ÉTICA

VALORES E NORMAS QUE TORNAM ATRAENTE O BEM

A reta ordem moral é determinada por uma soma de valores e por normas destinadas a tornar atraente a prática do bem. O mesmo se pode afirmar da ordem política: deve ser atraente e impor-se por si mesma. Se não for assim, não merece a homenagem da obediência.
           
Há pessoas que passam a vida pensando só em trabalhar. Pertencem a uma espécie que os alemães definem como Arbeitstier, animal laborans, diriam os romanos. Na finada União Soviética eram tidos na conta de heróis, heróis do trabalho, uma espécie de gigantes capazes de carregar em seus ombros o futuro da humanidade.

Esta crença já não encontra atualmente adeptos tão fervorosos quanto no início do século passado. O trabalho perdeu muito do seu valor no conceito ético e social do homem moderno. As pessoas já não se sentem mais realizadas e felizes porque podem trabalhar o dia todo. O mais “crente” otário sabe que existem outras fontes de realização pessoal, além do trabalho braçal. A luta pela sobrevivência material impele muita gente a atribuir ao trabalho um valor que ele na realidade já não possui mais. A automação consiste em substituir trabalhadores humanos por robôs e sistemas cibernéticos. Quando o boi tomou o lugar do homem na tarefa de puxar o arado não houve “sindicato” que lamentasse a “injustiça”.
           
Há formas de trabalho que transcendem o campo das necessidades biológicas e sociais. Tudo o que uma pessoa faz com o objetivo de satisfazer necessidades suas ou alheias deveria ser registrado como subumano, pré-cultural e sub-moral. O homem não é um “animal” que pode contentar-se com fazer o que os outros fazem. Deus o criou livre, com o propósito de introduzir na biosfera um elemento novo, o HOMEM.
           
Homem que não é livre, não é homem. Sua condição essencial faz dele um criador de alternativas. É um ser moral porque possui a faculdade e a necessidade de determinar sua própria natureza, tornando-se cada vez melhor em lugar de contentar-se com ser bom e praticar o bem. Não nasce livre, mas é capaz de tornar-se livre.

A própria liberdade está sujeita à lei do crescimento. Nasce egoísta, fechado em si mesmo, mas é capaz de desabrochar como o botão de rosa, tornando-se capaz de amar como Deus ama. Nasce “animal”, como diria o apóstolo Paulo, mas sua verdadeira natureza não é “animal”, mas espiritual. O que nele há de especificamente humano não é determinado por sua condição animal, e o que fará dele um dia um ser espiritual não representa um acréscimo, mas um salto evolutivo, um novum, semelhante ao que acontece com a larva que se transforma em borboleta.
           
Existem duas modalidades de crescimento. Uma é por adição e a outra é por transformação e metamorfose. É desta última que se ocupa a Moral Cristã. E mais do que ela, a espiritualidade cristã. O descalabro que está atingindo com força crescente as instituições religiosas e as ideologias encarregadas de zelar pelo Bem e pela Verdade, elas o devem ao fato de não terem compreendido a diferença entre crescimento dinâmico e crescimento meramente cumulativo.

No mundo dos negócios não há empresa que não se preocupe com a qualidade dos produtos e serviços que pretende oferecer. O que hoje é bom ou até melhor, amanhã já pode ser rejeitado como obsoleto.

Atualmente não há firma que consiga sobreviver caso vier a se contentar com planejar suas atividades em termos de longo prazo. Longo prazo passou a ser um espaço de tempo muito mais curto. Nove meses, diz uma economista alemã, é o máximo de tempo em que é permitido arriscar previsões. O tempo econômico mundial entrou em fase de aceleração dinâmica. Sobreviverá no futuro não aquele que vende (ou compra) mais, mas aquele que sabe vender e comprar melhor. Mais do que o nariz ou o paladar são os olhos que determinam o que o comprador vai colocar em seu carrinho no supermercado. Qualidade melhor é o que o consumidor, este novo “deus” do mundo dos negócios, está exigindo e impondo ao Mercado Globalizado.

Padre Marcos Bach


DINÂMICA DO AMOR

Para um moralista o amor é uma obrigação. Para um jurista é a lei que determina e delimita o campo do amor! Para um teólogo o amor é um tributo que o homem deve a Deus!

O amor não resulta de um cálculo bem feito. Não é racional, pois não se apoia na lógica de um raciocínio bem feito. Nada mais é em sua essência do que um ato de fé, o mais puro dentre todos.
           
O que dois amigos veem um no outro? Somente o que é digno de admiração. Embora não desconheçam nem neguem o lado defeituoso da pessoa amada, não o tomam em consideração, pois sabem melhor que ninguém o quanto o mal é impotente quando desafiado por um genuíno amor!
           
Um lavrador experiente sabe que a força da praga é a fraqueza da planta! Planta ou animal saudável e robusto não atrai praga! São pessoas egoístas e malamadas que atraem sobre si e sobre a sociedade em que vivem toda sorte de doenças!
           
Num ambiente esquálido como o da periferia das grandes metrópoles não há doença que não consiga triunfar sobre seus inimigos! No Brasil dispomos de 42.000 remédios diferentes para combater o avanço da doença! Será que não é um equívoco apostar no aumento do número de remédios em lugar de apostar mais na sua eficácia? Não é aumentando o número de farmácias e de postos de saúde que vamos reduzir a incidência de moléstias. A doença chama o médico. A saúde não precisa dele. Saudável é a pessoa que é seu próprio médico!
           
A palavra cura é latina e significa cuidado. A saúde é o normal e é indício de que vivemos nossa vida de acordo com os sábios princípios da natureza. A doença só aparece quando existe algo de errado no modo de viver a vida!
           
Podemos errar procurando viver uma vida que não é a nossa! Cometemos um erro desastroso toda vez que nos orientamos mais com base em opiniões alheias do que de acordo com a nossa própria consciência! O amor com que amamos só é autêntico se brota do nosso próprio interior e constitui verdadeiramente um ato de fé!
           
Existe no ato de amor um paradoxo: a nossa fé no amado ou no amigo não é cega e, contudo, é cega, pois não nos permite julgar nosso amigo tomando em consideração os seus defeitos e pecados!
           
“O pecado só existe na mente dos homens”, diz Jesus no Evangelho de Maria Madalena. A natureza desconhece o pecado! Não ver o pecado do amigo é, pois, um ato de justiça. Foi por isso que Jesus disse: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Amigo não julga amigo! “Eu a ninguém julgo” (Jo 8,15). “Não vim para julgar o mundo” (Jo 12,47).
           
O amor de amizade é o máximo que o amor humano pode atingir com seus próprios recursos! Mas não representa tudo o que o homem é capaz de alcançar no terreno do Amor!

Se Deus é Amor, então o amor só pode ser tão infinito quanto o próprio Deus! Se somos imagens de Deus feitos por Ele à sua semelhança, então nossa capacidade de dar e de receber amor deve ser a mesma de Deus. Basicamente a mesma, embora contingente e limitada!
           
O Amor de Deus tem sobre o nosso a capacidade de ir sempre mais longe do que o nosso! Somos prisioneiros do tempo e sujeitos ao lento ritmo do processo evolutivo!
           
Tudo o que existe de semelhante a Deus só amadurece com o correr do tempo e exige da parte do homem muita paciência, muita perseverança e muita fé.
           
