O FAZ-DE-CONTA VERSUS A REALIDADE
Vivemos num mundo necessitado de reformas. A nossa
realidade sociocultural, religiosa, econômica e política não passa de um
escoadouro imenso de mentiras. O faz-de-conta, a aparência, tomou por completo
o lugar da realidade.
Transferimos para a área do pensamento pragmático o
núcleo de toda e qualquer verdade objetiva. A técnica orienta a pesquisa
científica. O Vaticano tornou-se centro e o critério último de verdade para os
católicos. O que é bom para os Estados Unidos é bom para o resto do mundo. O
que é bom para a União Soviética é bom para um terço da humanidade. A realidade
do homem já não é mais critério moral, político ou religioso.
A verdade passou a ser uma ferramenta. Há muito que
ela já não está mais a serviço da liberdade. A coisa que os autocratas
religiosos, os ditadores e os banqueiros internacionais temem mais que o diabo
é a verdade posta a serviço da liberdade. “Veritas
liberabit vos”.
A verdade que liberta é substituída com o recurso de
todos os meios de comunicação de massa pela liberdade de consumir sem freios
nem restrições.
Não se eleva o salário do operário a não ser com a
intenção de aumentar sua capacidade de consumo. A isto até a Igreja dá o nome
de justiça social. Não é preciso penetrar mais a fundo na realidade social e
cultural, política e religiosa de nossos dias para ter uma ideia da quantidade
de mentiras que se escondem no bojo deste “Cavalo de Troia” chamado “Verdade”.
A mentira começa a tomar
corpo e forma quando se passa a identificar a verdade com um corpo de doutrinas
ou com um sistema ideológico. Toda formulação doutrinária é um leito de
Procusto: nela só cabe uma parte da verdade total.
A formulação teórica do
conhecimento é necessária para a ação. O que mais importa, porém, é a ação,
pois é nela que a verdade se torna vida. Toda teoria é relativa em vista da
ação. A fonte reveladora de toda verdade é sempre alguma espécie de ação.
A fonte de toda a
doutrina cristã é a vida e são as obras de Cristo. Sem o testemunho de sua vida
e sem a eloquência de suas obras a palavra de Cristo seria hoje tão morta
quanto as palavras de Napoleão. A fé cristã se dirige de forma direta e
imediata à Pessoa de Cristo e só de modo mediato à sua palavra. E esta não é
discurso, sermão, doutrina ou fabulação teórica.
De um mensageiro do Amor
Divino se espera mais do que sermões, milagres, pronunciamentos, sentenças.
Cristo é o Messias, porque veio trazer aos homens uma energia nova, um novo
poder. Veio acrescentar às faculdades humanas uma faculdade nova. Veio
enriquecer o espaço social com uma dimensão nova.
Na Igreja católica, quando seus chefes falam em
verdade, sempre se referem em primeiro lugar a um corpo de doutrinas. A
salvação dos homens coincide sempre de modo tão hermético com a Sã Doutrina
elaborada no Vaticano que Cristo já passou a não ser mais necessário. O lugar
dele foi tomado por mestres e inquisidores. Sua palavra cheia de vida cedeu o
lugar à Sã Doutrina, tão árida quanto a mente de seus patrocinadores.
Reduzindo o conteúdo da fé cristã a um corpo de
doutrinas, os mestres da Igreja tornaram as coisas mais claras e até mais
cômodas para o fiel comum. Ao mesmo tempo desviaram a fé do plano subjetivo e
pessoal para o plano intelectual. O objeto da fé passou a situar-se fora do
contexto subjetivo e pessoal.
Deste modo cavou-se um fosso entre a fé e o seu
conteúdo. A preocupação pelos artigos de fé absorveu quase por completo as
atenções do Magistério Eclesiástico. A própria fé enquanto atitude subjetiva e
existencial não mereceu maiores cuidados.
Promover a vida de fé tornou-se preocupação da
iniciativa privada. É neste terreno que deve ocorrer uma inversão de sentido.
Padres, bispos e papas têm por missão primeira servir à promoção da fé.
Crer é um modo de se pôr em contato com uma fonte de
energia vital e espiritual. A verdade e as verdades da fé não são fórmulas
abstratas. Também não é o que chamamos simplesmente de realidade.
A verdade que abraçamos pelo ato de fé é sempre uma
realidade trabalhada, modificada por um pensamento e uma intenção. Em suma, a
realidade elaborada em vista de um propósito.
Crer na vida significa crer no sentido da vida. Crer
na ciência e na técnica significa ter certeza de que ambas estão a serviço do
progresso do homem. Crer no poder e na autoridade é estar convicto de que um e
outra são indispensáveis para o desenvolvimento da humanidade. Crer no amor e
na liberdade é estar certo de que não pode haver crescimento humano onde ambos
não estiverem presentes.
Crer em Deus significa estar certo de que sem Ele a
existência humana deixa de ter qualquer sentido transcendente.
Não crer em Deus é o mesmo que declarar o homem
prisioneiro do tempo cósmico. Um homem preso aos ciclos de eventos que sempre
voltam a se repetir: é este o homem sem Deus. Mas este não é o homem que mora
no íntimo de cada um de nós.
Crer em Jesus Cristo significa viver na certeza de
que o tempo cíclico foi substituído por um novo tempo humano, o tempo
escatológico. A verdade é, portanto, sempre o aspecto promissor da realidade.
Ela é, pois, um atributo da realidade. Algo que este tem a mais. É, em suma, a
realidade física e histórica enquanto impregnada e fecundada por uma intenção e
por um propósito.
Padre Marcos Bach
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