A MORTE E O ENCONTRO COM A VIDA
Durante milênios a morte foi identificada como
momento final da vida de uma pessoa. Cercando-se de luto, chorava-se a morte de
uma pessoa. A cor do luto era o preto e o sentimento mais adequado ao estado de
espírito dos sobreviventes era a tristeza. Rir num enterro ou num velório era
tão inadmissível e impróprio quanto blasfemar o nome de Deus.
A morte exigia e impunha respeito. Um respeito que a
vida parecia não impor. A morte e tudo o que tinha alguma ligação com ela era
cercada por uma aura de sacralidade. Faltou, porém, estender esta aura de
respeito sagrado à vida e das suas manifestações mais significativas.
Num campo de batalha dá para perceber a distância que
separa o respeito pela vida do respeito pela morte. Nem sequer é preciso ir a
um campo de batalha, basta sentar-se ao volante de um carro e pôr-se a
dirigi-lo em meio ao trânsito infernal de uma rodovia.
Temos a cada passo que damos oportunidade de
constatar a trágica distância que separa nosso discurso sobre a morte do
discurso hipócrita com que enaltecemos a dignidade infinitamente maior da vida.
A relação da morte com a vida, geralmente definida
como luta, a palavra grega para caracterizar esta luta é a palavra agonia. Em
condições normais é agonizando que as pessoas se despedem da vida. Dois são os
equívocos que poluem esta concepção. Primeiro erro: a morte não põe fim à vida
de uma pessoa. Segundo erro: a agonia não representa o estágio derradeiro do
processo de morte.
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, após um desmaio
descreveu a experiência com o seguinte comentário: “Como deve ser agradável
morrer”!
O fariseu conseguiu bulir com a paciência de Jesus
porque teimava em atribuir a si e a suas boas obras o mérito exclusivo da sua
justiça. É evidente que não podiam concordar com Jesus, quando o Divino Mestre
se referiu a eles dizendo: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e
fariseus, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20).
A morte é um acontecimento em que a pessoa não dispõe
mais de si mesma. A morte não se experimenta nem se vive. A morte se sofre.
Teilhard de Chardin faz uma distinção entre o que ele
chama de passividades de diminuição e passividades de crescimento. Os que viram
Jesus expirar na cruz provavelmente saíram do Gólgota convencidos de que tinham
assistido ao fim de um belo sonho. Devem ter sido bem poucos os discípulos de
Jesus que ainda depositavam alguma fé em suas promessas.
Para o apóstolo Paulo Cristo seria o maior impostor
que a história conheceu “se não tivesse ressuscitado dos mortos, pois toda a
nossa fé seria vã no caso de ele não ter ressuscitado” (I Cor 15,17). Tão vã
como a nossa fé seria a ressurreição de Cristo, caso o universo todo não
tivesse ressuscitado com ele. Foi Santo Ambrósio que carimbou a expressão
segundo a qual o universo inteiro deixou de ser o mesmo depois que Cristo
ressuscitou. “In eo surrexit mundus”,
diz Ambrósio.
A dimensão cósmica da ressurreição de Jesus,
envolvendo por igual místicos e cientistas, poetas e historiadores,
antropólogos e teólogos é tão fundamental, que qualquer concepção antropológica
bairrista deve ser descartada a limine,
como defeituosa e viciada. Não é somente o teólogo que precisa tratar o
cientista com mais respeito. É também o cientista que precisa de mais
humildade. O “Cogito, ergo sum” de
René Descartes, só expressa a metade de uma verdade maior. O místico se põe em
combate com esta verdade maior através de oração. Pois é além das fronteiras
determinadas pelo pensamento que o Logos Divino se encontra à espera da
consciência do homem.
A palavra mortificação não encontrou espaço no
vocabulário científico. Só encontrou espaço no vocabulário teológico. A morte
faz parte da vida. Ela não ocorre só uma única vez, como acontece com o
nascimento. Ela, a morte, acompanha a vida desde que esta teve início.
