AMOR CONJUGAL

CAMINHAR LADO A LADO

Renunciar ao prazer sexual não possui valor moral em si. Este lhe advém do motivo, da intenção e das circunstâncias que o envolvem. O celibatário, mais que o casado, corre o risco de isolar sua sexualidade e de eximi-la de qualquer compromisso de natureza social. Sob o pretexto de amar a todos com o mesmo amor, acaba sendo vítima de uma autoestima mais narcisista e autolátrica do que cristã. Quando e onde um celibatário é solicitado a condividir e a compartilhar o seu prazer com o de outro?
           
Um casado tem esta oportunidade a cada passo. Pode haver prazer mais gratificante e puro do que a companhia de uma pessoa amada? O que celibatários podem esquecer facilmente é que a razão de ser do celibato cristão é melhorar as suas condições de serem companheiros dos seus irmãos!
           
O bom companheiro não é o que vai à nossa frente, nem aquele que vem atrás, mas aquele que caminha a nosso lado, preferivelmente de “mãos dadas”.
           
Deus criou a mulher quando percebeu que o homem precisava de uma “companheira”, diz a Bíblia. Homem e mulher não foram criados por Deus para se completarem mutuamente. A relação sexual nada tem a ver com realização pessoal. Não é suficiente que se façam felizes um ao outro. No dia do casamento colocaram-se a serviço de um projeto muitíssimo mais amplo do que o da sua felicidade pessoal.
           
Quando dois átomos de hidrogênio se unem, liberam uma poderosa carga de energia. O mesmo acontece quando duas almas humanas se unem por um laço de amizade! Assim como cada átomo, também cada alma humana é dotada de uma energia muito mais explosiva e poderosa do que a energia atômica. Esta energia já existe no interior de cada um. Resta aprender como liberá-la!
           
“Vim para lançar fogo sobre a terra, e como desejaria que já estivesse aceso” (Lc 12,49). Onde topar hoje com este fogo abrasador do Amor de Cristo? Os Sumos Sacerdotes da Nova Aliança se encarregaram de recolhê-lo em seus turíbulos e lâmpadas sagradas! O fogo se apagou, mas os bombeiros continuam vigilantes e sempre prontos a apagar qualquer espécie de incêndio indesejado!
           
“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros” (Jo 15,12). Jesus associa o testemunho de fé ao amor para com o próximo.
           
Quem se encontra em melhores condições de dar este testemunho do que um casal cristão, do que um pai amoroso e uma mãe bem “brasileira”?
           

Além dos subsídios com que os dotou a mãe natureza, podem dispor dos recursos inesgotáveis da graça de Cristo. Que mais querem e qual a desculpa que podem invocar em caso de fracasso?

Quatro são os valores que o Criador associou à sexualidade humana: 1) Amor. 2) Prazer. 3) Beleza. 4) Fecundidade.
           
Já falamos do amor e do prazer. Vamos analisar mais de perto os dois últimos “bens”.
           
A beleza é fator decisivo lá onde a escolha é livre. A beleza conquista o espírito e se impõe por si mesma. Seu poder de atração é praticamente irresistível. É da “contemplação” mútua da beleza que alimenta o amor entre duas almas. Não fosse tão “belo”, o amor não atrairia com a força que conhecemos tão bem. Um dos Livros Sagrados da Bíblia, o Cântico dos Cânticos, se dedica a descrever a beleza e a impetuosidade do mais humano dos amores que é o amor entre “namorados”.
           
Quem afirma que “o amor é cego” ainda está por aprender que existe diferença essencial entre o que é apenas “paixonite” e o que é amor. A paixão não é má e não há mal em se apaixonar, desde que o “alvo” da nossa paixão seja, antes de tudo, o “alvo” do nosso amor.
           
A confusão começa quando tratamos como se fosse “amor” o que ainda está longe de sê-lo. A paixão alvoroça os “sentidos” mais que a alma e o coração. O amor acalenta e penetra até o fundo da alma. O amor possui uma “profundeza” e uma “solidez” que a paixão por si só não tem, e separada do amor, não possui.
           
Num bom casamento amor e paixão andam de mãos dadas e só assim é possível a um casal permanecer fiel um ao outro até o termo final de suas vidas.


Padre Marcos Bach


CASAMENTO FELIZ
A comunidade humana até certo ponto exemplar é a comunidade conjugal. Nela se conjugam os interesses e as necessidades mais elementares do homem como da mulher. É onde a maior soma de afinidades se encontram e se conjugam. Mas é, ao mesmo tempo, o lugar onde todo o tipo de extremos se tocam.
Homens e mulheres pertencem a mundos diferentes. Tanto a natureza quanto a educação se encarregam de fazer do homem um ente racional bem pouco parecido com a mulher. Se a mulher fosse apenas a cara metade do homem, a solução do antagonismo entre os sexos  não seria tão difícil. Num casamento não temos dois seres incompletos, unindo-se para formar um ser completo: a Pessoa Conjugal!
A pessoa conjugal não resulta da soma de duas metades. O homem que vai à procura de uma mulher porque se sente incompleto, solitário e necessitado de ajuda e complementação, seja lá em que nível for, não deveria pensar em casar pela Igreja. O conceito de complementariedade é pobre demais para justificar um compromisso de amor por toda a vida! Quem casa porque precisa de alguma coisa que espera receber da outra parte, deve estar preparado para tudo, menos para o que costumamos alinhar sob o conceito de casamento feliz.
Na Inglaterra, um país arquiconservador, mais que um em cada três casamentos termina em divórcio. Três dos quatro filhos da rainha inglesa já estão divorciados. Isso que a rainha da Inglaterra é chefe suprema da Igreja Anglicana! Não há moral capaz de servir de dique eficaz à paixão humana. Para restabelecer a boa ordem precisamos de muito mais do que de boas leis e de controle social mais rigoroso. É de dentro dos homens e não de fora deles que deve brotar a energia capaz de levar as águas revoltas da licenciosidade a refluir.
Leis e normas não se destinam a despertar as consciências. Seu destino é a memória. Quem não sabe que a simples lembrança de um dever não é suficiente para garantir o seu cumprimento? O grande problema ético com que um casal de hoje se defronta não é a ignorância ou desconhecimento da lei moral, mas a energia necessária para pô-la em prática. De pouco adianta apelar para a coragem de um soldado que não vê o menor sentido em expor-se ao risco de perder a vida. Não há sistema moral capaz de gerar por si as energias que sua implantação requer. Todo apelo moral é impotente. Por isso é necessário ir além do discurso e da pregação moral.
A frequência dos sacramentos, a oração e a penitência são meios que nenhum tratado de espiritualidade deixa de mencionar. Mas também tudo isso não basta porque representa uma forma de ajuda externa.
Temos que ir mais longe, isto é, temos de penetrar no íntimo das pessoas, pois é lá que está a chave da solução. Não há truques mágicos capazes de proporcionar a um casal a energia necessária para recomeçar sempre de novo, pois o casamento é um edifício que é preciso consertar e remodelar sempre de novo. Casar é como ir morar numa casa que nunca vai ficar pronta.
Donde tirar a paciência para não desanimar? Este é o problema para o qual a espiritualidade cristã tenta encontrar uma solução. Ela se baseia na crença de que a salvação não vem de fora, mas do interior do próprio homem. Não há juramentos e convenções capazes de suprir a falta de convicções pessoais. Não é a Igreja que deve proteger a um casal católico. É o próprio casal que deve fazer isso. E se ele não estiver empenhado em fazer do seu casamento uma experiência digna de ser levada até o fim, isto é, até a plenitude, então é inútil cercá-lo com muros de proteção. O tentador sabe muito bem como escalar um muro. A única coisa que não consegue é penetrar em recintos onde o homem e Deus estão unidos num propósito comum. 

Padre Marcos Bach


OS FRUTOS MAIS BELOS DO AMOR CONJUGAL

A um cristão não pode ser permitido em nome de Cristo o que a nenhum ser humano é lícito tolerar: o desperdício incrível de energia espiritual menos por excessos do que por omissões, cometidos no campo sexual. É algo que deveria impressionar muito mais os espíritos lúcidos do que qualquer outro tipo de crise energética.

Os anos de vida conjugal vão passando sem que o desejo dos sentidos se transforme em paixão e ternura; sem que estas se transformem em amor e amizade; e sem que o amor se desdobre em afeição, serviço, oblação e comunhão.

Quantas vidas apresentam no campo sexual o quadro de uma realidade marcada pelo marasmo, pela imobilidade e fixação em níveis pré-humanos de relacionamento sexual. São vidas que não se desenrolam, porém, ao contrário, vão se enrolando cada vez mais.

Para a reta compreensão desta tarefa é preciso ter em mente que o espaço sexual humano é o da liberdade. E esta não se mede a partir do número de possibilidades de posse e escolha, mas a partir do grau de desprendimento e da capacidade de ampliar constantemente o espaço não-possessivo em benefício da dinâmica oblativa. Sem uma dose bem sacudida de ascese e renúncia não é possível dar, no terreno do relacionamento sexual, nenhum passo significativo para frente. No momento, porém, em que esta ascese tira do casal o fruto mais belo do seu amor, a alegria de viver, ela deve ser repelida como contrária ao espírito cristão.
           
A sede de consumo maciço pouco espaço deixa no espírito do homem de hoje para a abstenção e a renuncia. Despojada de seu significado religioso, a vida se torna em luta sem quartel pelas melhores fatias do bolo econômico e social.

Quando se transforma o campo sexual em área de competição e/ou de exploração hedonista em lugar de reservá-lo exclusivamente para o lazer e a vivência gratuita e espontânea do amor, o desastre social não passa a ser mais que uma questão de tempo. Tanto é urgente e necessário opor um dique ao permissivismo liberaloide e suicida, quanto às tentativas dos sistemas totalitários de atrelar a sexualidade ao carro-chefe da produtividade.

Não se pode definir como cristã simplesmente a moral católica tradicional, nem a ética cristã convencional. Nela não está refletida a imagem do homem novo do Evangelho, o arauto da Boa-Nova da libertação.

Vista à distância crítica, a moral sexual opressiva e puritana da década de 30 só podia exasperar um espírito como o de Reich, já que não encontrava nela o respeito pela pessoa que deveria ser o apanágio de todo e qualquer sistema moral.

Foi em grande parte sob a égide e ao abrigo desta moral dita cristã que Hitler construiu a maior máquina de destruição da História, ao menos até aquela data. Existem indícios bem significativos de que o advento da nova ordem moral já está em vias de se tornar realidade, e que o centro do interesse e da preocupação moral será constituído em torno da dignidade inalienável e da grandeza divina da pessoa humana.

Padre Marcos Bach



CASAMENTO E AMOR

A relação entre amor e sexo, amor e casamento só aos poucos foi se impondo à consciência do homem.
           
Hoje corremos o risco de julgar o passado com base nas conquistas culturais do nosso tempo.
           
Para nós a relação entre sexo e amor, amor e casamento é coisa tão óbvia, que não a discutimos sequer, ao menos para efeitos práticos. Nutrimos a convicção de que todo mundo em todos os tempos e quadrantes da terra casava por amor. Que a atividade sexual era expressão de amor.
           
No entanto, não é assim que se nos apresenta o passado histórico. Não é preciso mergulhar até a aurora dos tempos para flagrar uma realidade sexual que a nossos olhos parece nunca ter existido. O casamento ou punha fim à fase romântica do namoro, ou permanecia soberanamente alheio a devaneios poéticos. Era uma necessidade, uma espécie de fatalidade biossocial a que só poucos conseguiam fugir sem risco de marginalização psicológica e social. O amor era a aventura; o casamento, o seu fim. Realizado o casamento, uma montanha de obrigações e expectativas se abatia sobre o casal, tomando todo o espaço antes ocupado pelo sonho e pelo devaneio romântico. Casar era como o despertar de um sonho lindo e maravilhoso.

Enquanto o jovem namorado sonhava, os casados, isto é, os adultos, sorriam do jovem o sorriso amarelo da inveja, orgulhando-se do seu “realismo” em relação à vida concreta. Para fazer um filho bastam cinco minutos de prazer, mas são necessários muitos anos de sofrimento, dedicação gratuita e renúncia para criá-lo depois. Isso os namorados esquecem. É só disso que os casados se lembram. Não é difícil encontrar uma ponte entre amor e sexo. O difícil é vislumbrar alguma ligação interna e subterrânea entre casamento e amor.
           
