SUPERESTRUTURA CLERICAL
No
ano 70 d.C. os judeus perderam o Templo. Com o Templo deixaram de existir duas
instituições religiosas fundamentais na aparência: o sacerdócio e o sacrifício.
Até
hoje os judeus sobrevivem sem templos, sem sacerdotes e sem sacrifícios. O que
prova que não eram essenciais.
Na
época o cristianismo estava ensaiando seus primeiros passos. Alguém dentro da
Igreja achou que chegara a hora de ocupar o espaço religioso que o judaísmo
deixara vazio. Criou-se a figura do sacerdote em substituição à do presbítero.
O bispo tomou o lugar do apóstolo. O profetismo foi esquecido.
A
Celebração Eucarística tornou-se o Santo Sacrifício da Missa. O altar voltou ao
centro do culto litúrgico. A mesa eucarística serve para separar o espaço
reservado ao ministro do altar do espaço em que um leigo pode movimentar-se.
Uma igreja-templo era dividida em duas partes: o coro e a nave.
O
coro para os cônegos, a nave para o povo. Não demorou e apareceu outra
novidade: o trono episcopal. Com ele vieram a mitra, o báculo e o anel.
Roupas
especiais foram inventadas para marcar a distinção entre clero e povo.
A
cultura religiosa tornou-se privilégio do clero. O conhecimento mais profundo
das verdades divinas ficou reservado a clérigos. Ao povo dizia-se o que tinha a
fazer. A salvação da alma de um fiel era assegurada pelo cumprimento da lei
moral.
A
oração vocal e o cumprimento das obrigações, entre as quais a frequência aos
sacramentos, compunham o cardápio religioso do povo. Voltou à tona a crença no
poder mágico de certas práticas rituais.
Entre
o fiel e Deus foram sendo introduzidos sempre mais instrumentos de mediação. O
mais destacado foi a figura do sacerdote. Com o correr do tempo, o clero
tornou-se uma instituição, uma corporação à parte, sem vinculação jurídica com
as Comunidades de Base. Rege-se por conta própria e só deve explicações a Deus
e a seus superiores hierárquicos.
O
princípio hierárquico passou a vigorar não só na relação entre clero e povo,
mas dentro do próprio mundo clerical.
Surgiu
a categoria do superior em oposição a dos inferiores, ou súditos. Traçou-se uma
linha divisória bem clara entre os que têm poder e os que a ele não têm acesso.
A interpretação das verdades da fé e a sua aplicação prática tornou-se
monopólio do clero.
O
magistério eclesiástico, representado exclusivamente por membros do clero,
assumiu a função de árbitro supremo da verdade e do bem.
À
consciência individual ficou reservada a tarefa de orientar-se de acordo com o
ensinamento do Magistério da Igreja.
A
experiência pessoal, este campo tão fértil em conhecimentos novos, passou a ser
menosprezada e posta sob suspeita de parcialidade. Criou-se uma nova divisão
dentro da Igreja: a Igreja oficial e a Igreja particular. A Igreja docente e a
discente.
Uma boa árvore é aquela que possui raízes fortes e bem fincadas no solo. Mas isto por si só não basta. Ela será boa se tiver um tronco robusto e sólido. Por último requer-se que possua uma ramagem adequada. O que lhe dá vida e saúde é a seiva que por ela sobe e desce.
Cada parte tem a sua função específica e a desempenha de forma bastante autônoma. Mas nenhuma das partes basta a si mesma. Todas interdependem entre si. Uma árvore, como qualquer planta viva, forma um todo holístico. Tudo o que cada parte faz é direcionado para o bem deste todo. Cada folha, cada célula pensa no Todo e dele tira o sentido último de sua atividade.
O
mesmo vale do animal. O bem do corpo todo determina a atividade da cabeça. O
fato de abrigar o cérebro não confere à cabeça um status independente ou de
ordem superior. Não fossem o pulmão e o coração, o cérebro morreria em poucos
minutos. O coração fornece o sangue. O pulmão, o oxigênio.
Um
organismo social necessita de sangue e oxigênio como qualquer corpo físico mais
evoluído. Um organismo vivo não se constrói como se faz um edifício. Planta-se.
Depois de plantado, cresce por si. Traz em si as potencialidades todas de
crescimento, juntamente com os padrões que lhe são inerentes. Não precisa
copiar modelos, pois já os traz em si.
Apliquemos
tudo isso à Igreja de Cristo. Ela é uma planta, um organismo vivo e não um
edifício ou construção. É uma entidade viva e como tal sujeita à lei do
crescimento. Sujeita ao mesmo tempo à lei da entropia, à lei da degradação.
Como todo corpo vivo, está sujeita à lei da morte.
Uma
árvore sadia desfaz-se continuamente das folhas mais antigas para que novas
possam tomar o seu lugar. Um dos maiores problemas da Igreja católica reside na
incapacidade de seus dirigentes de desfazer-se de ramos e folhas que a evolução
espiritual da humanidade tornou supérfluos e improdutivos. Rebentos novos não
conseguem brotar por falta de espaço. A seiva é desviada para setores que na
prática só servem para impedir que o passado ceda lugar ao futuro.
Numa
planta são as raízes que elaboram a seiva. O tronco a transmite aos ramos. É na
copa que crescem os frutos. É o sol que os faz amadurecer.
Aplicando estes princípios de correlação à Igreja, teríamos o seguinte quadro: no alto, expostas à ação direta do Espírito Santo, encontram-se as Comunidades Eclesiais. É em seu seio que floresce a fé cristã. É lá que ela produz frutos. São os frutos que servem de medida de avaliação da fé cristã.
Que
frutos são estes? Certamente não é a quantidade de leis e de verdades definidas
a que Jesus se refere, quando diz: “É pelos frutos que se conhece a árvore”.
A
razão de ser da Igreja-Instituição são as Comunidades Eclesiais, aqueles
pequenos núcleos periféricos, quando não esquecidos por seus pastores,
aparentemente incapazes de compreender o alcance da sua vocação.
Os
pobres e os humildes estão em condições de compreender a sabedoria do Evangelho
de Jesus muito melhor do que os ricos e letrados. É a eles que Jesus falou, aos
pequeninos, que as elites sociais costumam tratar com mal disfarçado desdém.
Qual é a verdadeira natureza da cúpula hierárquica da Igreja?
É
uma superestrutura que se sobrepôs ao corpo eclesial, absorvendo funções que de
direito cabem às comunidades. As comunidades locais foram sendo despojadas de
grande parte de sua autonomia e deslocadas para um plano inferior.
Agora
já não é mais a Igreja que deve servir às comunidades. São estas que devem
servir à Igreja. A reta ordem social-eclesial foi invertida.
Dois
terços do espaço nobre de um navio de passageiros são reservados a passageiros
de primeira classe. Também na Nau de Pedro existem passageiros de primeira
classe. A maioria é obrigada a se acomodar no porão do navio.
O
Concílio Vaticano I (1869-70) ainda definiu a Igreja (católica, naturalmente)
como sociedade perfeita. O Concílio Vaticano II (1962-1965) não teve a coragem
de fazer o mesmo.
Nada
existe nos Evangelhos que nos autorize a supor que Cristo deixou à Humanidade
uma Igreja pronta e acabada. Nem sequer um projeto ou esboço de projeto. Legou
à posteridade um espírito, uma intenção e um propósito, juntamente com os meios
essenciais de pô-los em prática.
(Do livreto: É PRECISO PLANTAR UMA NOVA IGREJA de Pe. José Marcos Bach, SJ)
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