Morte e vida não são antônimas, são sinônimos. A
morte sempre foi interpretada e vista como inimiga da vida e como fim de vida.
Mas quem familiarizou seu pensamento com o de Cristo e do apóstolo Paulo, concebe
a morte como um avanço na vida. A morte não põe fim a nada, exceto a um
cativeiro, que com o passar do tempo, ia se tornando cada vez mais
insuportável.
A moderna tanatologia científica ainda patina em
terreno escorregadio porque continua vendo a morte como a viam Sócrates e
Platão, Sêneca e Cícero.
O falecido cientista americano David Bohm acusou o
mundo científico de estar sendo vítima de uma colossal autofraude, achando que
o mundo real coincide com o mundo formal do cientista. Que não existe mais nada
além do horizonte determinado pela mente do observador científico. É do mesmo
autor a tese de que além da realidade formal existe outra realidade que ainda
não teve tempo nem sequer foi solicitada a se manifestar.
A crença de que a nossa razão e nossos sentidos nos
colocam em condições de nos manifestar o universo por inteiro deve ser
descartada como infantil. A ciência nunca nos vai revelar tudo o que ainda não
sabemos. Até hoje o pensamento científico ainda não encontrou um lugar para
Deus. A fé que nos leva até Deus é tão confiável quanto a razão. Einstein não
se envergonhou da sua condição de crente.
O Apocalipse menciona repetidas vezes a existência de
uma “segunda morte” (Ap 21,8), dando com esta afirmação a entender que a morte
faz parte de um processo que se estende para além do tempo histórico.
A egolatria é um vício do qual só poucos conseguem
livrar-se completamente antes de morrer. No terreno do desenvolvimento
espiritual não há lugar para respostas automáticas. A morte não nos vai levar a
um mundo povoado de painéis, cada painel repleto de chaves e teclas, bastando
apertar a tecla certa para obter a resposta correta.
O objeto da fé é o mistério. A fé, mesmo a fé em
Cristo, não se destina a fornecer explicações. Apenas diz o que é, mas não diz
porque é assim. A única verdade com relação à morte é esta: ela não ocorre no
termo final da vida, mas representa apenas o início e o momento inaugural de
uma nova fase da mesma vida que aparentemente chegou ao fim. Está na hora de
pensar seriamente em substituir a concepção terminal da morte por outra mais
condizente com a realidade. Esta outra concepção podemos defini-la como
inaugural.
Se alguém dissesse que a vida das pessoas só começa a
se tornar real a partir do momento em que ela morreu, poderíamos concordar com
ela, desde que atribua não à morte, mas à ressurreição o destino ulterior da
sua vida.
Devemos ao apóstolo Paulo esta preciosidade
teológica: “Assim como uma estrela difere das outras, do mesmo modo os corpos
ressuscitados diferem uns dos outros” (I Cor 15,15).
A destinação inicial dos que morrem é determinada
pelo modo como cada pessoa viveu a sua vida. Quem viveu sua vida servindo à
corrupção, não deve esperar outra coisa após a morte a não ser um prolongamento
da forma como viveu sua vida até então. Quem quer participar da gloriosa
ressurreição de Cristo tem que ter vivido como Cristo viveu e ser tão livre
como Ele foi.
Nada corrompe tanto o espírito do homem do que o
apego aos bens materiais. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mt 19,24). “Coais os
mosquitos, mas engolis os elefantes” (Mt 23,24).
Ganância e avareza são vícios a que um cristão se
encontra tão exposto quanto o banqueiro mais avarento. Ao morrer, cada qual,
seja ele quem for, poderá colher apenas o que semeou. Não há indulgência
plenária capaz de suprir eventuais falhas de natureza administrativa. De nada
adianta ter em vista fins elevados se os meios empregados para alcançá-los não
são adequados. Para ser adequado um meio tem que ser, acima de tudo, eficiente.