Onde estão as provas de afirmação tão pouco lisonjeiras para os nossos brios de representantes da mais avançada civilização de todos os tempos?
           
Não pode existir relação reconhecida entre amor, sexo e casamento onde não existe escolha livre. Ora, a livre escolha do parceiro é um privilégio que data de época recente. Se existia antes, era concedido a poucos, geralmente pertencente às classes mais humildes, por paradoxal que pareça. O direito da mulher à escolha do parceiro era sistematicamente ignorado e desrespeitado, tal como ainda hoje acontece nas “repúblicas islâmicas”.
           
A subordinação da mulher à autoridade do marido é frontalmente contrária à expansão da relação conjugal no sentido do amor. Ora bem, ainda hoje há quem a apregoe como virtude feminina.
           
A subordinação do amor à finalidade procriativa relega a afetividade a um plano secundário. A plena expansão amorosa da relação conjugal só será possível se a escala de valores for invertida, com o amor no topo.

Ora, mesmo em nossos dias continua em vigor a concepção biologista, que subordina à procriação os demais valores da vida conjugal. Não é verdade que a moral católica tenha excluído o amor da relação conjugal. Mas levou quase dois mil anos até descobrir que existe um laço intrínseco entre amor e comunhão sexual. Mas a transformação do amor em dever, do ato conjugal em débito conjugal, em objeto de transação conduziu ao esvaziamento erótico, à erosão sentimental e afetiva da relação conjugal.
           
A redução do ato conjugal à condição de meio de apaziguamento do desejo carnal colocou a relação conjugal à beira da prostituição legal e moral. É o casamento substituindo o prostíbulo. É a esposa tomando o lugar da rameira.
           
A comercialização do sexo por meio da prostituição só serviu para aumentar a distância que separa amor e sexualidade. A tolerância em relação às “casas de tolerância” significa a conivência com uma das piores chagas da nossa sociedade. Esta atitude de condescendência por si só basta para provar que o cristianismo não chegou até o âmago de nossas estruturas sociais.
           
A imbricação ou envolvimento do amor e do casamento com interesses econômicos, políticos e sociais e mesmo religiosos terminou por prostituí-los ainda mais. A moderna erotomania, simples pornografia com revestimento estético, se encontra na linha de prolongamento duma tendência que vem de muito longe.

Por longo espaço de tempo o amor continuará a ser muito mais decantado que praticado. A palavra amor já tem tantos sentidos escusos e contraditórios que se torna quase impossível identificar o autêntico amor em meio às falsas imitações. Tudo isso levou o nosso mundo a descrer dele e a não esperar nada do amor. Interesses mais reais e menos românticos parece que oferecem melhores condições de estabilidade conjugal do que a chama fugaz e tímida do amor.
           
Há muito tempo que desvinculamos o casamento do amor e o amor do casamento.
           
O primeiro passo foi dado quando o casamento passou a ser encarado como contrato e associação de interesses recíprocos. Na lógica desse passo está outro: a imposição do amor, da indissolubilidade e da fidelidade como obrigações decorrentes do contrato matrimonial. Foi nessa altura da história que teve início o processo de dessacralização do amor e da sexualidade. Tornou-se necessário sacralizar a instituição matrimonial para garantir um mínimo de ligação do casamento com o mundo religioso. O endeusamento da maternidade serviu e ainda continua a servir para encobrir o esvaziamento religioso da vida conjugal. O modelo da família cristã é a de Nazaré, onde o relacionamento era virginal, segundo a doutrina tradicional da Igreja católica.
           
A marginalização do amor tem ainda outra expressão social. É um fato notório que os “grandes amores”, que fizeram história, foram quase que exclusivamente extraconjugais. O casamento tão pouco tinha a ver com amor, especificamente com amor-paixão, que, para encontrar este amor, era preciso escapar à monotonia do leito conjugal. A vida doméstica apoiada no pobre e tantas vezes desiludido amor “feijão com arroz” não oferecia ao casal condições de ultrapassar os limites de uma relação puramente vegetativa. Plácida e estética.

O casamento simplesmente não oferecia clima e espaço para grandes arroubos passionais, já que rebaixava o amor a dimensões demasiadamente domesticadas. Os grandes êxtases amorosos só eram possíveis no aconchego de leitos proibidos e abraços adúlteros. O elevado grau de tolerância moral em relação a tais “abusos” e “fraquezas” demonstra a pouca fé nas virtudes do amor legalizado pelo casamento. A “fraqueza” sexual era quase um direito adquirido pelos poderosos. Era uma espécie de correlato do poder. Basta relembrar aqui a triste figura moral de um Luís XIV, o famoso e catolicíssimo Rei-Sol.
           
O amor cantado em verso e prosa pelos trovadores franceses não era o amor conjugal. Era o que hoje chamaríamos de “amor livre”.
           
As devoções a Nossa Senhora representam, em muitos casos, formas sutis de alienação do amor sexual. Como a mulher era tida na conta de perigosa, foi preciso contrabalançar a sua figura de tentadora do homem por outra figura de mulher impoluta e virginal. A sociedade sempre precisou de vestais. Os conventos repletos de religiosas significam um poderoso para-raios para a consciência de sociedades sexualmente alienadas e subdesenvolvidas. O sacrifício de virgens pertence ao passado. Mas o mecanismo social, que exigia tais sacrifícios, continua ativo.

Padre Marcos Bach


RELAÇÃO DE PAIXÃO E TERNURA
           
A um cristão não pode ser permitido, em nome de Cristo, o que a nenhum ser humano é lícito tolerar: o desperdício incrível de energia espiritual menos por excessos do que por omissões, cometidos no campo sexual. É algo que deveria impressionar muito mais os espíritos lúcidos do que qualquer outro tipo de crise energética. Os anos de vida conjugal vão passando, sem que o desejo dos sentidos se transforme em paixão e ternura; sem que estas se transformem em amor e amizade; e sem que o amor se desdobre em afeição, serviço, oblação e comunhão.

Quantas vidas apresentam no campo sexual o quadro de uma realidade marcada pelo marasmo, pela imobilidade e fixação em níveis pré-humanos de relacionamento sexual. São vidas que não se desenrolam, porém, ao contrário, vão se enrolando cada vez mais. Para a reta compreensão desta tarefa é preciso ter em mente que o espaço sexual humano é o da liberdade. E esta não se mede a partir do número de possibilidades de posse e escolha, mas a partir do grau de desprendimento e da capacidade de ampliar constantemente o espaço não-possessivo em benefício da dinâmica oblativa. Sem uma dose bem sacudida de ascese e renúncia não é possível dar, no terreno do relacionamento sexual, nenhum passo significativo para frente. No momento, porém, em que esta ascese tira do casal o fruto mais belo do seu amor, a alegria de viver, ela deve ser repelida como contrária ao espírito cristão.
           
A sede de consumo maciço pouco espaço deixa no espírito do homem de hoje para a abstenção e a renuncia. Despojada de seu significado religioso, a vida se torna em luta sem quartel pelas melhores fatias do bolo econômico e social. Quando se transforma o campo sexual em área de competição e/ou de exploração hedonista, em lugar de reservá-lo exclusivamente para o lazer e a vivência gratuita e espontânea do amor, o desastre social não passa a ser mais que uma questão de tempo. Tanto é urgente e necessário opor um dique ao permissivismo liberaloide e suicida, quanto às tentativas dos sistemas totalitários de atrelar a sexualidade ao carro-chefe da produtividade.
           
Como o interior das coisas e dos seres se vai perdendo gradualmente na luz negra do mistério, o cientista o deixa de lado. A própria Psicologia, que parece ter como objeto a subjetividade da pessoa humana, comete o pecado de encerrar o homem sem uma psique. Por mais preciosa que seja a contribuição das ciências, suas descobertas se situam na periferia das coisas. Não atingem mais do que o seu exterior. O próprio método é discutível, já que pretende explicar a realidade partindo de fora para dentro.
           
Por isso se torna imprescindível inverter o processo. Mas como partir de dentro sem ter chegado até lá? Como partir do ponto a que se pretende chegar?
           
A solução deste aparente paradoxo nada tem de absurdo, se considerarmos que todos os caminhos, que levam o homem para mais perto de si próprio, representam um retorno à sua origem. O futuro absoluto coincide com o passado absoluto.

Padre Marcos Bach


O AMOR SÓ PODE SER INFINITO

Se Deus é Amor, então o amor só pode ser tão infinito quanto o próprio Deus! Se somos imagens de Deus feitos por Ele à sua semelhança, então nossa capacidade de dar e de receber amor deve ser a mesma de Deus. Basicamente a mesma, embora contingente e limitada!
           
O Amor de Deus tem sobre o nosso a capacidade de ir sempre mais longe do que o nosso! Somos prisioneiros do tempo e sujeitos ao lento ritmo do processo evolutivo! Nossas mães têm que esperar nove meses até poderem dar à luz a sua “cria”! Um casal deve esperar cinquenta anos até que possa festejar as bodas de ouro!
           
Tudo o que existe de semelhante a Deus só amadurece com o correr do tempo e exige da parte do homem muita paciência, muita perseverança e muita fé.
           
O que reduz a nossa capacidade de amar é nossa falta de paciência e de fé! Invejamos a paciência de Deus, mas não a incluímos em nosso catálogo de virtudes! Desculpamos nossos divórcios apressados e nos apressados fins de amor, alegando que houve engano! “Enganei-me pensando que ela me amava, mas o que ela queria era casamento, sexo e status social”! É assim que o maridinho “traído” justifica seu pedido de divórcio!
           
Aquele que se engana ou se deixa enganar em seus relacionamentos afetivos deve a sua desgraça a si mesmo. O culpado não é o amor nem a ingenuidade de ter depositado no amor uma fé que ele, o amor, não consegue justificar! O amor não engana fazendo-nos ver o que não é ou levando-nos a não ver o que existe na pessoa amada. O amor é lúcido e nada tem a ver com a tremenda confusão que reina no campo dos relacionamentos humanos.
           
A defectibilidade da natureza humana longe de ser uma deficiência, é uma riqueza. Riqueza virtual, pois é o espaço que o Criador reservou à continuação da sua obra criadora!
           
Um animal atinge rapidamente a plenitude de suas potencialidades naturais. Uma tartaruga passa a maior parte de sua existência parada no tempo, sem a preocupação de continuar a crescer. Um papagaio aprende já nos primeiros anos de vida o que precisa saber. O ser humano é o único animal que nunca se contenta com o que sabe. Quer saber sempre mais. Sua sede de saber é insaciável!
           
Já que o amor é uma forma de conhecimento, como afirma a Bíblia, e por ser de todas a mais nobre e a que estabelece a mais íntima das uniões entre seres inteligentes, não é possível fazer pesquisa científica sem amor e com a fria objetividade tida até pouco tempo atrás como requisito sério e honesto!
Platão foi o último filósofo de grande porte que ousou associar saber e amor com a presença de uma misteriosa “centelha divina” no interior do homem.
           
Existe no interior da pessoa humana uma luz que o ilumina a partir de dentro. Carl Gustav Jung se refere a ela dando-lhe o nome de “luz numênica” em oposição à luz fenomênica a que nossos olhos conseguem captar. Trata-se de uma luz inacessível aos sentidos e à razão, pois não pertence ao nosso mundo tridimensional. Revela-se e se deixa ver tão somente por aqueles que, como Moisés no Monte Horeb, se contentam com contemplar a Terra Prometida!
           
Em oposição ao cientista de antanho o cientista moderno admite que o conhecimento é apenas uma aproximação da verdade e que na melhor das hipóteses nos revela apenas uma parcela da verdade total.
           
Gregory Bateson diria que a natureza se nos manifesta como metáfora: não basta ver e descrever o que se viu! Não basta observar a flor: é preciso interpretá-la, decodificá-la e recodificá-la.
           
Os mais destacados cientistas foram contemplativos. O contemplativo não se ilude com o que vê: sabe que “o essencial é invisível” como diz St. Exupéry no Pequeno Príncipe!
           
A melhor resposta que o espírito do homem pode dar aos desafios da natureza não é de natureza técnica, mas pertence a outra categoria de respostas que dispensam a intervenção de instrumentos técnicos. Não há religião que não possua o seu arsenal de recursos sacramentais dotados do poder mágico de colocar o espírito do homem em contato com a Verdade Suprema!
           
Houve uma época em que os mais destacados próceres do pensamento científico como Augusto Comte, achavam que a ciência tinha condições de substituir a religião em sua pretensão de representar o estuário supremo de todo o saber humano.
           
