O REINO DE DEUS UMA PROMESSA
“As nações cristãs chegaram a uma situação
deplorável; seu cristianismo, tendo descuidado de fazer evoluir o seu mito no
curso dos séculos... As pessoas não percebem que um mito está morto se deixa de
viver e crescer... Nosso mito tornou-se
mudo, e não nos fornece mais nenhuma resposta. A falta não está nele, tal como
foi revelado pelas Escrituras, mas tão somente em nós, que não o desenvolvemos,
e que suprimimos qualquer tentativa nesse sentido”. (C.C.Jung - Memórias,
Sonhos e Reflexões, Ed. Nova Fronteira - p.286-287).
“Mas hoje a questão nos assedia e precisamos dar uma
resposta. Permanecermos de mãos vazias, espantados, perplexos, e nem mesmo
percebermos que nenhum mito nos ajuda, agora que temos tanta necessidade” (Id.
Ib.).
O Reino de Deus é um conceito amplamente usado no
Antigo e no Novo Testamento. Possui uma conotação messiânica, pois é
apresentado como objeto de esperança e como tal faz parte das promessas de
Deus. Projeta o presente em direção ao futuro.
Possui, ao mesmo tempo, uma dimensão mitológica, pois
se refere também a um tempo passado, que por não existir mais como fato
histórico atual, continua vivo sob a forma de mito.
O mito, como os contos de fadas, expressa duas coisas
fundamentais:
- Primeiro, uma verdade fundamental e de extrema
importância para a configuração do Ethos
cultural de um povo.
- Segundo, um dado arquetípico dos mais poderosos do
seu Inconsciente Coletivo.
O primeiro aspecto é de natureza política e responde
a seguinte pergunta: “Como motivar um povo a lutar e a sofrer (se preciso for)
pelo seu futuro?”. A consciência histórica de fazer parte de um Povo Eleito, de
ter Javé como seu guia e de ser agente ativo num projeto messiânico fez com que
cada judeu conseguisse sobrepor-se na hora decisiva aos seus próprios interesses
individuais. A consciência política do povo judeu sempre foi mais forte do que
qualquer conjugação de interesses particulares. A alma e o Leitmotiv do povo eleito foi
um sonho, uma utopia: a realização do Reino Messiânico!
Faz parte das características essenciais do reino
messiânico ser teocrático. É Deus que governa e dirige o seu povo. É Javé que
caminha à frente dos seus.
Numa teocracia só existe um poder legítimo: o de Deus
e o que é exercido em seu nome e sob o seu controle. Absoluto só é o poder de
Deus. Toda autoridade exercida por homens está sujeita ao controle tanto de
Deus em Pessoa, quanto do povo. A voz do povo tinha em certos momentos mais
peso e vigor do que o poder do rei.
O profetismo encarnava a voz e os anseios do povo. Era,
pois, uma instituição eminentemente democrática, destinada a contrabalançar e
neutralizar até certo ponto os exercícios do poder monárquico. O critério
político que determinava a intervenção dos profetas não era a ordem, mas a
justiça. Não os interessava a paz a qualquer preço, mas a paz que resulta da
justiça. A opressão dos fracos por parte dos poderosos e a exploração dos
pobres por parte dos ricos constituíam o alvo preferido de suas diatribes.
O REINO DE DEUS UM IDEAL
O Reino Messiânico não era para eles um ideal a ser
posto em execução imediata, mas uma medida, um paradigma (diríamos hoje), um
critério de avaliação moral e política. Toda vez que o povo se afastava de Deus
e sempre que o rei se distanciava tanto de Deus como do povo, surgia o profeta
para recolocar o sistema nos seus devidos eixos.
O Reino Messiânico dos profetas não fazia parte do
mundo das realidades escatológicas. Não era, portanto, um sonho destinado a
encontrar sua plena realização numa outra vida. O judeu, via de regra, pouco se
preocupava com o que vinha depois da morte. Para ele o Reino Messiânico era uma
promessa de Deus destinada a se cumprir em tempo histórico.
Aos poucos os profetas foram rareando e o último do
qual se tem notícia viveu no século VI a.C. O sonho do Reino foi se apagando,
ou então passou a ser usado por aventureiros políticos pouco escrupulosos.
Depois do ano de 133 d.C. os romanos se encarregaram de esvaziar em caráter
definitivo de qualquer chance política o sonho messiânico do povo judeu. Foram
dispersos pelo mundo inteiro e, contudo, permaneceram unidos, alimentando em
suas sinagogas a esperança de um reencontro com o ideal messiânico.
A ideia de um reino ideal se apoia em três
pressupostos:
- Primeiro, uma realidade presente, se não
intolerável de todo, ao menos distante do que qualquer cidadão consciente e
civilizado considera como requisitos mínimos de uma sociedade humana justa,
digna de seres racionais.
- Segundo, por trás desta esperança de dias melhores
deve haver uma certeza, pois sem ela a esperança deixaria de existir e seu
lugar seria ocupado pela ilusão.
- Terceiro requisito: deve haver um modelo a partir
do qual é possível dimensionar os contornos fundamentais do Reino Messiânico.
O povo judeu sempre foi um povo sofrido. Sempre teve
que lutar duramente por tudo o que conseguiu conquistar e realizar. É só pensar
na Terra Prometida, sua pátria, onde o “leite” e o “mel” eram na época de
Moisés tão escassos quanto hoje. Onde o judeu põe o pé, a perseguição se lhe
gruda no calcanhar. Mas uma certeza o judeu sempre tinha: “Deus está do meu
lado!”.
Deus (isto é, Javé) precisa de nós como nós
precisamos dele! A relação de um judeu com seu Deus é tudo, menos servil. Um
judeu religioso não se sente diminuído pelo fato de estar às ordens de seu
Deus. Pelo contrário, sente-se dignificado pelo fato de poder obedecer a tão
excelso Senhor. É possível que em nossos dias seja difícil encontrar um judeu
que deposite em Deus a mesma fé que desde séculos se acostumou a depositar no
poderio financeiro e militar. Toda vez que o povo de Israel cometeu o mesmo
erro, acabou pagando por ele um alto preço. Recebeu por ele um castigo
correspondente ao de “Alta Traição”.
Resta uma pergunta que merece atenção: “Donde o povo
de Israel tirou a ideia de um Reino Messiânico Ideal?”. Faz parte do credo
religioso do judaísmo a crença num estado inicial em tudo oposto à situação do
momento histórico atual. O homem primordial foi criado por Deus em primeira mão
(e não por intermédio de terceiros). Depois de tê-lo criado, Deus viu que tudo
o que tinha feito era bom, incluído o homem. Das páginas iniciais da história
humana fazem parte o Jardim do Éden (ou Paraíso), a mulher, sua extraordinária
intimidade com Deus e uma forma invejável de viver em harmonia com a natureza.
Tudo isso se perdeu. Mas ficou no Inconsciente
Coletivo de cada ser humano a saudade e o desejo de um reencontro com este
estado de comunhão íntima com Deus e com a natureza. Foi provavelmente sob a
influência dessa nostalgia do Paraíso perdido que Isaías escreveu essas
palavras enigmáticas e aparentemente pouco dignas de figurar num escrito tido
como sagrado e inspirado por Deus: “Habitarão juntos o lobo e o cordeiro, e o
leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarão
juntos... A vaca e o urso comerão na mesma pastagem... O leão e o boi comerão
igualmente palha...” (Is 11, 6-7).
Padre Marcos Bach