astecas, quando empurravam para a boca dos crocodilos do pretenso
lago sagrado, as moças mais bonitas da tribo. Em todos os povos o sacerdote é o
homem encarregado de zelar pelos interesses sagrados dos deuses contra a
interferência dos humanos nos negócios dos altíssimos. Os deuses eram
poderosíssimos, mas faziam questão absoluta de excluir os humanos do acesso a
este poder. Só os sacerdotes podiam orgulhar-se de dispor de uma modesta
parcela deste poder divino.
Enquanto o sacristão era escolhido
pela comunidade, o sacerdote devia o seu cargo a uma vocação divina. Sua
ocupação principal consistia em recolher as oferendas com que o povo devoto
procurava cativar sua benevolência divina. Oferecer estas oferendas em forma de
sacrifícios aos deuses, era esta a tarefa mais especificamente sacerdotal que
lhes cabia executar. O cargo fazia do sacerdote uma pessoa sagrada, revestida
de privilégios de que só ele podia usufruir. Existe, em todas as religiões que
possuem a figura do sacerdote, um fosso bem grande e profundo separando a
pessoa do sacerdote do restante dos membros da comunidade. Alguém pode ser
suspenso “a divinis” e ser proibido
de exercer o cargo, mas nem por isso perde os poderes inerentes à condição
sacerdotal. “O sacramento da ordem imprime caráter”, afirmam os teólogos
católicos. “Quem foi ordenado sacerdote o será para a vida toda”. E mais ainda:
“será sacerdote para sempre”. “In
aeternum”. É no âmbito clerical que se pode observar o mais escandaloso
índice de diferenciação hierárquica, pois em nada contribui para o bem
espiritual da comunidade.
3. Não deixa de ser sintomático e altamente revelador o fato do
apóstolo Paulo nunca se apresentar como sacerdote, mas sempre como apóstolo de
Cristo. Como Jesus, também ele nunca afirmou ter rezado uma missa. Para Paulo a
Celebração Eucarística era mais parecida com uma refeição do que com um
sacrifício. A Celebração Eucarística de Paulo lembra mais a Ressurreição de
Cristo do que sua morte na cruz.
O símbolo favorito das primitivas
comunidades cristãs era o peixe (ychtis,
em grego) e não a cruz. O peixe era um alimento muito conhecido e apreciado
pelos habitantes da Palestina da época de Paulo. Por ser um dos alimentos mais
nobres do povo, o peixe simbolizava com perfeição o Cristo que se dera como
alimento espiritual aos seus. Só uma dose excessiva de má fé pode levar alguém
a descrever a Última Ceia como uma forma de sacrifício. Se não foi um ato
festivo, também não foi um momento repleto de lembranças antecipadas de um
trágico fim de vida. A Última Ceia foi precisamente e apenas isto: a despedida
de alguém que vai partir. Para compreender todo o seu alcance, é preciso ter em
mente a sua dimensão escatológica.
“Já não estarei convosco até o dia
em que, sentados à mesa do Pai Celeste, voltarei a saborear convosco uma taça
de capitoso vinho” (Mt 26,29). A Eucaristia, e tudo o que ocorreu na Última
Ceia, só o poderemos compreender adequadamente se admitirmos que representa o
momento inicial de um evento que só alcançará o seu pleno significado na
eternidade. A matéria da Eucaristia não é o pão ou o vinho, mas o pão repartido
e o vinho igualmente repartido. Onde o padre celebra sozinho e onde só ele tem
acesso à taça de vinho, não está acontecendo Celebração Eucarística, mas apenas
um ato solitário de piedade individual. Celebração Eucarística só acontece onde
os membros de uma Comunidade de Fé se enriquecem mutuamente com as
superabundantes graças do Amor de Cristo. Também aqui, como em todos os demais,
o ministro do sacramento é Cristo. É a comunidade toda que atrai a presença
sacramental de Jesus. O sacerdote ou presbítero é responsável apenas pelos
aspectos materiais do ato sacramental.