Atingimos no campo do conhecimento humano um patamar que já não nos permite interpretar o mundo e a história como o fizeram nossos antepassados. O mundo que nos cerca encontra-se prenhe de mensagens em código que é preciso decodificar.
           
“Uma verdade é tanto mais verdadeira quanto mais complexa for”. Ou por outra: “quanto menos inteligível for”.  O que pode ser entendido por qualquer um sem esforço e sem procura, provavelmente não faz parte dos aspectos essenciais da realidade. Para descobrir o que é essencial é preciso procurar muito, perguntar muito. A melhor resposta é aquela que enseja uma nova pergunta, melhor que a anterior. É preciso ter fé e ter a coragem de ir muito mais longe do que o permitem a razão e os sentidos!

Padre Marcos Bach


O SENTIDO ÚLTIMO DA SEXUALIDADE HUMANA

Um sistema moral que parte da premissa que a abstinência sexual é mais perfeita do que o “usus venereorum”, e que a mulher por excelência é a mulher “virgem”, deveria se questionar: será que foi isto que Jesus tinha em mente? Com o intuito de compensar um pouco as falhas mais que notórias da Moral católica, inventou-se a assim chamada “Espiritualidade Conjugal”! Criaram-se Movimentos Familiares e abriram-se “cursos de espiritualidade matrimonial”. Nestes cursos,  “espiritualidade” e “atividade sexual” eram tratadas como se uma delas não tivesse nenhuma relação intrínseca com a outra. Uma distância “asséptica” as mantinha longe uma da outra. Uma “faixa sanitária” bem larga separava a “vida espiritual” da vida matrimonial. A atividade sexual era tratada como se não possuísse valor espiritual em si mesma. Este lhe vinha “de fora”, da oração e da recepção dos sacramentos.
           
O sexo era visto como terreno extremamente “perigoso” e pouco apto a favorecer o “espírito”. Era território em que o “demônio” reinava e onde fazia os estragos mais sérios. Era preciso “exorcizá-lo”, e para tanto nada melhor do que a “mortificação dos sentidos”! Nenhuma atividade humana parecia aproximar o homem tanto do animal quanto a atividade sexual. Pequena era a diferença que separava a devassidão do “cumprimento do dever conjugal”.
           
O ato de ceder ao desejo sexual era visto como manifestação de “fraqueza” moral e espiritual. Um casal “virtuoso” só realiza o ato conjugal em vista da procriação ou com o fito de evitar mal maior, que seria a infidelidade conjugal. Santo Tomás, como Santo Agostinho, ainda sustentavam a tese de que todo ato sexual, realizado com vistos ao prazer, é pecaminoso.
           
Hoje esta tese já não encontra mais defensores, mas na “cabeça” dos “diretores espirituais” de “Movimentos de Casais”, sexo, prazer e pecado continuam formando um “trio” inseparável. Em resumo: Tanto à Moral católica quanto à “espiritualidade matrimonial” proposta pela Igreja, falta “profundidade teológica”.
           
Quem quer entender a razão que levou o Criador a criar o homem em versão dupla, que representam formas irredutíveis de ser Homem, não pode contentar-se com o que a humanidade já foi em épocas passadas. O protótipo do homem e da mulher plenamente “humanizado”, não é no Jardim do Éden que devemos procurá-lo. Os representantes da humanidade atual não entram em questão, pois a distância que os separa do “zoológico” é ainda pequena demais.
           
Onde devemos ir se quisermos encontrar o protótipo do homem perfeito? Da mulher plenamente feminina? Temos que “mergulhar” no futuro da humanidade e ir até o “fundamento escatológico” de toda a história humana.
           
Para compreender a misteriosa “atração” que impele homens e mulheres a se unirem num vínculo indissolúvel de amor, é preciso deixar para trás o tempo histórico-existencial e mergulhar na realidade pós-histórica, quando o tempo passageiro do momento atual será substituído por um outro tempo, a “plenitude dos tempos”, onde o que de momento é provisório irá tornar-se definitivo e irreversível. Tudo o que torna tão belo e ao mesmo tempo tão problemático o relacionamento sexual, só pode ser compreendido por quem se coloca no termo de “chegada”.
           
O sentido “último” da sexualidade humana é ajudar homens e mulheres a “chegarem juntos ao final da “corrida”. A certeza de que estão “correndo bem” lhes vem não do fato de estarem juntos, mas da “certeza” de que estarão ainda juntos no momento da “chegada”. Esta “certeza” da vitória é sua fonte de encorajamento e o “fundamento escatológico” do seu amor mútuo. Esta “certeza” se chama Esperança Cristã. Muita gente interpreta mal a palavra de Jesus: na outra vida “não casam nem serão dados em casamento”. O casamento é uma instituição humana, que Jesus rejeitou dentro de certos limites. Amar e casar não são sinônimos. Pode-se casar sem amar e amar sem casar.
           
Outra palavra de Jesus que assusta a muito “consumidor de sexo”, é esta: “Serão como os Anjos do Céu” (Mt 22,30). O que esta gente esquece é que a capacidade de amar exige uma liberdade de amar que os anjos do céu provavelmente já possuem em grau muito superior a nossa modesta capacidade de “amar sem reservas”!
           
Outro detalhe que costuma ser esquecido é este: o desejo sexual é ambivalente. Pode transformar-se em instrumento do mais feroz egoísmo, como pode ser instrumento da mais bela forma de amor humano! Esta ambivalência os promotores do “amor romântico” e “livre” costumam ignorar.
Padre Marcos Bach


HOMENS E MULHERES COM EXPRESSÕES DIFERENTES DA SEXUALIDADE

Cada sexo julga o outro por si. O prazer que experimentam não tem a mesma amplitude, o mesmo grau de ressonância psíquica. O homem raramente investe no ato sexual mais do que uma fração da sua personalidade. A mulher quando investe, entra com tudo: sexo, corpo, alma!
           
Para o homem o amor não é o objetivo principal. O seu objetivo determinante é o orgasmo. Quer livrar-se de uma pressão!
           
Homens e mulheres não são iguais. Por mais que mulheres emancipadas queiram companheiros que as tratem como iguais, sempre terão que contar com homens tão diferentes delas que nem sequer conseguem falar a mesma língua.
           
O cérebro da mulher não evoluiu do mesmo modo e na mesma direção que o do homem. Quem passou milênios ocupado em passar o tempo quase todo caçando e fazendo a guerra, não pode ter o mesmo cérebro nem as mesmas aptidões psicológicas que uma boa dona de casa! O coquetel de hormônios que o organismo de um homem produz é diferente do que o corpo feminino costuma produzir. Todas estas são diferenças que vieram para ficar. É muito provável que estas (e outras) diferenças aumentem e se acentuem ao longo do processo evolutivo humano.
           
Desigualdade não é necessariamente sinônimo de injustiça. O cunho dialético da competição entre homens e mulheres requer um esforço comum no sentido de encontrarem juntos e de mãos dadas um modo de superar o conflito. Para que isto aconteça, é preciso que os homens aprendam a se identificar mais como seres humanos e menos como caçadores profissionais, como guerreiros, como provedores da família e protetores da mulher, tomando consciência de que nenhum dos dois sexos é mais ou menos humano que o outro.
           
Enquanto alguma espécie de necessidade determinar homens e mulheres a juntar os trapinhos e a viverem em comum, é prematuro definir o casamento como pacto de amor!
           
Superar uma diferença não é o mesmo que aboli-la.
           
No dia (ou noite) em que um homem descobrir que a criatura estranha, que dorme a seu lado na mesma cama, vive num mundo totalmente diferente do seu, terá condições de compreender porque esta coisinha mimosa é tão exigente a ponto de ser quase impossível satisfazê-la.
           
Homens e mulheres não estão aí para ocupar na vida um do outro um espaço que sem isto permaneceria vazio, inútil e desaproveitado. Nada nos autoriza a definir homens e mulheres como seres carentes, incompletos e com fome um do outro. Repartir o mesmo espaço com outra pessoa não é o mesmo que precisar de sua presença. O relacionamento sexual humano só é humano na medida em que for uma forma de expressar amor!
           
A dissociação entre sexo e amor só acontece na cabeça de quem separa entre si instinto e razão. Ambos, instinto e razão, fazem parte da natureza humana. A diferença entre o animal e o homem reside no fato de que no animal o instinto continua cego, ao passo que no homem ele se tornou inteligente, isto é, mais suscetível de assimilar mudanças e novas regras de jogo!

Padre Marcos Bach


A BASE PARA UM PACTO DE AMOR       

Homem inteligente e digno da sua condição sexual não é aquele que subjuga a mulher e usa os seus talentos, mas aquele que se associa a ela num “pacto de amor”! Homem que se preza não quer repartir a sua vida com um ser “inferior” a ele! Nem Deus quer ser servido por seres inferiores a Ele. Nem se satisfaz com o amor de “escravos”. O amor autêntico só acontece entre iguais!
           
A Encarnação do Verbo de Deus é a prova mais cabal do que acabo de afirmar! O que me deixa triste é pertencer a uma Igreja que ignora tudo isso e se comporta em relação à mulher como no tempo de Cristo. Jesus não nos brindou com uma nova moral. Não porque não houvesse necessidade dela, mas porque os tempos ainda não eram favoráveis. Tudo o que vem de Deus e é obra do Espírito Santo acontece na hora propícia.
           
Creio que atingimos um ponto de “maturidade moral” que nos permite tratar nossas “irmãs na fé” como iguais em tudo! Basta olhar para o que está acontecendo em nosso planeta para ter uma ideia do tamanho das “muralhas” que ainda continuam resistindo ao veemente desejo de unidade que está tomando conta da consciência humana. Por ora, o movimento de “globalização” encalhou no terreno econômico-comercial. O fenômeno como tal faz parte, entretanto, de um fenômeno mais amplo.
           
O lugar reservado à sexualidade humana num sistema moral autenticamente cristão, não pode ser diferente do “lugar” reservado por Cristo a seus “discípulos” e “amigos” na Casa do Pai. O desejo de “comunhão” cada vez mais íntima que fornece o “cimento” e a base de sustentação de todo casamento bem sucedido, continuará a ser, na “outra vida”, o que foi aqui. No ritual católico já não se encontra mais a frase: “até que a morte vos separe”! 

A morte só mantém separado o que já estava separado. O amor, incluídos seus aspectos erótico-passionais, não sofre nenhuma solução de continuidade. Tudo o que há de “efervescente” numa relação de amor, continua presente. Um corpo “espiritualizado” evidentemente se há de prestar a expressões de amor muito mais criativas do que as que este nosso corpo “carnal” nos permite.
           
Como a essência da sexualidade humana é de natureza espiritual, e já que a própria “essência da matéria é espiritual”, como afirma Einstein, não se pode prender a sexualidade humana ao corpo físico e a seus determinismos biofisiológicos sem distorcê-la em aspectos essenciais. Toda união sexual “séria”, só é a que visa a união de duas almas, de dois seres espirituais. O corpo só entra na medida em que se prestar a ser instrumento da alma.
           
Colocar o sexo onde deveria estar o amor é pôr de cabeça para baixo os propósitos do Criador. Deus certamente não criou homens e mulheres para que tenham como satisfazer suas necessidades e desejos de ordem sexual, psicológica ou social. O matrimônio não pode ser reduzido à categoria de “remedium concupiscentiae” sem que venha a perder a sua dignidade de “Sacramentum Salutis”. Um matrimônio só pode ser “cristão” se for meio de “santificação”.
           
Como poderia o amor conjugal ser um “Magnum Misterium” se seu objetivo principal fosse pôr um pouco de ordem no campo das relações sociais? “No Reino de Deus não casam nem serão dados em casamento, serão como os anjos do céu” (Mt 22,30). Este logion de Jesus foi muito mal interpretado. Jesus não condena nem o casamento nem os que casam. Condena, isto sim, uma concepção fisiologista e materialista do matrimônio. Basta lembrar que a afirmação de Jesus faz parte de uma discussão com os saduceus, a ala “materialista” da elite judaica.
           
O fato de Jesus igualar o destino último do amor entre homens e mulheres à condição angélica, não pode ser invocado como argumento a favor do celibato e da abstinência sexual, pois anjos não são seres puramente espirituais. Num mundo material como o nosso, não pode haver lugar para “espíritos puros”. Os anjos que serviram a Jesus no deserto trazendo-lhe pão, certamente tinham “mãos” com que carregá-lo!
           