O que reduz a nossa capacidade de amar é nossa falta de paciência e de fé! Invejamos a paciência de Deus, mas não a incluímos em nosso catálogo de virtudes!           Aquele que se engana ou se deixa enganar em seus relacionamentos afetivos deve a sua desgraça a si mesmo. O culpado não é o amor nem a ingenuidade de ter depositado no amor uma fé que ele, o amor, não consegue justificar! O amor não engana fazendo-nos ver o que não é ou levando-nos a não ver o que existe na pessoa amada. O amor é lúcido e nada tem a ver com a tremenda confusão que reina no campo dos relacionamentos humanos.
           
A defectibilidade da natureza humana longe de ser uma deficiência, é uma riqueza. Riqueza virtual, pois é o espaço que o Criador reservou à continuação da sua obra criadora!
                       
Existe no interior da pessoa humana uma luz que o ilumina a partir de dentro. Carl Gustav Jung se refere a ela dando-lhe o nome de “luz numênica” em oposição à luz fenomênica a que nossos olhos conseguem captar. Trata-se de uma luz inacessível aos sentidos e à razão, pois não pertence ao nosso mundo tridimensional. Revela-se e se deixa ver tão somente por aqueles que, como Moisés no Monte Horeb, se contentam com contemplar a Terra Prometida!
           
Para descobrir o que é essencial é preciso procurar muito, perguntar muito. A melhor resposta é aquela que enseja uma nova pergunta, melhor que a anterior. É preciso ter fé e ter a coragem de ir muito mais longe do que o permitem a razão e os sentidos!
                       
O amor que Jesus prega, aconselha e pratica é o mesmo do discípulo amado, de Maria Madalena. Se Deus é Amor, o amor só pode ser um só e o mesmo por natureza!
             
Quem ama mais não se torna mais que os outros! Pelo contrário. Quando João Batista se encontrou com Jesus, seu comentário foi lacônico: “É necessário que eu seja diminuído para que Ele cresça” (Jo 3,30).
           
É próprio do amor não produzir sombras capazes de diminuir o brilho de quem quer que seja!
           
Existe uma luz que não deita sombras! É esta a “luz que ilumina a vida dos que creem em Jesus” (Cf. Ef  5,14).

Padre Marcos Bach


ÉTICA NA LIBERDADE

Os monges, que no início da era cristã foram viver no deserto, faziam-no movidos pelo mesmo motivo. Fugiam de uma realidade por demais agitada e que os impedia de encontrar a paz de espírito, sem a qual é impossível encontrar-se consigo mesmo e com Deus. Viviam muitas vezes em cabanas, uns perto dos outros, pois sabiam que a alma de toda vida cristã é a caridade fraterna. Viver de acordo com o princípio da caridade exige uma dose maciça de proximidade e de intimidade.
           
O filósofo francês Jean Paul Sartre fez sucesso com a sua “boutade”, segundo a qual “o inferno é o outro”. Acontece que ele era ateu. Se fosse cristão, vivendo no meio de uma autêntica Comunidade Cristã, teria dito o contrário. Teria repetido o versículo do Salmo 133,1: “Como é bom e agradável irmãos viverem unidos”!
           
A conversão, a que estamos dedicando nossa atenção, conduz à fuga do mundo, daquele mundo com o qual entramos em contato quando assistimos a certos programas de televisão, mas não nos impele a fugir dos homens. Leva-nos a selecionar nossas companhias. O próximo que nos dispomos a amar como a nós mesmos ocupa esta posição privilegiada não por ordem de Deus e ainda menos por razões de ordem política ou pastoral.
           
Cristo escolheu os seus apóstolos. O mesmo direito tem todo cristão: pode escolher dentre os seus irmãos os que pretende amar mais que aos outros. Dentre os gestos humanos o amor é o mais livre e espontâneo de todos. Um amor “bitolado” e forçado a se mover sobre “trilhos” nunca será outra coisa do que um arremedo de amor. Todo o tempo dedicado à tarefa de “bitolar” a vida moral dos seus semelhantes é tempo posto fora. No seio de uma Comunidade Cristã não há lugar para a figura do xerife e do inquisidor. Numa comunidade de pessoas verdadeiramente livres em Cristo o perdão mútuo é muito mais importante do que a repreensão e o policiamento moral (Cf. Col 3,12). Suportar o outro em suas fraquezas e imperfeições é muito mais importante e produtivo do que andar por aí farejando escândalos (Col 3,13).
           
O que torna a prática da caridade cristã tão difícil é que ela exige uma disposição para o perdão e uma paciência que só poucos se dispõem a abraçar. O processo de autolibertação começa no interior da consciência individual e envolve primeiramente o relacionamento da pessoa consigo mesma.

Padre Marcos Bach


O HOMEM NOVO PLASMA A SI MESMO

A autenticidade de uma Comunidade Cristã é determinada por sua sintonia com o Reino de Deus. Ela não necessita de aprovação eclesiástica para justificar sua existência.
           
O teólogo Karl Rahner define o Homem Novo como “plasmador de si próprio”. Plasma-se a si próprio à semelhança do feto no seio da mãe. O útero é apenas o órgão de sustentação e de abastecimento. É o feto que comanda o processo da gravidez. É o útero que deve adaptar-se e não o feto. O mesmo vale da relação de cada membro individual com sua Comunidade de Fé. É ele, à semelhança do feto, que procura onde anidar-se. É ele que estabelece o contato com o corpo da mãe através da formação do cordão umbilical. Seria de todo inviável uma gravidez que se restringisse às condições que o útero pode oferecer. Nem sequer o corpo da mãe é suficiente para conferir à gravidez o seu pleno sentido. De uma mulher grávida não se pode falar do modo como veterinários e criadores de gado falam. Existe uma distância infinita entre uma vaca prenhe e uma mulher grávida. É bem possível que parte significativa de nossos problemas sociais derivem de uma perniciosa redução das funções sexuais humanas a um nível mais próximo do modo como animais se reproduzem do que como o fariam Filhos de Deus, caso lhes fosse permitido.
           
Não sei de sistema moral que conceda a um casal a liberdade de procriar obedecendo, antes de mais nada, a imperativos de ordem pessoal e espiritual.
           
Onde encontrar um sistema ético em que o útero da mulher não tenha sido submetido a controles absurdos? O chamado “ventre livre” é uma utopia. Não é apenas a prostituta, a mulher “fácil”, que profana o seu ventre. A mulher que procria com a desenvoltura com que se procria coelhos, incide no mesmo pecado.
           
Estou mencionando o modo desastrado como a espécie humana costuma multiplicar-se, porque vejo grande semelhança entre o útero feminino e a Comunidade Cristã. Do útero de mulheres brotam continuamente levas e mais levas de novos seres humanos. Função totalmente idêntica cabe no plano macrossocial às Comunidades de Base. São elas, estes pequenos e aparentemente insignificantes micro-organismos sociais, que sustentam o corpo macrossocial. E são elas as portadoras mais credenciadas da esperança de um futuro mais humano.
           
Gigantismo e elefantíase não são sinais de saúde. Uma cabeça maior que o corpo não é indício de inteligência maior. É fenômeno mórbido tanto quanto o da microcefalia.
           