Nada impede tanto a eficiência espiritual de uma
pessoa quanto o apego aos bens materiais. Não são os bens em si que dificultam
a maratona espiritual de uma pessoa, mas o fato de ter-se identificado com
eles.
Quando bens materiais são promovidos à condição de
objetos de um culto idolátrico, quando a ausência de Deus já não é mais sentida
como vício e como doença, as condições sociais de um povo estão atingindo um
nível de degradação simplesmente irrecuperável. No campo religioso já atingimos
este nível de degradação.
O apocalipse menciona em três passagens a
possibilidade de uma “segunda morte” (Ap 21,8). Menciona também a possibilidade
de uma “segunda ressurreição” após a “primeira ressurreição” (Ap 20,5). Não
conheço teólogo que tenha dedicado alguma atenção a esse aspecto da escatologia
cristã. Depois da morte o que aguarda a alma do falecido é um julgamento
severo. Primeiro será submetido a um juízo particular. Muito depois, no limiar do
fim dos tempos, será submetido com os demais membros do gênero humano a um
julgamento coletivo que na bíblia recebeu o nome de juízo final.
Pessoas que tiveram morte clínica e passaram pela
“Experiência de Quase Morte” narram que tiveram que responder à pergunta feita
por um Ser de Luz: “Que Fizeste da Tua Vida?” Responder a esta pergunta fora
fácil porque tinham acabado de ver sua vida inteira numa espécie de filme o que
lhes permitiu distinguir, sem possibilidade de engano ou erro o que nela fora
positivo e o que não o fora. Ninguém mencionou algo que se pudesse definir como
julgamento. Parece que na hora final cada qual é convidado a fazer seu próprio
julgamento.
Ao iniciar sua vida todo ser vivo é incumbido da
tarefa de construir-se a si mesmo. Dois biólogos chilenos, Maturana e Varela,
deram a esta tarefa o nome de autopoiese. Assim como um poeta usa palavras para
construir sua poesia, do mesmo modo cada ser vivo usa células para edificar um
novo representante de sua espécie, semelhante a si mesmo. Como, porém, pode um
punhado de células embrionárias ter uma ideia do que é preciso inventar para
edificar um ser tão complexo, com órgãos tão diversificados, como é todo ser
vivo?
Ao enterrar um morto tiramos de circulação tão
somente o seu cadáver, nada mais do que o invólucro mortal é entregue à
destruição. Tudo o que faz parte de seu Eu Superior o falecido levou consigo. O
que acontece depois é tema de especulação, pois são escassas as informações que
possuímos.
Ainda alguns decênios atrás se podia dizer: “Nada
sabemos, pois ninguém voltou para contar”. Mas hoje aumentou significativamente
a possibilidade de trazer de volta à vida pessoas que os médicos já tinham
declarado mortas. A morte clínica não encerra o processo de morrer. Isto só
ocorre quando o cérebro deixa de funcionar. A verdadeira morte é a morte
cerebral. E esta geralmente só ocorre após a morte clínica. Deste modo o
moribundo tem tempo para fazer uma avaliação da sua vida toda, e caso lhe for
aconselhado por misteriosos seres de luz, poderá retornar ao corpo que acabara
de abandonar. Este retorno é penoso e sofrido. A morte continua sendo um enigma
e seus estágios derradeiros continuam sendo uma incógnita.
Viver para os romanos era o mesmo que estar entre os
homens, “inter homines esse”. Morrer
significava para eles deixar o convívio humano. No entanto, faz parte das
verdades básicas da fé cristã a crença na comunhão dos santos. A morte abre
espaço para novas e inusitadas formas de convívio e de comunicação.
Para que duas pessoas possam se comunicar
desembaraçadamente entre si é preciso que possuam em comum o mesmo nível de
consciência. “Simile simili gaudet”
diziam os romanos, “igual atrai igual”, dizemos nós.
Padre Marcos Bach