Os anjos são seres como nós. A única diferença está em que nós ainda não somos o que eles já são. Só na outra vida seremos como eles, se assim o quisermos. O termo castidade “angélica” não faria sentido se os anjos fossem espíritos puros.

Padre Marcos Bach


FORMAÇÃO DA PESSOA CONJUGAL

O órgão encarregado de realizar a personalização é a consciência. É ela e seu grau de desenvolvimento que caracterizam o ser humano como pessoa. Ao desenvolvimento da consciência corre paralela a formação de uma nova realidade orgânica: a formação da consciência comunitária (não coletiva, como no caso da formiga) constituída por consciências pessoais, ultrapassa a sua capacidade somada, porque torna-se fator de integração interpessoal e suprapessoal.
           
É com base nos termos desta reflexão, que se pode (e se deve) elaborar uma teoria sobre a pessoa conjugal. Embora não seja um termo muito usado, diz, no entanto, algo que é essencial para a realização do casamento em sentido cristão. Como a pessoa é uma realidade programática e projetiva, assim a pessoa conjugal não é um dado, mas um programa e um projeto.

A pergunta, que conduz à identificação da pessoa conjugal, é a seguinte: qual o grau de consciência de sua afinidade original que o casal possui, e qual o termo final a que convergem intencional e efetivamente? Em outros termos: qual o nível de convivência e intimidade em que se expressa a densidade relacional da sua vida conjugal? Talvez fosse melhor ainda mudar a pergunta: quanto existe de arcano, de secreto, de misterioso e imprevisível no seu amor? Até que ponto o seu amor justifica a perplexidade dos que se apavoram com a falta de certezas?

Um casamento que se encontra fora do alcance da infidelidade seria aquele com que muito moralista sonha. Mas não ultrapassaria os acanhados limites da mediocridade, fruto do exclusivismo estreito de quem possui fôlego curto em matéria de amor. Quando o casamento é encaixado na categoria segura do contrato, por meio do qual todos os direitos sexuais são conferidos a uma única pessoa com exclusão das demais, até um ato isolado de infidelidade pode constituir razão válida para a ruptura, ao menos parcial, do vínculo conjugal.

O Direito Canônico, ao menos, admite esta possibilidade. Admitida esta hipótese de ruptura parcial em resposta a um adultério do cônjuge, fica subentendida uma concepção do casamento total e frontalmente incompatível com a concepção personalista. A transformação radical do casal em pessoa conjugal não é viável enquanto for mantida a doutrina segundo a qual o matrimônio é na sua essência um contrato, com a finalidade primária de atender as necessidades biológicas da espécie humana.

Enquanto o pensamento se mover dentro dos parâmetros de coordenadas biológicas, a força da graça personalizadora do Cristo personalizador dos indivíduos e das entidades sociais continuará a se chocar contra o muro do medo instintivo que o homem, primitivo e/ou civilizado, nutre em relação aos riscos essenciais de sua condição humana. Sempre que o risco atingir um grau maior de periculosidade, ameaçando minar pela base seguranças estabelecidas em torno de seus interesses e privilégios, este homem reage, como o “establishment” religioso judaico em relação a Cristo. O maior inimigo do progresso humano é o medo. E o medo é filho do egocentrismo. O amor desconhece e ignora solenemente a lógica do medo. O próprio medo de pecar é alheio a quem ama. Sabe que pode pecar. Sabe, porém, que a razão de ser da culpa é o perdão, e não o castigo.

A liberdade é o único espaço que comporta culpa pessoal. A culpa pessoal, o adultério, por ex., supõe um grau de personalização da relação conjugal bem mais aprimorado que o habitual. Abaixo deste parâmetro moral situam-se os deslizes, os passos em falso, as escapadas, as paqueras, os momentos de fraqueza, cuja ressonância sobre a pessoa conjugal é mínima, já que esta praticamente não existe. A culpa pode ser destruída pelo arrependimento e pelo perdão. A estupidez não. Por isso a ignorância e a estupidez são inimigas do amor em grau muito maior do que a culpa pessoal. Em poucas palavras: a mais bem postada bateria de normas e preceitos serve mais para dificultar a formação da pessoa conjugal do que para promovê-la.

Padre Marcos Bach


O ADVENTO DA PESSOA COM AMOR E LIBERDADE          

O que marca o advento da pessoa, de sua entrada triunfal na história dos homens, tem algo a ver com a audácia criadora do amor com liberdade, com consciência e felicidade.

É no terreno sexual que este milagre vai aparecer de forma mais eloquente. A constituição da pessoa conjugal é, em certo sentido, o objetivo último do matrimônio. Mas, honestamente, a quantas andamos neste assunto? Vale a pena levá-lo a sério? Por que aspecto tão fundamental do matrimônio não tem merecido maior atenção? A explicação é simples: inconsciência!

O que é via de regra um casal, senão uma máquina de cumprir tarefas, deveres e funções? Sua vida é determinada por valores que pouca ou nenhuma relação tem com a sua realização pessoal. Mesmo aquelas tarefas e funções que se prendem ao exercício da sexualidade não têm muita relação com as suas reais necessidades sexuais. Enfim, temos ou não temos uma ordem social e moral que ignora solene e desdenhosamente a própria estrutura da sexualidade, e com ela as necessidades verdadeiras de uma genuína relação sexual adulta?

A moral é como a propaganda publicitária: em lugar de se pôr a serviço da felicidade, promete-a a quem se puser a reboque de seus dogmas e normas. Implantar a felicidade universal por via normativa e ideológica: é com esta pretensão que a maioria das instituições gastam tempo e o dinheiro do povo.
           
A noção de pessoa, no sentido em que se aplica ao indivíduo humano, possui uma origem confusa. O termo grego “prôsopon” inclui referência ao rosto, à fronte (frente) do homem. Também expressa, na palavra hipóstasse, aquilo que ao homem é específico do seu ser (ousia, em Aristóteles). Define, assim, a parte substancial, permanente e estável sobre a qual se desdobram as variações todas, que constituem e determinam a personalidade individual. A pessoa é como a semente. A personalidade é a planta em crescimento nascida da semente.
           
A contribuição mais preciosa para a compreensão da palavra pessoa é a que prestou a teologia cristã. Lá o termo pessoa se refere primariamente e em sentido próprio a Deus. A pessoa, por excelência, é Cristo. É pessoa divina e ao mesmo tempo (e precisamente por esta razão) ele é homem – o homem perfeito. O ser humano só é secundariamente pessoa (Julián Marías, Antropologia Metafísica, Duas Cidades, 1971, p. 34).

Em perspectiva teológica pessoa significa, antes de mais nada, relação (correlação, interrelação). O que faz a pessoa não é o que distingue um ser humano do outro, mas aquilo que lhes é comum. Comum é a origem e o ponto de partida. Isso os torna semelhantes, apenas. O decisivo é o termo final, para onde convergem por força da própria dinâmica natural, e de forma determinante por obra da graça do Cristo personalizador dos homens. A personalização é, pois, um processo religioso (já que pode ser definido como divino). É um processo de natureza convergente, pelo qual cada ser humano se encontra voltado para o mesmo termo final que os outros. É essa energia que cria a comunidade cristã. É sua alma, seu espírito.

Padre Marcos Bach


HARMONIA MORAL E ESPIRITUAL       

A tendência que nos leva a considerar o casamento assunto privado, abrigado no silêncio discreto do lar, é responsável por uma série de equívocos funestos. Esta concepção privativa e hermetista do casamento o toma por uma espécie de “arca de Noé”, a flutuar segura e tranquila por sobre as águas do dilúvio, amparada pela mão poderosa e complacente de Deus. Desta forma Deus é feito cúmplice de “arranjos matrimoniais” muito piores do que a própria promiscuidade sexual.

Parece que o tempo, que vale ouro na atividade profissional, já não tem mais o mesmo valor na intimidade do lar. O casamento só pode ser aquilo que a vida é. Quantas vezes ouve-se dizer: “Aquele sujeito não vale nada. Mas tem uma esposa maravilhosa”. Uma mulher virtuosa mais (+) um homem sem verticalidade moral alguma, podem formar uma dupla aceitável. Jamais formarão um casal humano. Além de não respeitar o princípio da totalidade existencial, tais concepções não tomam em conta o princípio da reciprocidade. O tempo conjugal é um e recíproco.
           
Ao falar do tempo conjugal facilmente se incide no erro de tomá-lo como a soma de dois tempos pessoais paralelos. O problema da sincronização (ou falta de sincronização) geralmente é escamoteado, falsamente identificado como incompatibilidade de gênios. Se o casamento é uma “jornada a-dois”, o problema essencial não se relaciona com a presença física (embora seja da máxima importância), mas com o ritmo que ambos imprimem ao seu progresso espiritual. De nada vale a presença física, o convívio no mesmo espaço físico, quando a distância que separa o casal é tanta, que na realidade seria mais honesto dizer que vivem em mundos diferentes e separados. O leito conjugal perde nestes casos completamente seu significado como símbolo de união.

O problema criado pela falta ou excesso de tempo conjugal é devido à falta de sincronia espiritual. A adaptação sexual não se limita ao ajustamento genital. O orgasmo simultâneo ou sincronizado é fator irrelevante para a harmonia conjugal, se o compararmos com a importância decisiva da harmonia espiritual. Importante é, pois, que marido e mulher se sintam perfeitamente à vontade em seus papéis sexuais, para que se possa falar em harmonia psíquica. É preciso que saiam de cada encontro amoroso com a consciência de terem construído juntos mais um degrau em direção ao infinito e definitivo. Caso contrário, não se pode falar em harmonia moral. Deus ficou mais ao alcance da ternura: é o sinal de que o encontro representou um momento religioso, que nada no mundo pode substituir, nem tem o direito de suprimir.

Padre Marcos Bach


SÓ UM GRANDE AMOR É CAPAZ
Mesmo em nossos dias as Igrejas todas definem o matrimônio como contrato social, jurídico e moralmente enquadrado num contexto de leis, cuja força supera o poder de decisão do casal. As Igrejas cristãs continuam presas a uma concepção patriarcalista e legalista toda vez que o assunto é casamento. Só muito recentemente (dois séculos atrás) o mundo ocidental descobriu que a vida conjugal tinha algo a ver com amor. O amor romântico acontecia apenas fora do casamento. A função da esposa era dar filhos ao marido. “Dar amor”, era tarefa reservada a concubinas e amantes.
O futuro da vida familiar vai depender em grande parte da capacidade de homens e mulheres de fazer do casamento um autêntico pacto de amor. A palavra pacto indica que se trata de um compromisso destinado a selar um projeto de vida em comum. 
A palavra amor implica em compromisso irreversível. Também o amor exige sacrifícios. Ninguém, no entanto, se dispõe a fazê-los se não tiver a certeza de que vale a pena. O tempo é o pior inimigo do amor. Só um amor eterno é capaz de sobreviver às vicissitudes da vida. Fidelidade conjugal e indissolubilidade do matrimônio ou brotam do próprio amor, ou não têm como sustentar-se. Impô-las em nome da lei moral não é suficiente para proteger um casal contra a tentação do adultério e do divórcio.
 Só um grande amor é capaz de proteger um casal contra a tentação do adultério e do divórcio.
Só um grande amor é capaz de proteger um casamento dos perigos que ameaçam a sua estabilidade.
Rezar e frequentar os sacramentos pode ser muito bom, desde que não se destinem a suprir a falta de amor. A oração não tem o poder de substituir a falta de diálogo entre marido e esposa. Um amor que não vai além da morte está exposto ao risco de morrer a qualquer momento. Só merece a qualificação de religioso o casamento que inclui Deus e a Eternidade em sua perspectiva. A morte só tem o poder de pôr fim ao casamento, mas não a um pacto de amor. Romeu e Julieta morreram, mas o amor deles continua vivo. Não somente na memória do povo, mas também nos registros de Deus. Casamentos que morrem como moscas em fim de outono, nunca foram mais do que “pau de amarrar égua”, diria o nordestino. Este é o casamento que resulta da conjugação de interesses. Onde o pai dá a sua filha em casamento ao filho de um fulano com a intenção de melhorar o seu próprio cacife social-político, continua vivo. As Igrejas abençoam estes arranjos com as suas melhores bênçãos. Declaram como sendo religiosos casamentos que não merecem a menor confiança. Desacreditam deste modo a si próprios e ao matrimônio como instituição social séria.  
Engana-se rotundamente quem acha que para assegurar a um casamento a desejada estabilidade basta envolvê-lo numa rede protetora de normas e prescrições. Nem o mais severo e nem o mais belo sistema moral têm condições de assegurar a um casamento nem mesmo aquele mínimo de durabilidade, sem a qual nenhuma espécie de ordem social é possível. A saúde de uma sociedade está íntima e profundamente ligada à saúde sexual de seus membros. E esta é, por sua vez, determinada pelo nível em que homens e mulheres se relacionam sexualmente. O problema crucial não está em saber (ou não) onde ir, mas em saber como chegar até lá.