Papel da Igreja não é assumir funções que a Comunidade pode desempenhar muito bem e até melhor do que o mais eficiente dicastéreo burocrático. Por sua vez a Comunidade deve obedecer ao mesmo princípio em relação a seus membros: cada qual é responsável, antes de mais nada, perante sua própria consciência. Se esta não estiver suficientemente confiável, então cabe à Comunidade proporcionar a seus membros a oportunidade de desenvolvê-la em lugar de suprir esta deficiência com medidas disciplinares que via de regra só servem para agravar o problema.
           
Dois são, em resumo, os requisitos básicos sem os quais a evolução espiritual humana é impossível: a vida em comunidade e a prática da meditação. São as duas “turbinas”, sem as quais, alma alguma consegue romper a barreira do som.

Padre Marcos Bach


VISÃO ÉTICA DA ATIVIDADE ECONÔMICA

Da lógica do pensamento capitalista nascem o cartel, o oligopólio e todas as formas de “Capitalismo Selvagem”. Da lógica marxista-leninista nasce a “Nomenclatura”, o “Estado-Empresário” e todas as demais formas de tutela econômica.
             
Um modo de impedir que aconteça o pior é podar as garras dos “monstros” através de dispositivos jurídico-legais. Outro modo, provavelmente mais difícil de ser aplicado, está em diminuir o “apetite” e reduzir a voracidade destes monstros. Este último recurso envolve a ética. Só através da persuasão é possível conseguir que Capitalismo e Socialismo se unam e venham a gerar um FILHO capaz de redimir os pecados de seus pais. Tanto no pensamento capitalista quanto no de Marx existem germes de redenção e princípios de superação. É só ir à procura deles e aproveitá-los.
             
Uma visão ética da atividade econômica não pode apoiar-se na exclusão radical de um dos dois opostos. Este, o da exclusão, não é o caminho que a evolução costuma seguir. O progresso resulta sempre de um processo de superação, onde os opostos se unem e renascem deste modo para uma nova forma de vida, potencialmente mais fecunda que as duas anteriores. Quando se tem a intenção de introduzir a ética no contexto do pensamento e das atividades econômicas, não se pode pensar ou falar em conciliação ou reconciliação, em coexistência ou coisa semelhante. Qualquer categoria política deste tipo é inaproveitável quando se tem a intenção de estabelecer os pivôs do progresso humano.
             
A palavra Mutação é a que melhor expressa o papel que a Ética está destinada a exercer no campo do progresso econômico. Devemos pensar num modo novo de organizar as relações de produção e consumo. É neste esforço que se deve inscrever o papel da Ética.
             
Todo mundo sabe que Capitalismo e Socialismo são sistemas que esgotaram as suas potencialidades criadoras. Marx e Adam Smith são clássicos e nada mais do que isto. Um clássico não se aplica. Serve, quando muito, como fonte de deleite e de inspiração. A paternidade de uma ideia nova é uma questão de encontro criativo. Quem tem a intenção de reproduzir algo que o passado consagrou, será apenas um estorvo a mais na mesa de debates quando o assunto for Ética Empresarial.
             
A intenção dos dirigentes empresariais gira, via de regra, em torno de valores econômicos como lucro, produtividade e eficiência. Estão certos. O papel principal de um dirigente de empresa não é o de promover o surgimento de um organismo social de alto potencial ético. Isto vale também para o empresário cristão. O que não se pode admitir é a capitulação moral face ao lucro. O lucro não é soberano. As leis de mercado não são uma variante dos Mandamentos da Lei Divina. A competitividade não é uma deusa a que é permitido subordinar as necessidades fundamentais da pessoa humana. Quem deve desaparecer do mercado não é apenas o remarcador contumaz de preços. É também aquele que só consegue sobreviver à custa do suor e do sangue dos seus empregados. Um empresário, para quem a atividade empresarial não entra na categoria dos serviços sociais, não faz jus ao título. É um assaltante vulgar, vestido de casaca. Um empresário de verdade é, no meu entender, aquela pessoa (homem ou mulher), ou então aquele grupo que aposta em primeiro lugar no bem comum de todo um povo. Sua intenção se voltará de preferência para aqueles cuja realização pessoal depende em primeira instância de um bom emprego, de um que lhe assegure o atendimento material e psicológico das necessidades essenciais de um ser humano.

Padre Marcos Bach


PROBLEMA OU OPORTUNIDADE

Não é de hoje a tentativa de unir num todo parcelas dispersas de uma realidade que só conseguirá sobreviver às vicissitudes do tempo histórico se vier a se reencontrar com a unidade que a originou. O que quero dizer é isto: não estamos abordando a análise dos problemas e de oportunidades que nos legaram nossos antepassados com o devido respeito pelo que neles há de contraditório. Definimos como problema o que na realidade é tão somente uma oportunidade ainda não reconhecida como tal. Nossos moralistas elaboram listas em que o bem e o mal, a virtude e o vício parecem em faixas separadas. Em seus catecismos não existe uma faixa destinada a valores em transformação. Ou melhor: se aceitamos a teoria da evolução no plano biofísico, então nada nos impede de estendê-la também ao plano bioético. Sendo assim, nem o bem moral nem o mal são constantes imutáveis. A ética não é uma ciência exata. Como a psicologia, também ela tem como objeto de avaliação valores cambiantes, valores em trânsito.
           
O bem e o mal não existem fora do tempo em uma espécie de “nirvana”. Tanto o bem como o mal acontecem e, além do mais, acontecem no interior da consciência de pessoas conscientes do que estão fazendo.
           
Todos sabemos como é curta a distância que separa a fidelidade do fanatismo, o amor do crime, a obediência do servilismo. Como é fácil transformar patriotismo em ódio, justiça em seu exato oposto. “Summum jus, summa injuria”, diziam os romanos.
           
Não é tarefa da moral prender o homem e seu futuro a uma visão estacionária do tempo histórico. Parar o tempo e impedir que aconteçam mudanças é sem dúvida uma tentativa pouco feliz de frear o avanço do mal e de promover o triunfo do bem sobre o mal. Tudo o que cresce está sujeito ao risco de crescer demais. Há um limite de crescimento para além do qual não é permitido ir sem correr o risco de uma explosão. Os astrônomos chamam de supernova uma estrela que acabou de explodir, espalhando em torno de si parte substancial do material expelido. É do material expelido por uma supernova que surgiu nosso sistema solar.
           
“Onde não acontecem ‘explosões’ é inútil esperar que aconteçam ‘revoluções’”. É o mundo em que vivemos realmente o melhor que é possível imaginar? É realmente importante saber isto? De que adianta a nós e aos anjos saber que o mundo em que vivemos é o que de melhor ocorreu à imaginação do Criador!

Fundamental sob todos os aspectos é a imagem que o homem possui de si mesmo. É o homem um escravo com direito à “forrania”? Ou é um escravo sem este direito? Ou é o homem um anjo que ainda não teve vez de tomar o seu lugar entre os anjos?
           
Mais do que nunca ficamos sem saber se somos primatas melhorados ou se somos anjos escravizados. Não há religião ou ideologia que não tenha medo de que venhamos a fugir do seu controle. Somos o que a sociedade faz de nós ou é a sociedade o reflexo fiel do que fazemos de nós mesmos? Cabia no Brasil colonial a outro escravo a tarefa de açoitar em público escravo rebelde. Não fôssemos tão “burros”, perceberíamos que somos nós mesmos que nos transformamos em escravos. Em outras palavras: mais que vítimas de má fé alheia somos carrascos de nós mesmos. Somos nós mesmos que enterramos as melhores esperanças depositadas em nós.
           
