UM ASPECTO DO PERFIL DO NOVO PAPA
(Desejo manifesto em ficção)
Mais do que a falta de
clero preocupava ao novo Papa a falta de um diálogo honesto da Igreja com o
mundo jovem. Doía-lhe na alma ver como tantas vidas esperançosas iam-se
extinguindo prematuramente sem que as vítimas tivessem tido tempo de perceber o
que estava acontecendo com elas. Morriam por aí aos milhares, sem terem tido
tempo de viver a vida.
As informações que lhe
vinham do Brasil, do “país mais católico do mundo”, eram tão pouco
encorajadoras quanto as que vinham da África. Na África se morria de fome, no
Brasil se morria de bala perdida, de tiro na nuca, além da multidão de doenças
endêmicas, que com um punhado de dólares bem aplicados, poderiam ser
eliminadas.
O novo Papa era um
homem que detestava receber aplausos e colher elogios. Dizia o que pensava, mas
sabia fazê-lo com tamanha simplicidade, humildade e modéstia, que ninguém saía
da sua presença com a impressão desagradável de não ter sido compreendido ou de
não ter sido levado a sério. Não tinha amigos e até parecia não ter parentes.
Uma hora de convívio com ele bastava para deixar a impressão de que ele não era
daqui e que viera de outro mundo.
Havia nesta impressão
uma parcela de verdade, que só muito lentamente começou a ser percebida pela
opinião pública: a de que ele não tinha a intenção de ser um simples sucessor
de Pedro e continuador de um passado repleto de tranqueiras canônicas.
A Igreja que tinha o
propósito de legar a seus sucessores não era aquela que herdara de seus
antecessores. Nunca o disse, mas todas as suas decisões davam a entender que
não iria contentar-se com soluções “cosméticas” e “cirurgias plásticas”
destinadas apenas a melhorar a imagem da Igreja e o prestígio da figura do
Papa. Quando a Cúria Romana, guarda-mor das chaves de Pedro, se deu conta da nova
realidade, já era tarde. O novo Papa aproveitara os primeiros meses do seu
governo para colher o máximo de informações a respeito do estado geral da
Igreja. Percebeu que havia grande necessidade de desobstruir os canais de
comunicação que punham o Papa em contato com a Igreja universal, que em muitos
casos dificultavam as coisas além dos limites do inevitável. Morosidade
burocrática e subterfúgios jurídicos eram para ele vícios com que não pretendia
pactuar.
Com o fito de aligeirar
os trâmites burocráticos, começou a despachar fora dos muros do Vaticano.
Alugou um prédio e montou nele o seu escritório. Lá se reunia com seus
auxiliares mais chegados, recrutados todos eles dentre o que as Ordens
Religiosas tinham de mais moderno a oferecer. Sendo ele mesmo um intelectual, o
novo Papa, além de detestar números e fórmulas prontas, amava trocar ideias.
Fazia suas refeições nas imediações do Escritório, pois tinha o hábito de
aproveitá-las para comunicar-se com seus auxiliares. Era lá, ao pé de um copo
de vinho e de um saboroso prato de “Spaghetti”, que recebia em audiência
visitantes ilustres. Poder almoçar com o Papa era uma honra e uma distinção que
só a poucos era concedida.
Os convidados eram
quase sempre cientistas, amigos da natureza. Pouco importava sua nacionalidade,
credo religioso ou filiação política. Ideólogos, assim como turistas, gente que
ia a Roma para ver o Papa, tinham pouca chance de ver satisfeito o seu
desiderato. O Papa abolira na prática o regime de audiências. Achou que era uma
injustificável perda de tempo, além de ser um resquício bolorento de uma era
que já não fazia mais parte de um mundo em que o telefone estava à mão de quem
quisesse comunicar-se.
A Comissão de
Assessoramento e Planejamento Pastoral que o Papa criara com o objetivo bem
preciso de livrar-se da lerda e pesada máquina administrativa que herdara de
seus antecessores, era composta de religiosos, oriundos de mosteiros e
conventos. A maioria dos seus membros eram sacerdotes, mas havia entre eles
também irmãos leigos e até mesmo uma que outra freira podia ser vista nas
reuniões. Ninguém, envergando faixa vermelha ou ostentando título honorífico,
fazia parte do Corpo de Auxiliares diretos do Papa. Os Superiores das Ordens e
Congregações que tinham cedido ao Papa a colaboração que ele solicitara, tinham
também assumido por sua conta a manutenção financeira da Comissão. Com isto o
Papa se viu livre da ingerência do IOR (Instituto das Obras Religiosas),
sustentado e controlado pelo “Opus Dei” e congêneres.