Padre Marcos Bach


SALTO QUALITATIVO NA RELAÇÃO 

Não resta a menor dúvida de que o relacionamento que une e ao mesmo tempo contrapõe homem e mulher, passou por transformações e metamorfoses radicais no decurso da história. Provavelmente a vida de um casal de trogloditas (moradores de cavernas) só lembra muito vagamente o dia a dia de um casal da classe média urbana de hoje. Mesmo assim, estou convencido de que não ocorreu ainda o essencial: o salto qualitativo para um nível superior de relacionamento sexual. A evolução deu o primeiro passo, subtraindo a relação sexual humana do garrote implacável dos determinismos instintivos.

Uma brecha foi aberta entre a fatalidade cega e o domínio da razão; entre a tirania das leis da biologia e a soberania do amor; entre o grupo social e o indivíduo; entre dois tipos de conduta sexual: a domesticada e a livre (ou selvagem). A sexualidade é sob este aspecto parecida com a do animal: perde na medida em que passa a integrar um círculo de interesses que lhe é totalmente alheio. Ambos, a sexualidade e o animal, só se dão bem em ambiente natural, isto é, selvagem.

O grande medo que tira o sono aos domesticadores (castradores) da sexualidade humana, é este mesmo: o medo de ver o comportamento sexual humano mergulhar de novo na liberdade selvagem donde veio. Perdem o seu tempo os que julgam ter atrelado a sexualidade humana de forma definitiva às suas obsoletas estruturas sociais.

Ninguém conhece a energia formidável da sexualidade, assim como um século atrás ninguém imaginava que um desprezível átomo pudesse conter em si o poder de destruir em segundos a maior cidade do mundo. E ainda há no terreno sexual uma outra descoberta a ser feita: o poder multiplicador da união! Um átomo é quase nada. Mas somando e sincronizando a desintegração (ou fissão) de bilhões deles, temos a possibilidade de assistir a algo parecido com uma catástrofe cósmica.
           
Avançamos muito no campo do desenvolvimento sexual desde a aurora da antropogênese. Mas muito mesmo! A brecha foi se dilatando. Cresceu o espaço conjugal: o espaço reservado à ternura do amor; o espaço da autonomia moral; da livre escolha do parceiro; o espaço aberto à felicidade. Muita coisa mudou para melhor!
           
No entanto, tudo o que ficou para trás não é nada (ou muito pouco) comparado com o que ainda resta por fazer. O segundo salto qualitativo não foi dado. Embora em termos bastante amenizados, a dependência biológica continua a prevalecer sobre a liberdade do amor.

Padre Marcos Bach


CONVÍVIO DE MULHERES E HOMENS

A sexualidade é que faz a diferença entre homens e mulheres. Ambos representam dois modos diferentes e em boa parte opostos de ser homem. São como dois pólos destinados a criar um campo de tensão no ambiente social. Não se excluem, mas se atraem mutuamente. Como todo “campo” energético, estendem este poder de atração ao meio ambiente.
        
“Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
        
A sexualidade é em sua essência uma forma de energia de natureza cósmica e espiritual. Se “a essência da matéria é espiritual” (Einstein), então a sexualidade humana só pode ser espiritual também. Se é verdade que “a suprema natureza do Universo é uma energia de amor” (David Bohm, físico atômico), então é no terreno do amor que a diferença sexual encontra o seu verdadeiro sentido. É o poder de atração que constitui o sentido último da sexualidade humana.
        
“Tudo o que de significativo fiz na minha vida, foi feito sob o olhar de uma mulher”! Com esta afirmação Teilhard de Chardin deve ter escandalizado um bocado de “monsenhores da Cúria Romana e de monges ginófobos”, acostumados a fazer tudo “longe dos olhares indiscretos de uma mulher”.
        
Uma equipe de futebol joga sempre muito melhor quando pode contar com o aplauso entusiástico de belas mulheres! O estímulo que uma mulher bela e amorosa pode oferecer a um homem, e vice-versa, constitui a razão primordial da vida conjugal. O celibato não dispensa ninguém desta “necessidade” psicológica.
        
Homem que não sabe reconhecer-se a si mesmo no “rosto” e no olhar de uma mulher, acaba sendo mais “narcisista” do que casto!
        
Deus dividiu a humanidade em homens e mulheres para que ela tivesse oportunidade de se encontrar consigo mesma e de aprender a dialogar e a respeitar não só os que são diferentes de nós, mas também os que representam o lado oposto.

Padre Marcos Bach


O TEMPO PESSOAL

“Luar na cabeça: sinal de que já é noite no coração”. Qual a ação do tempo sobre a união conjugal? Não está o amor acima da ação deletéria e corrosiva dos anos? O que resta do amor na velhice? Uma bela amizade, talvez, mas indiferente ao sexo? Onde a felicidade se refugia na recordação saudosa do passado? O tempo, que amadurece a espiga e decompõe o cadáver, que tem ele a ver com o destino de um casal apaixonado? Com que comparar a ação do tempo: com o poder corrosivo do ácido, ou com a ação silenciosa do sol, que faz sazonar a fruta? “El sentido de la vida se pierde quando el tiempo personal se degrada y se aproxima, em sua estructura, al tiempo biológico” (Lopez Ibor, El Libro de la Sexualidad, p. 27).

Tempo não é um conceito unívoco: de um só sentido. O oposto do tempo pessoal é o tempo físico e/ou biológico. O que comumente entendemos por tempo, quando a ele nos referimos, é o tempo físico ou biológico. Aquele que o relógio marca e corta em porções fixas. Aquele que o cronômetro registra com precisão. É o Chronos dos antigos gregos. O tempo mensurável. Raras vezes alguém se refere ao tempo pessoal e/ou psicológico e/ou moral quando emprega a palavra tempo. Aqui o termo tempo é tomado em sentido puramente pessoal.

O tempo físico é contínuo, retilíneo, uniforme e igual para todos. Até o animal possui uma vaga noção do tempo físico-biológico. No outono emigram as cegonhas; na primavera retornam e se acasalam. No homem este relógio natural já não funciona mais, por desnecessário.

O tempo humano é de outra ordem, essencial e qualitativamente superior. A evolução não se dá no tempo, mas atinge a sua própria estrutura, modificando-a, aprimorando-a. O tempo se adensa no homem até atingir o limite máximo de aproximação de outra dimensão da mesma realidade, a que o tempo pertence: a eternidade. É totalmente absurdo falar em tempo humano sem referência à eternidade.

Na concepção física do tempo os momentos se sucedem como as contas de um rosário. Para o homem o tempo físico é tempo morto e sem vida. Mesmo o tempo puramente biológico se escoa nos subterrâneos da subconsciência.

Hoje se levanta, com certa insistência, o problema da velhice, isto é, o desgaste biológico devido ao processo de envelhecimento. É possível prolongar a vida humana para além da idade fatal? Com que tipo de meios: químicos ou, quem sabe, psicológicos? Talvez se torne um dia possível dar-se a si próprio o tempo de vida que se quiser? Que vantagem poderia derivar daí? Sei que é um jeito de provocar sorrisos afirmar que as pessoas morrem quando querem.

Uns preferem a morte à vida, porque esta carece de qualquer sentido. Outros a preferem porque atingiram um grau de plenitude humana a que o tempo não consegue mais oferecer condições de progresso. O tempo pessoal está ligado ao progresso e mede-se por ele. É bem certo afirmar que cada ser humano (adulto) se dá o tempo de vida que quer.

Padre Marcos Bach


O AMOR É LIVRE

A quase totalidade das tarefas essenciais destinadas a manter a vida o Criador confiou a suas criaturas. “Terceirizou” o processo procriativo de tal forma que sua interferência nele parece não ser mais necessária. Só não terceirizou seu amor. Reservou-se o direito de dar e de receber amor. O amor dos homens é a única dádiva com que cada um de nós pode acrescentar algo de substancialmente novo e original à pleníssima felicidade de Deus.

A ideia de que o amor de Deus se resume em dar e que, por não lhe faltar nada, necessidade alguma tem de receber algo, revela que nosso conceito de amor é pobre demais para ser projetado em Deus. Um presente ou dádiva que corresponde a uma necessidade minha não é recebido com a mesma satisfação que um presente de que não preciso. O fato de alguém precisar de Deus não glorifica a mente de um dos dois, nem ao que dá nem ao que recebe.

O amor engrandece a quem o dá na medida em que vier a se tornar gratuito. Torna-se puro na medida em que deixar de fazer parte tanto de uma necessidade quanto de uma obrigação. Condicionar o amor conjugal à satisfação de uma necessidade fisiológica não o fortalece, mas antes o empobrece mais do que se pode pensar.

O amor só será autêntico se for livre. Não exige esta liberdade, mas a cria e gera. A medida da liberdade de uma pessoa é sua capacidade de amar.

Padre Marcos Bach


PRIORIDADES NO AMOR CONJUGAL

Toda vez que o homem entra como elemento funcional seja do que for, sua realização sexual está comprometida. Onde o homem é objeto de uso não há lugar para a sexualidade. A inseminação artificial é suficiente para assegurar os objetivos biológicos essenciais. 

O passo seguinte bem pode ser a proibição do casamento, já que as suas exigências facilmente se dão mal com as do desenvolvimento econômico a qualquer preço. A brutalidade, que caracteriza o pensamento econômico, é o extremo oposto de tudo o que constitui a beleza do casamento: uma beleza frágil e delicada como a do amor. Já faz tanto tempo que o romantismo foi banido da atividade econômica por impróprio, que ninguém sabe como e quando teve início este divórcio escandaloso entre atividade econômica e a presença do amor. 

Sendo o homem uma unidade psicossomática, torna-se impossível compartimentar o seu espaço pessoal. Se este não fosse tão pobre e de proporções tão medíocres, o dinheiro não iria exercer o fascínio que costuma exercer sobre a ambição do jovem. Ou será que a juventude já se deu conta de que é no campo econômico que se deve dar o início da mudança pessoal de mentalidade, sem a qual não haverá nem poderá haver liberdade sexual genuína? 

Enquanto o fator econômico estiver dominando o panorama social de maneira tão absoluta e absorvente como está acontecendo, a vida sexual continuará a ser a grande prejudicada. Que analogia e que parecença com um lar pode ter uma moradia mobiliada primariamente de acordo com a situação social e econômica do casal? Como sugerir a um casal, vendido a uma imagem social, criada e mantida a duras penas e com sacrifício, que num lar só tem direito de entrar aquilo que o amor está a postular?! É por isso que o lar há muito tempo, cedeu os seus direitos às modernas “máquinas de morar”. 

O divórcio entre os que projetam o crescimento de nossas cidades e os movimentos de humanização do ambiente urbano é total. A degradação do ambiente natural é um fenômeno que entra pelos olhos. Existe ainda alguém que se preocupe com a urgente necessidade de recriar recantos de espaço nobre para o intercâmbio amoroso dos casais? Ou será o namoro tão vulgar e grosseiro, que qualquer lugar ou ambiente é bom? Será que o acompanhamento estético não é requisito essencial?

Padre Marcos Bach


PERDOAR É AMAR

Perdoar é um ato de amor. Não é um ato de poder, o exercício de um direito. Quem se julga no direito de perdoar ou não, esqueceu o essencial da lição: isto é, quem precisa perdoar por primeiro é aquele que cometeu a falta.