Jesus nunca acusou a sociedade de ser a culpada pelas injustiças do seu tempo. Para Ele o sujeito do bem como do mal não é o coletivo, mas a pessoa de cada indivíduo em particular. O sujeito moral só pode ser uma pessoa, um indivíduo humano. São indivíduos que determinam o nível ético de um coletivo e não o contrário.

Padre Marcos Bach


A ATIVIDADE LABORAL

O cristianismo tratou a atividade laboral de forma ambígua e contraditória. Dum lado encarava-a como castigo e consequência do pecado de Adão. “No suor do rosto comerás o teu pão”! Do outro lado o exemplo de Jesus que, dizia-se, passou os anos da sua vida oculta trabalhando como carpinteiro na oficina do seu pai nutrício José. Agindo assim, dizia-se, ele libertou o trabalho da maldição que sobre ele pesava desde a aurora dos tempos.

Na prática o mundo cristão conviveu com formas de escravidão até o limiar do século XX. Mas em sua essência a escravização através do trabalho continua sendo a mesma de sempre. Mudaram os rótulos, mas os valores de referência continuam fundamentalmente os mesmos de sempre. O valor do trabalho se mede pelos resultados que apresenta! O próprio trabalho não possui valor intrínseco. Não possui isto que se chama de sentido. Não há Partido Trabalhista que se preocupe com aspectos tão “metafísicos” do problema. “Amigo: aonde você pretende chegar com o que está fazendo?”. Faça esta pergunta a um motorista de ônibus e ele provavelmente lhe dirá em resposta: “Quero um dia me aposentar bem e passar a cuidar da minha vida, da minha horta, dos meus netos”! Só isto? “Ué, o que mais você acha que vou poder querer?”. No mundo brutal do trabalho feito mercadoria não faz sentido perguntar a um cobrador de ônibus: “Qual o sentido do seu trabalho?”. Um escravo é bom quando faz tudo o que lhe é ordenado sem discutir e sem exigir nada em troca! Por isso o robô está tomando o lugar do operário padrão, “pois não discute e cumpre ‘fielmente’ o que lhe foi ordenado”.
           
O trabalho que exige esforço físico ou mental está em vias de ser aposentado. O trabalho cansativo e monótono executado antes por animais e depois por máquinas está sendo transferido para a “competência” de sistemas cibernéticos. Por ora o trabalho ainda é antes um castigo do que uma bênção. Representa, via de regra, um fator de alienação pior do que tudo o que Marx imputava à religião. No setor empregatício a procura é muito maior do que a oferta. Desta forma o que sai perdendo valor é o trabalho. Aquele que oferece empregos é considerado benfeitor. Já se foi o tempo em que era visto como explorador do povo e sanguessuga social. O trabalhador está-se transformando cada vez mais em obstáculo do progresso, em pedinte e mendigo. O “grande” promotor do progresso humano já não é mais o personagem messiânico dos devaneios sociais de Marx. Não são mais os empresários que precisam de trabalhadores. São estes que precisam de empresas prósperas, capazes de beneficiar a classe operária com novos postos de trabalho.
           
Benfeitor é aquele que oferece emprego. Se é capitalista ou socialista, pouco importa. O valor do trabalho está despencando a olhos vistos. Anda mal avisado todo aquele que depositou no trabalho esperanças de realização que deveria e poderia ter depositado em outras formas de atividade humana.
           
O homem que é obrigado a fazer o que por iniciativa própria jamais faria é o primo-irmão do primitivo “caçador das estepes” obrigado a correr o dia todo atrás de búfalos truculentos ou de cervos arredios.
           
Marx pretendeu redimir o homem redimindo da exploração capitalista o seu trabalho. Queria lançar as bases de uma sociedade em que o trabalho fosse exercido por pessoas libertas de toda e qualquer forma de exploração e opressão. Queria um sistema socioeconômico em que o trabalho fosse exercido por pessoas livres e não por escravos de tarefas e horários. Stalin deturpou o pensamento social de Marx a ponto de torná-lo irreconhecível. Nada do que Stalin pôs em prática fazia parte do catecismo social de Marx.
           
O grande erro cometido por Marx foi o de sacramentar o que chamou de Ditadura do Proletariado. Lênin se aproveitou deste equívoco para implantar na Rússia uma das mais infandas ditaduras de que se tem conhecimento. Poucos equívocos são tão nefastos quanto o de priorizar a disciplina em detrimento da livre expansão das potencialidades contidas em cada pessoa humana.
           
Ser ou não ser pessoa não é privilégio que possa ser outorgado por decreto de quem quer que seja. Ser cidadão é muito mais do que ser portador de um título eleitoral. Ser trabalhador é muito mais do que “bater o ponto” numa loja ou numa fábrica.
           
Onde Marx errou foi quando tentou elevar o trabalho à condição de “sacramento fontal” de todo o processo evolutivo humano. “É trabalhando que o homem se realiza! É através do trabalho que a humanidade avança no caminho do progresso”!
           
O futuro da humanidade depende parcialmente de dois fatores: do seu grau de eficiência, isto é, dos resultados que vier a produzir; e depende também (a ideia é de Marx) do grau de satisfação pessoal que seu tempo de trabalho vier a proporcionar a quem o desempenha.
           
Lá onde predomina a ideologia desenvolvimentista ninguém se preocupa com outra coisa do que com resultados estatísticos. Que é feito do homem, das pessoas que participam do processo? Pior é a situação dos excluídos, dos que já não participam dele. Que sentido faz ter que trabalhar cada vez mais e receber em troca salários cada vez menores? Quem liga sua realização como ser humano ao trabalho duro e estafante é obrigado pela pressão dos fatos a rever seu projeto existencial.

Padre Marcos Bach


O AMOR AMADURECIDO

Temos que ter em mente que o amor-amizade é o fruto amadurecido do amor apaixonado de duas almas uma pela outra! É uma relação amorosa em que os sentidos e o corpo físico todo e, portanto, também o sexo, não desempenham de longe o papel que desempenham quando o relacionamento é de natureza erótica.
           
Qualquer adolescente pode apaixonar-se a ponto de ficar doente. Mas o amor de amizade só desponta mais tarde, pois faz parte de um estágio mais aprimorado do processo evolutivo. Não podemos exigir de um adolescente o grau de maturidade afetiva que temos o direito de esperar de um adulto. Mas é o caso de se perguntar: no terreno do amor, quem pode ser considerado adulto a ponto de poder falar do assunto ex cathedra?
           
Eu me atrevo a falar do amor movido pela urgência que atribuo à análise do assunto e não por me considerar expert e perito no assunto. Restringi o campo das minhas reflexões ao amor de amizade por duas razões: 1) É o terreno em que posso falar por experiência pessoal própria e não como teórico apenas. Amizade é uma experiência que já tentei na vida inúmeras vezes. Mas não casei porque via no casamento uma porta que se fecha para dentro mais do que uma porta que se abre para manifestações mais abertas de amor. 2) Restrinjo minha preferência à análise do amor de amizade porque é raro encontrar um autor que fale dele como o fez São Francisco de Sales ou como o fizeram Jacques e Raíssa Maritain!
           