Esta liberdade o novo Papa
sabia como aproveitá-la. Em lugar da velha e enferrujada ponte de ligação do
Papa com o Povo de Deus, construiu uma nova ponte por onde podia passar a
qualquer hora do dia ou da noite sem se ver barrado no caminho por um vigilante
Monsenhor da Cúria Romana.
PERFIL DO “NOVO PAPA”
(continuação da ficção escrita por José Marcos
Bach)
Os sinos todos de todas as igrejas de Roma foram postos a badalar
festivamente, anunciando “Urbi et Orbi”: “Habemus Papam”!
Houve época em que
era impossível imaginar Roma como centro do mundo sem a figura do Imperador
Romano. Hoje o lugar do Imperador passou a ser ocupado pelo Papa. Sem o Papa,
Roma não passa de monumento histórico. Roma é, acima de tudo, um centro
doméstico. Vive explorando o seu passado. A figura do Papa também faz parte
deste passado. Sua presença representa uma atração turística a mais, além do
Coliseu e das Catacumbas. Por estas e outras razões o Senado e o Povo de Roma
se alegraram ao escutar o alegre bimbalhar de tantos sinos. Isto é, políticos, funcionários
e comerciantes que constituem o grosso da população de Roma, respiraram
aliviados, pois a presença de um novo Papa significava para eles bons negócios
e empregos garantidos.
Enquanto lá fora o mundo católico fervia de curiosidade e os telefones das
agências de notícias não paravam de tocar, os cardeais se prepararam para o
cerimonial que por lei deve suceder à eleição de um Papa.
O eleito deve dizer se
aceita o cargo para o qual acaba de ser eleito. Só então a eleição é
considerada válida ou nula. O “accepto” do eleito é decisivo. É só a partir do
momento do sim que ele deixa de ser cardeal para se tornar o novo Sumo
Pontífice da Igreja, sucessor de Pedro e “representante de Cristo na terra”.
Este sim o novo Papa o
pronunciou sem hesitação, mas também sem pressa. O Cardeal Camerlengo, que
fizera a pergunta, teve que aguardar perto de dois minutos até obter a
resposta. A impressão que todos os presentes tinham era a de que o tão esperado
sim poderia não acontecer. Mas ele veio afinal, mais tímido que firme, dando a
entender que o novo Papa não iria ser um simples sucessor do seu antecessor.
Instado pelo Cardeal
Camerlengo a declarar o nome com o qual desejava ser apresentado ao Povo
católico, não hesitou um momento sequer: Pancrácio! É este o nome que decidi
adotar!
O novo Papa adotou o
nome de Pancrácio. Não havia quem não estranhasse este nome. Um nome esquisito,
pois nunca houve um Papa com este nome. Paulo, João ou até mesmo Pio, vá lá.
Mas Pancrácio, esta não! Até o Cardeal Camerlengo coçou a orelha quando ouviu a
resposta à sua pergunta.
Entre os cardeais
presentes o nome com que o novo Papa iria passar à história provocou mais
hilaridade do que surpresa. O que a maioria deles queria era voltar quanto
antes à boa vida de sua condição de Príncipes da Igreja. Voltar para casa,
voltar a dormir na própria cama e voltar a saborear seu prato predileto: não há
cardeal da Santa Madre Igreja que não morra de saudades delas quando estas
coisas boas da vida lhe venham a faltar.
Agora só faltava
apresentar o novo Papa ao povo reunido na Praça de São Pedro. Custou um pouco
encontrar o paramento apropriado ao corpo do novo Papa. O homem era miúdo e de
pequena estatura, magro, mas de aspecto saudável. Não havia na sua pessoa que
pudesse chamar a atenção de um observador bisbilhoteiro.
Como o guarda-roupa do
Vaticano está preparado e pronto para atender qualquer eventualidade, os
mestres de cerimônia responsáveis por este detalhe acabaram encontrando em seu
enxoval o paramento adequado e o novo Papa pode apresentar-se “fine finaliter”
ao bando de turistas e curiosos reunidos na Praça e desejosos de poder contar
em casa: “Eu já vi o novo Papa”. O que ninguém sabia é que o novo Papa
detestava este tipo de representação teatral. Mesmo assim, tudo decorreu de acordo
com o figurino tradicional. O Papa acenou para a multidão, enviou sua bênção
“Urbi et Orbi”, foi aclamado, ovacionado e contemplado com tudo o mais com que
o populacho costuma bajular seus piores tiranos.
Um pormenor que só um
jornalista alemão percebeu foi o seguinte: em momento algum o novo Papa sorriu.