Perdoar a si próprio. É mais fácil aceitar o perdão de outrem do que perdoar-se a si mesmo! É sinal de amor ir ao encontro do outro para lhe facilitar o autoperdão, em lugar de tomar ares de anjo magoado. De que serve berrar os seus direitos e desfiar os seus queixumes nos ouvidos cansados do outro? Perdoar é assumir o pecado do outro, que também é seu, em lugar de repetir até à náusea o gesto de Pilatos. O outro agiu mal. É este o seu pecado. Mas eu me omiti. Por não ter nada feito sinto-me inocente. Ou então: para ferretear ainda mais a consciência do outro, me encapsulei numa fidelidade orgulhosa feroz. Não deixei um “rabinho” por onde me pudessem agarrar. Estou na mais invejável das situações: tenho todas as cartas na mão! A parada é minha: estou com todos os trunfos! Que venha o cafajeste ou que venha a sem-vergonha e verá que comigo não se brinca! Vou arrasá-lo(a) antes de lhe conceder novamente os meus favores! Aqui já não nos defrontamos com o sofrimento de um amor ferido, mas com os rompantes de um orgulho feroz. Não há lugar para o perdão.

A única condição para o perdão a que Cristo se refere é o arrependimento (Lc 17,3-4). Não há necessidade de pedir perdão. Basta reconhecer o pecado, a injustiça, a maldade da ação cometida. Não se pode obrigar alguém a pedir perdão, como não se pode condicioná-lo a tal gesto sem ferir em sua estrutura a dinâmica da reconciliação.

O nosso perdão permanece contínua e antecipadamente disponível a quem dele necessita. Isso não o torna automático. Mas dá-lhe a discreta dignidade dos gestos autenticamente humanos. Perdoar, neste sentido, significa colocar-se acima do mal. É amar a todo ser humano em cada pessoa. É a capacidade de não fechar nunca a via de acesso ao que no íntimo do irmão há de melhor. É ser capaz de chegar a ele através do seu pecado. Na hora do perdão são duas consciências que se reconciliam; dois corações feridos que se reencontram para além do ódio e da indiferença, da injustiça e do desprezo. Perdoar é reconciliar-se. Reconciliar-se é reatar os laços da solidariedade humana.

         Perdoar é tudo isso, e muito mais ainda.
In: "Evolução do Amor Conjugal" - Livro - Pe.JMBach - INEF/Vozes.


A SOBREVIVÊNCIA DO CASAMENTO

Um casamento só sobrevive se houver imaginação. Nunca a imaginação foi tão necessária como em nossa época de transição cultural. É preciso reimaginar constantemente o cônjuge e o relacionamento com ele. Aos quarenta anos nem ele nem nós somos mais a mesma pessoa que aos vinte. Nossas necessidades modificaram-se radicalmente. O romantismo epidérmico cedeu lugar à exaltação mística. A paixão se alimenta de adjetivos. A comunhão mística reclama substantivos. Ou, então, descambamos para um realismo pragmático em que a carreira profissional e suas exigências dominam o panorama de ponta a ponta, tomando conta então da parcela mais preciosa do tempo-espaço conjugal. O casamento nestas condições não passa de acidente. Uns poucos adjetivos banais bastam para manter-lhe as aparências. A fidelidade já não existe mais. Um adultério a mais ou a menos não vai modificar substancialmente a qualidade do relacionamento conjugal. O perdão neste caso perde todo o sentido, a não ser que tenha sido dado de antemão. Perdão mesmo, e não resignação, nem condescendência. Nada pior numa situação destas do que a resignação. O perdão brota da fé. A resignação é filha da desesperança. Todo casamento como todo e qualquer relacionamento interpessoal começa com um ato de fé. Um ato de abandono total de si para reencontrar-se no outro. Um ato de desprendimento total e não de posse. Tantos casamentos vão mal porque são pensados e concretizados em regime de propriedade. A confiança substitui a fé. Mas a confiança nestes casos é uma ilusão. Por isso prepara o caminho para a desilusão ingênua. A crença de que o outro é incapaz de uma traição repousa sobre um pressuposto falso. Julgar o outro incapaz de um deslize conjugal é duvidar da sua liberdade. É tê-lo na conta de robô, de “Santo”.


Crer no outro envolve o perdão antecipado de todas as faltas. A fé inclui, desde o primeiro momento, a fraqueza do outro. É a fraqueza que torna o ato de fé autêntico. Isso vale também para a fé sobrenatural em Deus. É a fraqueza de Deus, a sua aparente impotência perante o poder das trevas que reveste a fé humana de sua identidade específica. Os canalhas e os patifes levam a melhor e descaradamente passam a mão no que há de bom. É inútil invocar contra seus desmandos o poder de Deus. 
In: “Evolução do Amor Conjugal” - Livro de Pe. José Marcos Bach, sj - INEF/Vozes


O CASAMENTO COMO IDEIA MARAVILHOSA

O casamento é uma ideia maravilhosa, cuja concretização, no entanto, raramente ultrapassa os limites da mediocridade. A estupidez, a fraqueza moral e o egoísmo encapuzado esfarrapam a filigrana cromática dos sonhos. Crer é ter a certeza de que o poder do amor é maior e mais forte do que qualquer tipo de fragilidade humana.

Que ele tem a força de transformar uma pessoa em qualquer época da vida. Esta fé, constantemente renovada, não é nem sequer aparentada com a resignação enfermiça, fruto amargo de uma vida estiolada. O que torna a resignação condenável é a ausência total de sentido crítico. Mata na pessoa algo de essencial em qualquer relacionamento amoroso: poder amar através da crítica. Tira à crítica a possibilidade de chegar até o amor. Até a centelha do amor que ainda arde no coração do outro por debaixo das cinzas acumuladas pela agressão mútua. A resignação torna impossível uma reconciliação de verdade. No momento em que cada qual pensa em fazer valer os seus direitos, o amor já foi posto de lado. Só pode haver ainda lugar para o confronto áspero e seco, formal e frio. Na proporção em que este cede lugar à demanda, o casamento evolui em sentido contrário ao que se pretende: a reconciliação se torna cada vez mais impossível.

Para muitos a reconciliação é um ato pelo qual se passa um traço em todo um capítulo do passado e se começa tudo de novo. Mas se nada há de novo para ser recomeçado? Se nunca houve algo que valha a pena recomeçar? Recomeçar é mil vezes mais difícil do que começar. No relacionamento amoroso a sensibilidade e o sentimento, a ternura e o carinho são de importância decisiva. É algo que não se pode improvisar do dia para a noite. Há casamentos que começaram mal. E não são apenas aqueles que foram acertados na delegacia. O volume do ruído festivo que marca o início social de tantas uniões não é de bom agouro.

O amor é discreto. E um casamento de amor necessariamente será discreto também. O luxo e o amor se dão mal. Festa do coração não necessita de aparato e ostentação. Muito ao contrário.

In: “Evolução do Amor Conjugal” livro de Marcos Bach,sj – INEF/Vozes.


PERDÃO MÚTUO

“Se o meu irmão pecar contra mim: quantas vezes lhe hei de perdoar?”. Sempre? Com facilidade? Se lhe perdoar sempre, o perdão não vai virar rotina? Se lhe perdoar facilmente não servirá este gesto para estimular novas ofensas? Deverá ser este perdão incondicional? Ou deve estar condicionado ao esforço sincero de melhorar? O perdão incondicional não exclui o arrependimento do culposo. Ao contrário, o supõe, pois não pode haver perdão sem arrependimento.

Toda vez que voltamos a nos referir a uma falta passada, já perdoada, provamos que o nosso perdão não foi total e incondicional. Não voltar nunca mais a mencionar uma falta é sinal de perdão incondicional.

Perdoar não é desculpar. Não tiramos a culpa ou a diminuímos no outro. Isto é, não desculpamos o outro. Perdoar é remover a falta do outro de nossa consciência, onde ela se tinha aninhado, refletindo-se negativamente, formando uma barreira na estrada dos corações. A culpa do outro se levanta como um obstáculo entre mim e ele, turvando a limpidez de meus sentimentos para com ele. Estes perdem a espontaneidade e a liberdade de expressão. Quanto mais amada for a pessoa, tanto mais consegue atingir a nossa sensibilidade. Ninguém é capaz de nos ferir mais profundamente do que o ser que mais amamos. O amor nos torna vulneráveis ao extremo. O desejo de fazer com que o outro sinta o quanto nos magoou, leva-nos a adotar atitudes extremadas, por vezes até ridículas e infantis, dificultando desta forma o perdão. O desejo de vingar-se tem o mesmo fito, o de fazer ver ao outro que nos magoou seriamente. A incapacidade de interpretar corretamente os gestos de reação do ofendido dificulta muito o perdão. A falta de um dos cônjuges pode ser aproveitada pelo outro como pretexto para justificar suas próprias atitudes falhas. Onde isso ocorre, as coisas estão indo de mal a pior.

Para um bom casamento o perdão é indispensável. “Impõe-se a necessidade do perdão, que é a força do amor capaz de conviver com as contradições e superá-las de dentro”, diz muito bem Leonardo Boff (A Fé na Periferia do Mundo, Vozes, 1978, p.31). Onde este virou rotina, o amor já não existe mais, o seu lugar foi tomado pela indiferença. A indiferença é uma carapuça psicológica para se defender das agressões de outros.

Perdoar não é esquecer. Há faltas que não se esquecem tão facilmente. Em lugar de procurar inutilmente esquecê-las, melhor seria transformá-las em lembrança tranquila e estimulante, positiva e confortadora. Isso só o perdão e o reconhecimento humilde e sincero da falta podem realizar. A indiferença não é que apaga a falta nem liquida a culpa, mas o amor, e só ele é capaz de fazê-lo.
In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach, sj – INEF/Vozes.


FIDELIDADE CONJUGAL
           
A maior ameaça ao casamento não é o divórcio, mas a infidelidade, à qual a indissolubilidade é subordinada. O Código do Direito Canônico autoriza a separação de corpos no caso de infidelidade. O que é a separação de corpos senão o início da dissolução do vínculo conjugal? Se a infidelidade justifica medida tão radical é porque a fidelidade se encontra no topo dos valores que fazem do matrimônio a agência privilegiada do encontro com o Outro (no outro).

Pode-se conceber a fidelidade de maneira estático-exclusivista. Nesta perspectiva é lícito considerar fiel o homem que se contenta com uma só mulher. É o sucedâneo da fidelidade zoológica, que liga machos e fêmeas em algumas espécies.

O simples fato externo de excluir do convívio sexual todas as mulheres menos uma, não pode ser definido ainda como fidelidade. Mas é assim que a entendem quase todos os casados e não-casados.

A exclusão por si só ainda não configura uma situação de fidelidade. Em sentido próprio ela é muito mais do que isso. É uma atitude interna de adesão definitiva a uma pessoa, cuja realização passa a ser tão importante para nós quanto a nossa própria. Pode-se definir como fiel uma esposa que só vive para o marido, mas cujo mundo interior nada tem em comum com o dele? Que cumpre seu papel, dando de si para além dos limites do estrito dever? Não basta!

O conceito dinâmico de fidelidade inclui algo a mais que é o crescimento sexual da personalidade, isto é, o aumento contínuo da capacidade de amar e de traduzi-lo em gestos.

Os gestos de comunhão sexual são basicamente os mesmos de que o devasso e o libertino se servem para satisfazer seu egoísmo.

Estes gestos são limitados na forma. A pobreza de formas não se contrapõe, no entanto, à multiplicidade e riqueza de sentidos, que podem adquirir. A forma, por pobre e limitada, não limita o campo da linguagem, o poder do símbolo. O significado não se prende à forma, nem está subordinado a ela, mas a transcende infinitamente.

Quem dá finalidade a uma ação humana é a pessoa que a realiza. Isso também se aplica ao relacionamento conjugal. Com isso fica excluída como imprópria à categoria finalística quando se analisa a estrutura do ato sexual no plano objetivo. Se a procriação fosse a finalidade natural primeira do matrimônio, duas conclusões se imporiam:
- Cada ato conjugal deveria ser ao menos intencionalmente fecundo.
- Fora do casamento esta obrigação, ou não existiria, ou então continuaria a existir. Duas hipóteses igualmente inaceitáveis.

É um erro tratar o matrimônio como abstração. O que de fato existe são pessoas casadas, são vidas a-dois, tentativas de comunhão humana, esforços sempre renovados.

Em lugar de perspectiva teórica, o peso deveria recair sobre o enfoque existencial. É um exagero atribuir a cada ato conjugal ou sexual isolado a mesma importância que à vida conjugal tomada como todo. A fidelidade não se prende ao ato isolado, mas à existência conjugal toda. Por isso a infidelidade conjugal também não se prende a um ato isolado.