Amigo é aquele que sabe que não tem o menor direito ao amor de que é alvo! Amigo não processa amigo! Amigo não cobra de amigo! Amigo não julga amigo. E muito menos o condena! É por tudo isso que o amor de amizade passou a figurar tão somente na lista dos sonhos utópicos da humanidade.
           
Para um moralista o amor é uma obrigação. Para um jurista é a lei que determina e delimita o campo do amor! Para um teólogo o amor é um tributo que o homem deve a Deus!

O amor de amizade não resulta de um cálculo bem feito. Não é racional, pois não se apoia na lógica de um raciocínio bem feito. Nada mais é, em sua essência, do que um ato de fé, o mais puro dentre todos.

O que dois amigos veem um no outro? Somente o que é digno de admiração. Embora não desconheçam nem neguem o lado defeituoso da pessoa amada, não o tomam em consideração, pois sabem melhor que ninguém o quanto o mal é impotente quando desafiado por um genuíno amor!
           
Um lavrador experiente sabe que a força da praga é a fraqueza da planta! Planta ou animal saudável e robusto não atrai praga! São pessoas egoístas e mal-amadas que atraem sobre si e sobre a sociedade em que vivem toda sorte de doenças!
           
Num ambiente esquálido como o da periferia das grandes metrópoles não há doença que não consiga triunfar sobre seus inimigos! No Brasil dispomos de 42.000 remédios diferentes para combater o avanço da doença! Será que não é um equívoco apostar no aumento do número de remédios em lugar de apostar mais na sua eficácia? Não é aumentando o número de farmácias e de postos de saúde que vamos reduzir a incidência de moléstias. A doença chama o médico. A saúde não precisa dele. Saudável é a pessoa que é seu próprio médico!
           
A palavra cura é latina e significa cuidado. A saúde é o normal e é indício de que vivemos nossa vida de acordo com os sábios princípios da natureza. A doença só aparece quando existe algo de errado no modo de viver a vida!
           
Podemos errar procurando viver uma vida que não é a nossa! Cometemos um erro desastroso toda vez que nos orientamos mais com base em opiniões alheias do que de acordo com a nossa própria consciência! O amor com que amamos só é autêntico se brota do nosso próprio interior e constitui verdadeiramente um ato de fé!
           
Existe no ato de amor um paradoxo: a nossa fé no amado ou no amigo não é cega e, contudo, é cega, pois não nos permite julgar nosso amigo tomando em consideração os seus defeitos e pecados!
           
“O pecado só existe na mente dos homens”, diz Jesus no Evangelho de Maria Madalena. A natureza desconhece o pecado! Não ver o pecado do amigo é, pois, um ato de justiça. Foi por isso que Jesus disse: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Amigo não julga amigo! “Eu a ninguém julgo” (Jo 8,15). “Não vim para julgar o mundo” (Jo 12,47).
           
O amor de amizade é o máximo que o amor humano pode atingir com seus próprios recursos! Mas não representa tudo o que o homem é capaz de alcançar no terreno do Amor!

Padre Marcos Bach


AUTORIDADE ÉTICA

Se fôssemos sinceros como o apóstolo Paulo, saberíamos que não fazemos sempre o que quereríamos e que raramente queremos o que poderíamos e deveríamos querer. Pertencemos a uma espécie biológica sui generis. Somos animais que já não sabem o que fazer com os impulsos da sua condição animal. Somos, ao mesmo tempo, anjos desejosos de voar sem parar, aos quais, porém, faltam as asas indispensáveis a tanto.

Minha intenção não é de natureza apologética. Não tenho o propósito de defender Deus ou de provar sua existência. Não é Deus que me está pedindo ajuda. Também não tenho a intenção de falar em nome da Igreja, já que como simples teólogo não faço parte nem do Magistério Eclesiástico, menos ainda do Ministério Petrino. Não tenho a intenção de separar o joio do trigo. Nem pretendo colocar-me a serviço de verdades absolutas. Para mim só existe uma única Verdade Absoluta, que é a Pessoa Divino-Humana de Jesus Cristo. Verdadeira para mim é toda a teoria, hipótese ou ideia que pode ser transformada em Amor. Tudo o mais é ideologia.
           
O universo todo está à espera do amor do homem mais que da sua capacidade de entendê-lo. Se o universo não é uma simples máquina, então já não é mais permitido definir Deus como Arquiteto. Se o universo é dotado de consciência, então sabe o que quer e para onde está indo.
           
Fonte e causa de muita confusão metafísica é a vaidade de homens que se julgam no direito de impor normas à natureza. Fazem parte da lista:
            - Teólogos, que se consideram autorizados a falar em nome de Deus, por terem defendido tese de doutorado.
        - Moralistas, que baseiam suas normas mais na autoridade do que no consenso popular ou na voz da consciência pessoal de cada membro da Igreja de Cristo.
             - Filósofos ateus, que falam de Deus sem amor, como se Ele não merecesse ser levado a sério, como se fosse uma espécie de inimigo nato da humanidade que merece um lugar destacado na lista dos inimigos mais perigosos da humanidade.
           
Teólogos, moralistas, filósofos e ateus possuem em comum o mesmo pecado original: julgam a Deus com base em conceitos antropológicos. Falam de Deus como se Ele fosse apenas um Ser inteligente mais poderoso e mais sábio que o homem.
           
O conceito cristão apresenta Deus como o Totalmente Diferente.
        
Entre Deus e o homem existe uma distância e diferença muito maior do que a que separa o homem do chimpanzé. O homem pode continuar a ser o chimpanzé que já foi um dia. O que não lhe é permitido é não progredir. Chimpanzés já são chimpanzés há milhões de anos. A passagem do tempo não altera a sua natureza.
           
Um homem, que por acaso saísse das cavernas de Altamira, iria sentir-se com certeza perdido no mundo de hoje. É a mesma sensação de quem hoje sai do ambiente religioso e tenta encontrar um lugar no mundo secular. As alternativas com que se defronta são duas:
            - Ou abandona por completo o seu passado religioso.
            - Ou encontra um modo de conviver com ambos.
           
O que pretendo não é ensinar como sobreviver num ambiente social submetido a pressões antagônicas. Vida e sobrevivência não são a mesma coisa. Jesus não veio para assegurar à humanidade mais uns milênios de sobrevivência. O que Jesus veio fazer foi inaugurar uma nova forma de vida. Um cristão não pode contentar-se com ser homem ou mulher do mesmo modo como judeus, gregos e romanos. Jesus não teve o propósito de tornar os homens melhores, mais humanos e mais inteligentes. Por tão pouco não era preciso que Deus se tornasse homem. O objetivo último do Projeto de Jesus visa a transformação do homem animal em ser divino, Filho de Deus.
           
Considero escandalosa a distância que separa o pensamento oficial das Igrejas cristãs da generosa visão de Jesus Cristo.
Padre Marcos Bach




A ORIGEM DO MAL

O mal existe dentro do homem, como fora dele. Mais perigoso e potencialmente mais nocivo é o que se encontra entrincheirado no interior das pessoas. O mal resulta do mau uso de uma energia naturalmente positiva. Não é em si, e por si mesma nem boa nem má. Ela se torna fonte de mal quando é desviada do seu rumo natural. Isto acontece toda vez que é subtraída ao domínio soberano do Eu Superior, isto é, da centelha divina que arde no íntimo da consciência humana. O mal não se origina nos planos mais elevados da consciência. Seu habitat e berço de origem é o chamado Eu Inferior.
           