Não era carrancudo nem solene, mas também não homem do sorriso fácil, como o
fora seu antecessor João Paulo I.
O que dele se sabia era
muito pouco. Em vez de saudar a multidão estropiando um pouco de italiano como
fizera seu antecessor, falou-lhe em inglês, dando a um intérprete tempo de
traduzir para o italiano o que estava dizendo. Mesmo assim, o cair da tarde
daquele primeiro dia de seu pontificado, foi para Pancrácio o final de um dia
cheio. Não que ele desejasse o poder para perpetuá-lo. Havia muito que nascera
em seu íntimo a convicção de que a fonte maior dos problemas da Igreja católica
tinha por raiz o regime de governo da Igreja.
O novo secretário do
Papa recebeu, já nos primeiros dias do pontificado do novo Papa, a incumbência
de organizar um encontro de seu chefe com a imprensa. Agora, passados apenas
uns poucos dias de governo, já se sabia que o novo Papa era homem comunicativo,
que gostava de dizer o que pensava e o que queria. Não era dado a rodeios e
circunlóquios. Bem depressa os prelados e monsenhores da Cúria ficaram sabendo
que com o novo Papa pouco espaço lhes sobraria para o exercício do poder
paralelo a que os membros do estamento burocrático se tinham habituado.
O encontro com os jornalistas deu-se numa tarde: reuniu 250 (duzentos e
cinquenta) homens e mulheres da imprensa falada e escrita e durou três horas.
Foi um sucesso, pois do encontro não houve quem não saísse satisfeito. O Papa
não perdera tempo em floreios ou em críticas envolvendo a atuação de algum dos
seus antecessores. Em momento algum perdeu a tranquila serenidade que já tinha
contribuído para a sua eleição.
O número de perguntas
encaminhadas à comissão preparatória da Conferência fora reduzido a doze. Cada
pergunta tinha que ser formulada de viva voz por seu autor. O Papa fizera
questão de não ser informado com antecedência do teor do questionário a que
iria ser submetido. Deixara bem claro que era avesso a tudo o que se pudesse
classificar como censura prévia.
A primeira pergunta foi
formulada por um jornalista italiano.
1. Vossa Santidade assumiu o pontificado com o nome de Pancrácio. Por
que escolheu este nome, um nome totalmente estranho, já que até hoje não houve
Papa com este nome?
Papa: “O nome Pancrácio vem do grego ‘pan’, que significa todo e de
‘cratein’ que significa dirigir, governar. Assim como a palavra aristocracia é
empregada para definir um sistema oligárquico de governo, o governo dos
‘aristoi’, isto é, dos supostamente melhores de uma sociedade, do mesmo modo a
palavra democracia se refere a um sistema de governo em que o povo (= demos)
participa do exercício do poder político através de representantes por ele
escolhidos.
A Igreja católica não é
uma democracia. Basta compulsar o Código de Direito Canônico para tomar
conhecimento desta realidade.
Em seus primórdios a
Igreja nascente se encontrava muito mais próxima do povo do que hoje. A maior
parte dos cristãos da época dos Apóstolos era constituída de escravos ou de
libertos. Na Igreja primitiva havia muito mais espaço para a mulher do que nas
Igrejas cristãs de hoje. A discriminação da mulher não corresponde, que eu
saiba, a nenhuma exigência explícita de Cristo.
A palavra Povo não tem
mais o mesmo sentido que no tempo de Cristo. Quando o Concílio Vaticano II se
refere à Igreja como Povo de Deus, não está dando a entender que a Igreja é um
rebanho de analfabetos e de miseráveis.
Hoje o conceito de Povo
mudou de sentido, pois abrange classes sociais que até pouco tempo atrás se
viam a si mesmas mais como membros de uma elite social do que como cidadãos
comuns. O respeito pela pessoa humana não nos permite tratar como ‘ovelhas’ os
que comungam conosco da mesma fé em Cristo. A palavra cidadania veio tomar o
lugar do termo súdito. Ser cidadão e ser súdito não é a mesma coisa. Eu, como
Papa, me sentiria muito mais à vontade numa Igreja composta de concidadãos do
que numa Igreja dividida entre pastores e ovelhas, entre senhores e súditos.
Aceitei ser Papa sob a
condição de ser o Papa de todos, o Papa-Irmão de todos! Não quero exercer o
poder que o cargo me confere como direito e como privilégio, mas como fardo e
como responsabilidade. Não quero governar. Quero repartir, o que tenho para
dar, com todos que também se dispõem a dar o melhor de si”.
(Do manuscrito “O NOVO PAPA” de José Marcos Bach)