Fora do contexto da fidelidade existencial os atos pouco significado têm como manifestação de fidelidade ou de infidelidade. Os gestos esparsos sempre ficam aquém da intencionalidade fundamental. O gesto isolado não tem a capacidade de esgotar ou de trair a totalidade de um devotamento existencial. Adultério não é apenas o contato genital extraconjugal.
In: “Evolução do Amor Conjugal” Livro de Pe. José Marcos Bach, sj – INEF/Vozes.


A ESTABILIDADE CONJUGAL SOB UMA NOVA ÓTICA

Os fatos dão a impressão de que a família e a vida conjugal já não oferecem os mesmos padrões de estabilidade de outros tempos. Trata-se de uma impressão enganosa. 

Hoje é mais fácil pôr fim a uma situação matrimonial minada pela mentira. Por isso hoje aparece à luz do sol o que em tempos idos se ocultava no silêncio da resignação. 

Naqueles tempos, as pessoas acreditavam no valor da resignação cristã. Hoje são poucos os que ainda dão fé a tal tipo de apelo virtuoso. A resignação só tem lugar na sombra dos espaços que o amor já não ilumina mais. 

A mulher resignada, sofredora contumaz, que não tem a audácia de se opor à tirania do marido, seguramente não tem razões para se vangloriar de virtuosa, ao menos por esta razão. 

Não se nota um declínio de estabilidade conjugal, mas a mulher de hoje não é mais a Amélia de ontem. Ou a Heloísa do século XII. Tomou consciência de que a sua submissão resignada só serviu para exacerbar o machismo do companheiro. Que suas virtudes cristãs e seus predicados morais pouca ou nenhuma influência tinham sobre a vida moral do companheiro. Que seu recato só serviu para justificar as aventuras extraconjugais do marido.

A atual maré de dissolução conjugal, como a denominam os donos da verdade, apresenta muito mais aspectos positivos do que negativos. A famosa estabilidade conjugal de outrora, às mais das vezes, não passava de mentira, cimentada com as lágrimas silenciosas de uma mulher sacrificada no altar da virtude. Para a grande maioria dos homens a Amélia é que lhes convém. Não pretendem trocá-la por outro tipo, seja no lar, seja no apartamento da amante.

A estabilidade é imprescindível para o desenvolvimento da vida conjugal. Não é a estabilidade a qualquer preço, imposta de cima. Mas a estabilidade interior construída com esforço, sacrifício e renúncia, é verdade, porém, que encontra sua maior força na ternura de um amor total. Uma estabilidade que brota dentro da alma e, antes de ser estabilidade, é harmonia interior, paz de espírito; compreensão plena do(a) companheiro(a) de jornada.


Aos poucos a estabilidade conjugal deixa de ser um imperativo ético, para se transformar em decisão pessoal. A autêntica estabilidade conjugal é como a indissolubilidade: resultado lógico e consequente de um voo conjugal a grandes alturas
In: “Evolução do Amor Conjugal”- Livro de J.M.Bach


DIREITO AO CASAMENTO NATURAL

“Não podemos considerar automaticamente como sacramental uma união entre duas pessoas batizadas”, diz Leo M. Crogham na revista América no.7 (1968). “A união sacramental deveria ficar reservada àqueles católicos e cristãos, que desejam verdadeiramente e pretendem uma união em Cristo. Só estes deveriam estar sujeitos a um julgamento mais estrito” (por parte dos tribunais eclesiásticos). O que aqui é posto na berlinda não é somente o automatismo sacramental, mas a própria noção de sacramento. 

Segundo a doutrina antiga da Igreja (Alexandre III, Leão XIII), o matrimônio não-cristão também possui caráter sacramental. Uma sacramentalidade natural derivada de sua origem divina, claramente afirmada na Bíblia (Gênesis). Esta sacramentalidade de cunho pré-cristão é apanágio de todo e qualquer matrimônio genuíno. É algo que de direito pertence ao casal e do qual nenhuma instituição, seja qual for, pode dispor a seu bel-prazer. Um cristão não perde nenhum dos direitos que são próprios de sua condição de criatura. Uma ordem jurídica cristã não pode apoiar-se no arbítrio e no autoritarismo. Não pode sacrificar direitos pessoais em benefício de interesses ligados tão-somente à instituição.

É por esta razão que no mundo teológico vão se levantando vozes condenando como desumana a rigidez com que a Igreja católica se comporta frente à realidade matrimonial, ao concentrar sua preocupação em torno de dispositivos de preservação, esquecendo na prática (e na teoria também) as medidas de promoção. Mais indicado e muito melhor seria pensar mais nos casais e menos no matrimônio. Que resta do sacramento quando a vida conjugal nada mais é do que uma corrida pelo prazer e contra o tédio? Segundo a doutrina tradicional um casamento se torna absolutamente indissolúvel quando é sacramento cristão. Mesmo neste caso só depois de consumado.  Por que a Igreja aplica o princípio da rigidez com tanta obstinação num terreno onde a prudência aconselha um máximo de maleabilidade?

Se um cristão continua tendo o direito de casar-se como todos os não-cristãos se casam, por que obrigá-lo a assumir logo de início a carga pesada de responsabilidades que decorrem da plenitude sacramental do matrimônio cristão? Por que não lhe conceder um espaço de tempo inaugural? Casaria (perante a Comunidade Cristã, mas ainda não em Cristo) segundo o direito natural. Seu casamento seria legítimo, mas não indissolúvel “ab intrínseco”, ficando a Igreja com o direito e a liberdade de dissolver o vínculo caso o desastre conjugal se tornasse irremediável. A vida conjugal teria a bênção do Criador, bem como da Comunidade Cristã; e a atividade sexual estaria sob o abrigo da lei natural. O casal teria tempo de amadurecer na fé e no amor. Teria tempo para se conhecer de perto, na intimidade. Tempo para se preparar para o dia em que resolvessem dar o passo definitivo, a recepção da plenitude sacramental do matrimônio cristão. Fariam uma opção nova, desta vez irreversível e definitiva. Seriam incorporados ao sacerdócio testemunhal da Igreja, com a missão de testemunhar perante o mundo a presença viva do amor divino, na transparência sacramental de seu amor conjugal. Um ato solene, comparável à ordenação de um sacerdote ou à profissão solene de um religioso. Creio que se as coisas fossem pensadas e conduzidas nestes termos, a Igreja ganharia muitíssimo em credibilidade. Uma instituição que se preza não pode tratar assunto de importância tão fundamental, como é o casamento, com leviandade e falta de seriedade.

Não é muito frequente alguém associar o amor ao poder da imaginação. Mas é o que Charles Morgan faz na obra já citada (Globo, 1959). Enquanto a fantasia nos conduz à aparência das coisas pelo caminho da ilusão, a imaginação, mais que a inteligência, tem o poder de nos conduzir até à realidade, vencendo a barreira das aparências. Imaginar é ver pessoas e coisas como realmente são.

Amar é, segundo Morgan, re-imaginar diariamente a pessoa amada. Esta atitude é necessária, pois a pessoa amada (precisamente por ser amada) permanece com a liberdade plena de ser ela e de construir para si uma personalidade segundo o seu gosto. Só a imaginação nos dá a possibilidade de nos situar adequadamente em seu mundo interior. A criatividade da imaginação nos proporciona de contínuo perspectivas novas e novos meios de comunhão. Só a sensibilidade infinita de uma ternura sem fim nos dá a coragem e a audácia de confiarmos o futuro do nosso amor às asas lépidas da imaginação e da liberdade em lugar de assegurá-lo por outras vias. Esta genialidade do amor é bem rara, mas existe. A imaginação não nos fornece conceitos e teorias. Desperta em nós a capacidade de percebermos o significado simbólico das coisas e das pessoas. O símbolo fala enquanto cala. Seu silêncio é tão eloquente porque nos dá acesso à realidade, para além das figuras, das sombras e aparências, onde a lógica pretende estacionar o nosso pensamento. Sem a penetração poderosa da imaginação não pode haver acesso à compreensão simbólica do matrimônio, onde o grande mistério de Deus se funde com o pequeno, porém maravilhoso mistério da comunhão sexual humana.
In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach, sj. – INEF/Vozes.


UMA PEREGRINAÇÃO A-DOIS

Visto sob o ângulo existencial, o casamento pode ser muito bem definido como caminhar a-dois. Uma peregrinação a-dois pela Terra dos homens. Quem fala em peregrinação não pensa em turismo ou excursão. É bem o oposto que lhe ocorre à mente. Também não pensa em romaria ou procissão, parada ou desfile. Peregrino é alguém que escolheu em definitivo o mundo como pátria. E por isso sente-se e é tratado como estranho em qualquer lugar do mundo. Só se sente em casa onde encontra pessoas imbuídas do mesmo espírito. Dá preferência à companhia e às pessoas, em lugar de se prender a coisas e lugares. Qualquer lugar é bom, diria, desde que nele se encontre ao menos uma pessoa maravilhosa.

Creio que nenhuma religião sublinha e ressalta tanto o caráter peregrino da condição humana quanto o cristianismo. O que define a condição peregrina do homem é a primazia que dá às pessoas em oposição a tudo o mais. O espaço e o tempo físicos já não são a sua pátria, seu habitat humano, mas o espaço-tempo pessoal. Visto sob este prisma, o casamento é antes um gesto de desinstalação definitiva do que outra coisa. É um pôr-se a caminho na companhia maravilhosamente estimulante de alguém que nos cativou em definitivo e que nos arrebata consigo para os caminhos da aventura. Há um roteiro, mas não existem estradas. Não há nada pronto e feito. Tudo deve ser construído a-dois. Casar significa, nesta perspectiva, começar tudo de novo, mas a-dois. Seu início muito se parece com o nascimento.

Aonde são conduzidos os passos do casal peregrino? Não a um outro mundo, mas a uma plenitude. A um momento (que não é instante) onde tudo o que foi vivenciado, saboreado e construído ao longo da jornada se torna simultânea e definitivamente presente. É o amor, que une e fascina o casal, a fonte reveladora do termo final da jornada conjugal. O amor tem o poder de dar sempre menos do que promete. Isto é, de prometer sempre mais do que dá. Isso o dota de uma força de empuxo extraordinariamente poderosa. É próprio do amor abrir espaços sempre mais amplos para a realização do encontro de pessoas. À medida que o casal avança, o termo final de sua esperança se aproxima e aumenta o seu poder de sedução.

Numa caminhada a-dois o ritmo é coisa muito importante. Caminhar no mesmo passo, lado a lado, sob o impulso do mesmo ritmo interior, é algo de que depende simplesmente o êxito da jornada. Tanto isso é verdade que se pode atribuir ao fenômeno da “disritmia conjugal” uma boa parte dos colapsos matrimoniais.

Importante ainda é a companhia. Não a presença de expectadores, de “policiais de trânsito”, etc. Mas a presença de companheiros de jornada. Outros casais metidos na mesma aventura. Sua companhia é essencial, muito mais importante que a de algum Diretor Espiritual ou coisa parecida. Em Cristo, Deus se fez peregrino também. Caminha ao nosso lado no mesmo passo que nós, visível e real, na companhia de nossos irmãos de jornada. Quantas mãos se poderiam juntar e unir, transformando a solidão opressiva de cada casal em jubilosa comunhão de jornada espiritual!
In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach, sj


O CASAMENTO COMO IDEIA

Talvez seja mais apropriado definir o casamento como o definiu Charles Morgan em O Quarto Vazio (Globo, 1959): uma ideia. Uma Ideia.

Um desses pensamentos maravilhosos que explodem na mente, ou nela se acendem lentamente, e que, uma vez nascidos, se negam obstinadamente a morrer.

Um desses lindos pensamentos com perfume de flor, que iluminam com sua luz nossa vida de um extremo ao outro, dando-lhe um sentido e um significado, que antes não possuía.

Um desses pensamentos únicos, geniais e originais, que só nos avassalam com o seu fascínio em muito poucos e privilegiadíssimos momentos da vida.

Por que não definir o casamento como ideia nascida do amor e inspirada por ele?

Um dia um jovem casal de namorados descobriu que só a eternidade é capaz de oferecer espaço adequado à sua união amorosa.

Ocorreu-lhes então a ideia de eternizar o seu amor, de transferir-se do tempo para a eternidade; veio-lhes a ideia de não permitir que o tempo (físico) minasse por baixo a pureza de seus sentimentos.

Da ideia passaram à decisão. Da decisão para a ação. Elaboraram com amoroso esmero um projeto de vida a dois.