Submeter-se aos impulsos deste Eu Inferior e identificar-se com ele representa a raiz psicológica e fonte originária de todo o mal. É uma entidade mascarada feita de imagens cuja única finalidade é ajustar a pessoa individual ao nível do ambiente social em que vive. É, além disso, uma entidade imatura sob o aspecto psicológico, moral e espiritual. Tão imatura quanto a sociedade cujos traços dominantes introjetou e assumiu.
           
Uma sociedade imatura gera indivíduos imaturos e estes, por sua vez, impedem que aquela se liberte de suas máscaras. Existe imaturidade, tanto em pessoas como em instituições sociais, quando nelas predomina o conjunto de máscaras que a criança se viu forçada a adotar para ser aceita pelas pessoas do seu ambiente. Amadurecer significa aqui libertar-se da criança forçada a mentir, a fingir, a representar um papel fundamentalmente falso e hipócrita, cercando o seu Eu com atributos e defeitos fictícios que correspondem à opinião de outros e também a expectativas próprias, mas que na realidade não possui. Autores há que dão a este Eu o nome de Eu Idealizado e o consideram inimigo número um do Eu Superior.
           
O Eu Idealizado, além de se manter através da repetição constante de mentiras e enganos, bloqueia grande quantidade de energias psíquicas destinadas ao desenvolvimento espiritual e ao enriquecimento do Eu Superior. O domínio do Eu Idealizado representa um monumental desperdício de energias, que ética ou espiritualidade alguma consegue desculpar ou justificar. O medo de sair perdendo na competição com outros, aliado à ambição de sobressair a todos, caracterizam pessoas entregues à tirania do Eu Idealizado. Não sabem como lidar com suas imperfeições. Confessam-se culpadas por tê-las. Alimentam uma noção totalmente distorcida do que é bom ou mau. Tem medo doentio da liberdade. Da própria liberdade mais que da dos outros. Da liberdade interior mais que da exterior.
           
O cavaleiro medieval tirava a armadura ao menos na hora de ir para a cama. O nosso Don Quixote, cavaleiro da triste figura mais que o herói do romance de Cervantes, não abandona em momento algum a sua “armadura”, feita de ilusões e destinada a protegê-lo contra inimigos que só existem como fantasmas.     
           
Proteger-se a si e aos que foram confiados à sua proteção é o dever máximo de um Don Quixote de la Mancha. Tudo o que acontece fora das pessoas é tramado em seu próprio interior. Marx cometeu uma gafe imperdoável quando se saiu com a declaração de que importante era o que os homens fazem e não o que pensam.
           
O único progresso que merece este nome é o que se dá no interior das pessoas. Todas as manifestações de hipocrisia e de tirania social nascem no interior de pessoas dominadas por um Eu Idealizado, falso e tirânico.

Padre Marcos Bach


CONSCIÊNCIA ÉTICA NA EMPRESA        

Ninguém pode aderir honesta e responsavelmente a uma instituição se não sabe o que está acontecendo em seu interior. Instituições que cultivam o segredo e o anonimato não merecem fé. Isto não vale somente para as instituições políticas e religiosas. Vale também para a empresa. Um funcionário tem o direito de poder crer e ter fé em sua empresa. Deve saber com quem está lidando e para onde vão os recursos que ajuda a produzir. Os “de cima” agem de modo pouco racional se nutrirem a ideia de que os “de baixo” não precisam, nem têm o direito de saber o que acontece na empresa. Num corpo sadio todas as células (e são trilhões) sabem o que está acontecendo em qualquer parte do corpo. Por que tantos dirigentes teimam em envolver a sua atuação com o manto do silêncio e do segredo?
             
Uma empresa de elevado nível ético difere das que não o são pelo modo como estrutura o conjunto de relações humanas. A saúde moral e ética é uma questão de estrutura. Assim como o esqueleto e a estrutura fibrosa dos músculos são essenciais para a saúde física, do mesmo modo é na base da consistência estrutural que se devem procurar os sinais de saúde ética de uma empresa. A mais vistosa coleção de rótulos não supre as deficiências de uma instituição estruturalmente viciada. E onde está a instituição que não apresente vícios e falhas estruturais praticamente insanáveis?
             
Quanto mais nos convencermos que o futuro vai ser uma continuação linear do passado, tanto pior para o AMANHÃ DA HUMANIDADE. Quem medita sobre o que escreveram Toffler, Ouchi, Capra, entre outros, chega a uma conclusão muito simples (até mesmo simplória): ou refazemos tudo a partir dos fundamentos, ou seremos os derradeiros representantes de uma civilização fadada à extinção. A grande pergunta a ser feita refere-se à capacidade de reação da atual geração.
             
Não devemos esperar que as massas (as multidões e as frentes populares) façam o que precisa ser feito para reverter o quadro involutivo do momento histórico atual. Uma multidão nunca está em condições de ir além do papel de instrumento. O que caracteriza o agente de mudanças sociais (o líder) é o elevado nível de consciência pessoal e histórica. Ora, o que caracteriza as multidões em qualquer parte do mundo é a falta de consciência pessoal. Tire um homem da massa de “fiéis” e você terá um primata um pouco melhor do que seu congênere das selvas. A multidão pressiona o indivíduo em sentido oposto ao da conscientização. A massa pressiona no sentido de baixar o nível ético individual. Mergulhados na multidão, os indivíduos perdem o senso de responsabilidade pessoal. No seio de uma massa não há lugar nem espaço para o exercício criativo da liberdade.
             
Quem pretende implantar em sua empresa reformas de natureza estrutural, deve voltar a sua atenção em primeiro lugar para as pessoas que compõem a Família Empresarial. O primeiro passo é a elevação do nível de consciência individual e grupal. O segundo passo consiste na transformação da empresa em comunidade de trabalho, onde as diferenças sociais são reduzidas a um mínimo.
             
Quem torna a ética parte da filosofia política de sua empresa provocará inevitavelmente ondas de choque de grande ressonância. A menos que sua intenção seja meramente decorativa, algo parecido com o gesto de pendurar um crucifixo na parede de um tribunal. Também a ética está sujeita a servir de fator de manipulação das consciências em lugar de constituir-se em meio de conscientização.
             
O empresário que julga ser mais fácil lidar com funcionários conscientizados, se engana. É bem mais difícil, mas é mais seguro e infinitamente mais gratificante do que pôr em movimento uma massa de robôs obtusos.