Não se pode atribuir
exclusivamente ao sacerdote o poder de transformar pão e vinho no corpo e no
sangue de Cristo. O conceito de “transubstanciação” pode representar um modo
seriamente equivocado de interpretar o que Jesus fez na Última Ceia. No mundo
científico moderno já não há mais lugar para o conceito aristotélico de
substância. A ciência moderna já não encara mais a natureza da matéria e sua
relação com a realidade espiritual do modo como o faziam sábios como Newton e
Leibniz. Estas descobertas todas, os teólogos ainda não conseguiram harmonizar
com sua cosmovisão, essencialmente dogmática e fixista.
4. O estudo dos primeiros anos de vida do cristianismo nos põe em
contato com uma estrutura eclesial muito mais leve e igualitária do que hoje
conhecemos como paróquia e como diocese. Ao rabino de uma Comunidade judaica
cabe a tarefa de coordenar e disciplinar os debates, por vezes ásperos, em que
se envolviam os membros da comunidade reunidos no interior de uma sinagoga.
Função idêntica exercia-a nas Comunidades Cristãs do início da era cristã a
figura do presbítero. Como acontecia com o rabino, o presbítero não era
sacerdote e não dispunha de outro poder que não o de manter a ordem no decurso
dos debates que se seguiam à Celebração da Palavra de Deus!
Para uma comunidade sai mais
barato e mais em conta manter um presbítero do que manter um pároco e uma
estrutura paroquial. Sob o aspecto teológico-jurídico o presbítero se situa
entre o diácono e o sacerdote. Seus encargos são mais modestos que os de um
sacerdote ordenado ministro do altar. Sua posição social não o coloca acima dos
demais membros da comunidade. Seus encargos o relacionam mais com a pregação da
Palavra de Deus do que com os serviços do altar. Não precisa ser um bom
administrador, mas deve ser um bom comunicador. É função sua impedir que o
diálogo intracomunitário se transforme em discussão e desavença. Sua formação
não exige que possua grandes conhecimentos teológicos, mas requer do presbítero
um tino diplomático fora do comum. Em vez de entrar no debate tomando partido
por um dos lados que ameaçam dividir a comunidade, procura acalmar os ânimos e
reconduzir o debate a níveis mais civilizados.
Menos do que homem de Deus é homem
de confiança da Comunidade. Representa apenas a comunidade e mais ninguém. Seu
ministério não o compromete com o pensamento ortodoxo, mas com a liberdade de pensamento
e o direito que cada membro da comunidade tem de manifestar o que pensa. É ele,
o presbitério, o responsável maior por esta liberdade de pensar com a própria
cabeça. Seria mau presbítero aquele que cerceasse no seio da comunidade esta
liberdade de discordar, desde que a discordância permaneça dentro dos limites
determinado pelo respeito mútuo. Nenhum personagem é menos indicado para o
cargo de presbítero do que a figura do inquisidor. Do solícito farejador de
heresias e de ideias suspeitas, o que se pode esperar é que reduza a comunidade
toda a um bem comportado curral de ovelhas dóceis.
No judaísmo o debate é a regra e a
docilidade a exceção. Por isso, e não apesar disso, o judaísmo continua vivo.
Não é por acaso que vinte por cento (20%) dos Prêmios Nobel foram parar nas
mãos de judeus. E isso que os judeus representam apenas um por cento, quando
muito, da população mundial.
Para implantar a figura do
presbítero bastaria um “canetaço” do papa e a coragem de partir da inércia para
a ação. Qualquer bispo poderia fazer o mesmo, pois quem pode ordenar sacerdotes
também pode ordenar presbíteros. A ordenação presbiterial de mulheres e a de
homens casados é tão válida e tão urgente que sua exclusão só pode ser
interpretada como atitude preconceituosa e antipastoral sob todos os aspectos.
Jesus veio para unir e somar, e não para excluir e discriminar. Em lugar de
aumentar a lista de proibições, melhor seria proibi-las todas.
Artigo de Pe. José Marcos Bach, SJ
intitulado “Sacerdotes ou Presbíteros”.