Descobriram, com a lucidez, que só o amor confere à razão que nada de verdadeiramente grande e digno do homem pode ser feito sem amor.

Que onde homem e mulher não se unem, fundindo suas essências numa só, apenas há lugar para a estagnação e a morte.

O amor os atingiu no âmago de suas consciências. Fizeram, no mais íntimo do seu ser, uma descoberta metafísica: a alma do Universo é formada e alimentada, desenvolvida e levada à sua plenitude final pela síntese do masculino com o feminino! Uniram as suas consciências e passaram a orientar-se de acordo com o princípio da fecundidade Universal.

Chegaram à conclusão de que esta é a fecundidade própria da união sexual humana, da qual a procriação é apenas um aspecto de segunda ordem.

Toda a fecundidade humana é de natureza espiritual, cósmica e social. A procriação pode-se alcançar sem a participação pessoal do casal humano (bebê de proveta). Mas no plano espiritual não existe a mínima chance para qualquer tipo de “inseminação (ou fecundação) artificial”. Através desse tipo de raciocínio, nosso hipotético e imaginário casal de noivos atingiu a essência do matrimônio. Não é mesmo?


In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach, sj – INEF/Vozes.


CONTRATO OU PACTO DE AMOR?

Se o casamento não é contrato, o que é então? Ora, um compromisso pessoal. Um pacto de amor. Uma aliança. E qual a diferença entre um contrato e um compromisso? Um contrato gira em torno de coisas, de objetos, de prestações de serviços. O respeito à reciprocidade de deveres e direitos é condição essencial. Um compromisso é de natureza pessoal, gira em torno de pessoas.

O casamento, quando contrato, tem como objeto primário o ato sexual e indiretamente tudo o que se relaciona com ele. O casamento-compromisso tem como objeto primeiro a realização da pessoa amada. O contrato se concretiza no plano existencial, na prestação de “débito conjugal”. É assim que o Direito Canônico define o ato de amor.

Quando existe mentalidade de compromisso, intenção de fazer do casamento uma aliança pessoal e um pacto de amor, o ato conjugal perde seu caráter de prestação obrigatória de um dever contratual. Nesta perspectiva, e só nela, o ato conjugal assume a sua verdadeira identidade de ato gratuito de amor. Demonstração de amor, e, nunca, sob hipótese alguma, prestação obrigatória de um serviço, previsto e definido em contrato.

 A concepção contratual peca em três frentes: no plano pessoal, onde deixa de lado todos os elementos pessoais, de cunho biográfico; no plano moral, onde reduz a faixa da criatividade pessoal; no plano do espaço da liberdade e no papel da consciência. Há muita pouca coisa sem maior importância. O sistema moral, subsidiário dessa concepção, ocupa-se mais com os aspectos formais da relação conjugal do que com a sua qualidade. Qualifica o bem (família numerosa = sinal de generosidade!), liga pouca importância aos aspectos intencionais, conscientes e/ou subconscientes da relação conjugal. Não temos o direito de definir mal e inadequadamente as coisas só porque foram definidas assim durante mil anos, ou mais. Uma má definição não se corrige, substitui-se por outra. Isso, porém, se torna praticamente impossível quando transferimos para ela a rigidez dogmática das coisas decididamente definidas. Sob o aspecto religioso há a reparar que a natureza sacramental do matrimônio se dá mal com a concepção contratualista.
In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach,SJ – Vozes/INEF.


DESAFIO DO PENSAMENTO EVOLUTIVO

O reflexo do pensamento evolutivo sobre a maneira mais inteligente e mais humana de organizar a vida sexual constitui um dos grandes desafios morais à espera de resposta por parte do homem.

O pensamento estático-fixista considera os opostos (o bem e o mal, por exemplo) realidades que se excluem radicalmente. Ou uma ação é boa ou é má. Não admite meio-termo. O pensamento evolutivo é, ao contrário, dialético. Não pensa os opostos em termos radicalmente irreconciliáveis. Prefere encarar o comportamento como sendo sempre simultaneamente bom e mau. Não acredita na perfeição, nem como fato, nem como ideal. Não crê no bem absoluto. Nem no mal absoluto. A história dos homens é feita, segundo a sua opinião, de gestos e feitos de difícil qualificação moral. O bem e o mal que os homens praticam, fazem parte da mesma história, a História da Salvação. Convergem para o mesmo objetivo. Por isso o pensamento evolutivo favoreceu um certo “ecumenismo” ético e teológico, num sentido frontalmente contrário ao pensamento integrista oficial da Igreja católica no início deste século e fins do século passado.

No terreno sexual o pensamento evolutivo conduz à rejeição da concepção dualista, que lhe é completamente estranha e, inaceitável, em virtude do seu radicalismo maniqueísta. É evidente que tudo vai se apresentar à compreensão do homem de maneira muitíssimo diferente, conforme o ângulo e a perspectiva em que se coloca. As instituições (e seus representantes) costumam definir-se a si e a seu campo de interesses a partir de uma perspectiva que terminam por absolutizar. Qualquer mudança, em nível institucional, será sempre um pequeno milagre de coragem. Os indivíduos possuem, sob este aspecto, uma liberdade de movimentos muito maior

A Igreja católica, bem ao contrário dos regimes autocráticos e totalitários, permite a seus membros uma liberdade de pensamento verdadeiramente invejável. Pena é que tão poucos pensadores se disponham a ocupar criativa e ousadamente este espaço reservado à liberdade de pensamento.
In: “Evolução do Amor Conjugal” Livro de Pe. José Marcos Bach, SJ – Vozes/INEF


O ESPAÇO ILIMITADO DO AMOR

Falamos do amor sem saber bem do que estamos falando. Achamos que amar é a coisa mais fácil e natural do mundo. Se assim fosse, haveria menos divórcios e o número de “meninos de rua” seria muito menor. Chamamos de amizade relacionamentos superficiais e passageiros, mais precários do que namoro de adolescente. Esquecêmo-nos de que a “amizade” (Philia, em grego) pertence a uma categoria afetiva de ordem superior. Atribuímos ao amor erótico e à libido um poder de sustentação psicológica que eles na verdade não possuem.

A essência da amizade está no sentimento mútuo de admiração, cujo objeto não é apenas a beleza física, mas, acima de tudo, a beleza da alma. Por ser alicerçada numa forma de beleza que nem o tempo nem a velhice conseguem apagar, a amizade possui uma solidez que nem o mais apaixonado sentimento erótico é capaz de igualar.

Como a base em que o amor-amizade se apoia é de natureza espiritual e se encontra no interior da pessoa, este amor escapa da ação deletéria da entropia. A passagem do tempo não o atinge. Sobrevive muito mais facilmente a crises do que o amor erótico. Isto, no entanto, não significa que pode contar com uma espécie de “seguro automático” contra acidentes.
Todo relacionamento amoroso mais se parece com uma planta viva do que com qualquer outra coisa. Uma planta necessita de nutrientes que lhe permitem realizar as trocas sem as quais não lhe seria possível renovar-se e crescer. Todo organismo vivo começa a envelhecer a partir do momento em que deixa de crescer. Um amor que não cresce está fadado a morrer! Não basta amar, é preciso amar cada vez mais. Mais e melhor!

O espaço que o amor pode ocupar é ilimitado. Pode crescer tanto em intensidade quanto em qualidade. O medo de “amar demais” é totalmente infundado. Tanto sob o aspecto intensivo, quanto extensivo, existe ainda “terra virgem” e inexplorada a perder de vista. A maior parte do nosso inconsciente é um “farwest” de cuja existência só temos noções muito vagas e de cuja riqueza nem sequer suspeitamos. Águas que não se movimentam estagnam e acabam apodrecendo. Assim é o amor: condenado a ser sempre o mesmo, torna-se monótono. Não há provavelmente terreno algum em que a monotonia seja mais funesta do que no terreno do amor. Vivemos mergulhados numa natureza onde tudo vibra, se move e se modifica. A natureza é criativa: basta atentar para o fenômeno da biodiversidade para termos uma ideia de quanto é original e criativo o universo em que vivemos.  – Pe. J. Marcos Bach, SJ.


O CARÁTER INTRINSECAMENTE ESPIRITUAL DA SEXUALIDADE

Entre seres humanos o impulso sexual se manifesta como necessidade psico-fisiológica e como necessidade espiritual. Como desejo de prazer e como desejo de amor! Como ânsia de se realizar e de se encontrar consigo e simultaneamente como ânsia de se perder no amor de um outro!

Este fato confere a toda relação sexual um caráter ambíguo de conquista e de perda. O desejo sexual é violento e impetuoso. Entregar-se a ele é o mesmo que perder por uns instantes o autodomínio e a liberdade. O prazer sexual aproxima a pessoa do animal que ela ainda continua sendo. Por isso o prazer sexual devolve as pessoas a um estágio evolutivo bem mais primitivo do que o estágio que a humanidade atingiu em outras áreas.

Um certo pudor de natureza espiritual levou a humanidade a fazer da atividade sexual uma ocupação tipicamente noturna. Na atividade sexual humana entra em ação um elemento novo que em certa medida se opõe à selvageria do desejo. Este elemento é o amor.

O amor não é inimigo do prazer, mas se destina a humanizá-lo. É o amor que dignifica e humaniza uma relação sexual entre homem e mulher. Perde seu tempo e seu latim o casal que só se preocupa com a qualidade e intensidade do seu prazer. Só o amor mútuo pode devolver a uma relação sexual um prazer digno de seres racionais.

Isolar o prazer do amor é tão insensato quanto isolar o amor do prazer! No convento nos deparamos com pessoas que praticam um amor sem prazer. No mundo da prostituição a regra é o prazer sem amor! No convento é proibido um membro da comunidade se apaixonar por pessoa do outro sexo. Num prostíbulo toda prostituta é proibida de se apaixonar por um dos seus muitos fregueses. Daí dá para concluir que a distância que separa um convento de um prostíbulo é muito pequena. Onde o prazer é proibido o amor também é proibido. E onde o amor é proibido só pode haver espaço para as formas mais selvagens e as manifestações mais primitivas e animalescas do prazer sexual. O grande desafio à espera de solução é o seguinte: como levar um número crescente de pessoas a uma vida que seja ao mesmo tempo extremamente prazerosa e do mais elevado nível psico-moral!?

Artigo de Pe. José Marcos Bach,SJ


DESPERDÍCIO DE ENERGIA ESPIRITUAL

A um cristão não pode ser permitido em nome de Cristo o que a nenhum ser humano é lícito tolerar: o desperdício incrível de energia espiritual menos por excessos do que por omissões, cometidos no campo sexual.

É algo que deveria impressionar muito mais os espíritos lúcidos do que qualquer outro tipo de crise energética.

Os anos de vida conjugal vão passando, sem que o desejo dos sentidos se transforme em paixão e ternura;

Sem que estas se transformem em amor e amizade;

E sem que o amor se desdobre em afeição, serviço, oblação e comunhão.

Quantas vidas apresentam no campo sexual o quadro de uma realidade marcada pelo marasmo, pela imobilidade e fixação em níveis pré-humanos de relacionamento sexual.

São vidas que não se desenrolam, porém, ao contrário, vão se enrolando cada vez mais.

Para a reta compreensão desta tarefa é preciso ter em mente que o espaço sexual humano é o da liberdade.

E esta não se mede a partir do número de possibilidades de posse e escolha, mas a partir do grau de desprendimento e da capacidade de ampliar constantemente o espaço não-possessivo em benefício da dinâmica oblativa.

Sem uma dose bem sacudida de ascese e renúncia não é possível dar, no terreno do relacionamento sexual, nenhum passo significativo para frente.

No momento, porém, em que esta ascese tira do casal o fruto mais belo do seu amor, a alegria de viver, ela deve ser repelida como contrária ao espírito cristão.

A sede de consumo maciço pouco espaço deixa no espírito do homem de hoje para a abstenção e a renúncia.

Despojada de seu significado religioso, a vida se torna em luta sem quartel pelas melhores fatias do bolo econômico e social.

Quando se transforma o campo sexual em área de competição e/ou de exploração hedonista, em lugar de reservá-lo exclusivamente para o lazer e a vivência gratuita e espontânea do amor, o desastre social não passa a ser mais que uma questão de tempo.

Tanto é urgente e necessário opor um dique ao permissivismo liberaloide e suicida, quanto às tentativas dos sistemas totalitários de atrelar a sexualidade ao carro-chefe da produtividade.
                                                            Pe. José Marcos Bach, SJ

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