Padre Marcos Bach


A LEI NÃO É O SUFICIENTE
A força de um cristão não provém das Tábuas da Lei. Seja ela qual for, a lei é incapaz de despertar na consciência de um cristão o desejo de ultrapassar toda e qualquer fronteira capaz de detê-lo em sua ascensão para Deus. E neste caminho até a lei moral pode ser um tropeço. Pois ela só representa uma etapa e se refere tão somente a um aspecto da jornada do homem rumo ao Reino dos Céus.
A moral ensina como proceder para ser bom. Num projeto destinado à perfeição plena do humano não é suficiente ser bom. É preciso ser cada vez melhor, pois é nisto que consiste a perfeição. O mundo seria muito pobre se nele só houvesse lugar para o bem e o mal. Se assim fosse, nenhuma espécie de evolução, de desenvolvimento e crescimento seria possível. O mal não está apenas em não ser bom. O pior dos males consiste em não querer crescer, em negar-se a progredir. Progredir significa ir para frente, avançar no tempo, saber cortar a bananeira que já deu cacho.
Quem se contenta com ser bom não tem necessidade de aprender a renunciar a outra coisa que ao pecado. Quem quer ser perfeito deve estar disposto a renunciar também a um bem toda vez que este venha a se tornar empecilho para um bem maior. A moral é minimalista por natureza: exige o mínimo indispensável para a boa ordem da sociedade. Não tem por objetivo criar heróis e formar santos.
Espiritualidade cristã é a palavra que abrange tudo o que se relaciona com a formação do cristão perfeito. Isto é, do cristão que é mais cristão do que outros. É possível ser mais cristão do que outros?  Claro que sim. A diferença, onde está? Está tanto na maior (ou menor) intensidade da fé em Cristo e do amor para com Ele, quanto na coerência entre o que professa pela fé e o que se vive no dia a dia.
É evidente que o máximo que podemos alcançar é não abandonar jamais o caminho da perfeição. A perfeição mesma é como o horizonte que recua sempre por mais que se procure alcançá-la. Ela não é para ser adquirida de todo no decurso da existência, já que sua plenitude só a poderemos alcançar no além. Para um santo, a morte é bem-vinda, já que remove o último obstáculo que o impede de ver e possuir Deus. Só o que nos prende cada vez mais a Deus é digno do nosso esforço. Somos imperfeitos na medida em que continuamos presos ao que não é Deus e não favorece a união com Ele. Podemos dar-nos por satisfeitos quando fora de Deus e do seu Amor não há mais nada capaz de nos prender o interesse. Santo Inácio de Loyola dá a este estado de espírito o nome de indiferença.       
A espiritualidade cristã tem por objetivo acordar e mobilizar as energias ocultas e adormecidas no interior da alma humana. As exigências da vida espiritual são maximalistas. Deus não se contenta com menos do que com a totalidade do nosso amor! Aqui vale o dilema: ou tudo ou nada! Quem se dá todo a Deus, “torna-se Deus”, como afirma São João da Cruz. Quem participa da natureza divina a ponto de se tornar um com Ele, adquire um poder semelhante ao de Deus. Torna-se uma potência espiritual dotado de energias inesgotáveis. O próprio Espírito de Deus o impele a irradiar essas energias no ambiente em que vive. A diferença entre um santo e um cristão medíocre é tão desproporcional que São João da Cruz lamentava a falta de um SANTO mais do que a de milhares de cristãos de fé superficial e distraída.

Padre Marcos Bach


FUSÃO DE VONTADES LIVRES      

Quem sacrifica a sua liberdade a perde. É imoral, sob todos os aspectos, entregá-la a um outro para que decida por nós. Atitude bem diferente e absolutamente necessária para o próprio bem e o de outros é associá-la à liberdade de outros. Dessa aliança e fusão de vontades livres é que nasce toda e qualquer genuína forma de vida comunitária.

A liberdade só existe e só se manifesta quando duas pessoas se unem por amor. Quando cada qual sacrifica o seu egotismo no Altar do Amor. A liberdade é a atmosfera. O que torna esta atmosfera respirável é o amor. Fora deste espaço-tempo nem a liberdade, nem o amor conseguem medrar!
                       
Outra constatação significativa de progresso espiritual é a de que está havendo no interior da consciência uma espécie de arrumação.
           
A palavra arrumação é derivada da palavra rumo. É uma experiência gratificante perceber que as variadas experiências da vida interior estão começando a tomar uma direção, um rumo e um sentido.
           
Nasce uma esperança nova em meio aos fracassos e ao sentimento de impotência. Esta esperança não é mais do que fruto do processo de conscientização. Não basta o conhecimento para pôr em movimento um processo de liberdade interior (ou exterior). Fundamental é a motivação, a energia que põe em movimento a vontade.
           
Só há uma energia suficientemente poderosa para arrancar uma pessoa do marasmo e da inércia moral e psicológica que toda instituição associa ao conceito de fidelidade à Tradição. A razão do fracasso da metodologia de Paulo Freire, como da pedagogia marxista, em geral, é a falta de uma motivação suficientemente poderosa capaz de arrancar a legião de oprimidos do Nordeste brasileiro (ou do interior africano) de sua inércia secular.

Num país de tradição católica como o Brasil, a tarefa de libertação se torna sobre-humana, porque nos catecismos das Igrejas a inércia aparece como virtude e passa a ser sinal de fidelidade a Deus. Passar da consciência de oprimido para a de opressor é bem mais fácil do que sair da condição de oprimido e passar ao status de liberto em Cristo.
           
Para um cristão a liberdade é fim, e não apenas meio. Ama a liberdade porque só ela lhe abre caminho em direção a Deus. O encontro com a Liberdade Divina do seu Criador é para um cristão a razão de ser da sua fé em Cristo. Não quer passar a sua eternidade ao lado e perto de um Deus ao qual não possa amar com o amor mais livre do mundo.

Padre Marcos Bach


MORAL DE OPORTUNIDADES E DESAFIOS    

Os sistemas morais de todos os tempos tiveram sempre por objetivo assegurar à sociedade o máximo de controle sobre a consciência individual de cada um dos seus membros.
           
Se queremos uma sociedade radicalmente diferente da atual, temos que inverter o esquema e passar de uma moral deontológica (de obrigações) para uma moral de responsabilidade. Um sistema deontológico é composto de normas e o outro compõe-se de oportunidades e desafios. O primeiro é fruto de vontades alheias a da pessoa a quem estes preceitos se dirigem. O outro é fruto de consciências individuais irmanadas entre si, constituindo um prolongamento do inconsciente coletivo de cada membro de uma comunidade. Resulta da comunhão de consciências pessoais que desta forma se unem para formar algo que se poderia denominar como supraconsciência coletiva. Desta forma o controle da ordem moral passa da alçada de superiores para a do próprio corpo comunitário.
           
A anarquia moral e o subjetivismo que moralistas e canonistas tanto temem e que tentam neutralizar através de leis e controles rígidos, deixaria de ser um risco mais grave do que aquele que nos ameaça em nossos dias. Leis draconianas nunca serviram para melhorar a situação moral de um povo. Leis “sábias” só existem no papel, pois toda lei é manca por natureza. Quando um legislador é chamado para entrar em ação é porque a situação moral tornou-se insustentável. A lei é sempre um remendo. Ninguém põe remendo em manto novo!
           
Em toda boa comunidade sempre existe um espaço aberto às loucuras do amor. Que nela haja um pouco de desordem e anarquia é positivo. O excesso de ordem e disciplina acaba por gerar o exato oposto daquilo que se pretende. Vale também aqui o que os romanos diziam da justiça: “Summum jus, summa injustitia”. Também das demais virtudes morais, da santidade e da perfeição se pode dizer o mesmo: todo excesso é prejudicial! A racionalidade transforma-se em seu oposto quando levada ao extremo.
           
Kant foi um dos pensadores que mais esperança depositou nas luzes da razão. Mas percebeu cedo que a Razão Pura é um mito e que seria “imoral” impor aos homens o domínio da Razão Pura. Baixou as exigências do seu sistema moral, conformando-as com os quesitos da razão prática.
           
Tudo isto nos diz que devemos precaver nosso pensamento da influência de extremistas, de fanáticos radicais, de fundamentalistas e rigoristas de toda espécie.

A verdadeira sabedoria nasce da fusão da razão com o sentimento. Lá onde ao sentimento não é reconhecido a mesma liberdade e o mesmo valor que à razão, as coisas não prometem muito futuro.

Nas Comunidades Cristãs do primeiro século atribuía-se grande importância à inspiração dos membros da comunidade. Paulo fala dos diversos carismas que o Espírito Santo concede a uma Comunidade de Fé.
           
No início da Igreja todos os membros tinham o direito de pregar. O monopólio deste ministério passou para a alçada exclusiva do clero só muito mais tarde. A palavra de Paulo (I Cor 14,34): “Mulier taceat in Ecclesia”, refere-se a um caso particular. As mulheres gregas, em geral, eram muito espontâneas e tagarelas.
           
Por ser consciente e livre o homem é capaz de mudar de rumo, de pensamento e de forma com uma facilidade que um animal não conhece.
        
Permanecer sempre o mesmo e não mudar nunca, não é, portanto, critério válido para medir a moralidade de um cidadão ou a fé de um cristão.

Padre Marcos Bach


DISCERNIMENTO PARA DISTINGUIR A VERDADE DO ERRO   

Só pessoas que tiveram a coragem de pôr a própria casa em ordem estão em condições de contribuir de forma construtiva para a edificação de uma sociedade mais digna de seres inteligentes. Em outras palavras: a conversão pessoal é requisito indispensável para qualquer tentativa de reforma social merecedora de crédito.
           
A Revolução Comunista Russa não resultou de uma ambição de poder político mais do que de um desejo de justiça. O Concílio Vaticano II aconteceu sem a participação do povo católico. Foi um movimento que afetou apenas a cúpula da Igreja católica. O povo até hoje ainda não entendeu o que lá se discutiu. Houve um esforço notável no sentido de atualizar (aggiornare) o pensamento e o regime de governo da Igreja católica, mas de concreto até hoje pouco foi feito. A explicação é simples: tudo continua como antes porque a cabeça das pessoas não mudou. A grande massa dos fiéis continua tão alheia à realidade como sempre. O clero pouco se interessa por mudanças capazes de diminuir o campo do seu poder de governar. Não existe, portanto, na Igreja católica vontade política para acionar mudanças mais radicais. O surto de movimentos pentecostais é tolerado por Roma porque não afeta as estruturas eclesiásticas vigentes. Em todos eles aparece a figura de um padre no comando do espetáculo!
           
O Concílio Vaticano II recomenda vivamente a todos os cristãos (e não só ao papa) que aprendam a interpretar corretamente os “Sinais dos Tempos”. Não confia esta tarefa a um dicastéreo da cúria romana, nem a uma assembleia de doutores em teologia, mas à consciência individual de cada cristão, sinceramente empenhado em viver a sua vida de acordo com a sua fé em Cristo. O Concílio não se preocupou com especificar em detalhes quem é este cristão, se católico, protestante ou ortodoxo.
           
Estar mais ou menos identificado com o projeto fundamental de Cristo não é privilégio exclusivo desta ou daquela confissão cristã. Todas as Igrejas têm algo a oferecer, desde que não imponham a fé em Cristo como se impõe uma canga a uma junta de bois. A verdade cristã não é um espaço onde é possível resguardar-se do mundo. Não é um lugar onde a mentira e a hipocrisia não conseguem entrar. É um espaço aberto, aberto ao mais e aberto ao menos. Aberto à ação dos piores inimigos de Deus e do homem. Se queremos entender algo do muito que no futuro vai desafiar a nossa precária intelectio fidei (compreensão da fé) de hoje, o melhor que um cristão honesto pode fazer é reconhecer sua ignorância religiosa e admitir que só um milagre do Espírito Santo lhe poderá proporcionar aquele espírito de discernimento sem o qual não terá a mínima chance de entender o que daqui para frente vai significar ser discípulo de Cristo.
           
Discernimento é a virtude que capacita uma pessoa a distinguir a verdade do erro e o bem do mal. Não é a mesma coisa que prudência. Também não é o resultado de um exercício mental em que são pesados prós e contras. Sua finalidade não se resume em impedir que se cometam erros e se façam escolhas falsas.
           
A prudência é uma virtude muito louvável. Mas o espírito de discernimento ultrapassa os limites da prudência cautelar porque seu objetivo último não consiste em impedir que se cometam erros. A virtude do discernimento tem como objetivo escancarar as vias de acesso a significados novos e mais profundos da verdade e do bem. Não há verdade ou bem moral que não possua uma dimensão de profundidade ainda por explorar. O ideólogo, o moralista convencional e o dogmático não admitem que possa existir ainda mais verdade do que aquela que eles conhecem. Não fossem os cientistas e ainda hoje estaríamos a ensinar em nossas escolas que o sol gira em redor da terra.

Padre Marcos Bach


SUPERESTRUTURA PSEUDOMORAL    

A educação moral e religiosa de um cristão se baseia na crença em verdades absolutas e em normas igualmente absolutas. O cristão (como outros crentes, religiosos ou não) é condicionado a conformar sua mente, sua vontade e seus sentimentos com um conjunto de ensinamentos e mandamentos que não lhe é permitido discutir ou pôr em dúvida.
           
Todo este conjunto de doutrinas, depois de introjetado, constitui uma espécie de superestrutura psicológica análoga ao superego freudiano. É a pseudoconsciência de Erich Fromm, ou “consciência alienada”, como se poderia defini-la. Alienada porque representa uma parcela da consciência total, sobre a qual o indivíduo não tem o domínio. Constitui a área da consciência que deixou de ser patrimônio pessoal ou nunca pôde sê-lo. É a área em que não há lugar para a liberdade, menos ainda há nela espaço para amar.
           
A pseudoconsciência é tirânica, impessoal, implacável. Por desconhecer o que é amor, desconhece também a justiça. Seu rigor, em lugar de favorecer a justiça, favorece a opressão e o terror. Nela o lugar do amor foi tomado pelo medo. O da liberdade, pela abdicação da mesma. Por isso são falsas as virtudes que gera. Sua obediência é falsa. Falsa a sua humildade e hipócrita sua religiosidade.
           
A figura do escrupuloso é simbólica, pois ela diz tudo o que de destrutivo existe neste superego que tantos cristãos carregam consigo, confundindo-o com a legítima consciência moral. Quem se aproveita desta confusão toda são os que se poderia chamar genericamente como “manipuladores sociais”. São todos os que preferem o “servidor submisso” ao colaborador consciente e livre. Todos os que fizeram do poder a sua base de projeção social, precisam de servos, de muitos servos. Homens livres não lhes servem!
           
“O homem foi criado para servir a Deus!”- rezavam os catecismos. Servir significava fazer a vontade de Deus. Jesus, porém, não se expressou nestes termos. “Eu vim para servir e não para ser servido” (Mt 20,28).
           
Servir é fazer a vontade de um outro. Mas há duas maneiras diferentes de fazê-lo. Uma consiste em submeter sua vontade à de um outro. Ora, a obediência de Jesus consistiu exclusivamente na submissão da sua vontade à do Pai Celeste. O serviço que Jesus prestou a seus conterrâneos consistiu em ajudá-los a fazerem por si o que tinham condições de fazer. Para Jesus servir e cooperar são sinônimos.
        
No gesto de submissão a liberdade perde seu caráter criativo. No gesto de cooperação a liberdade criativa permanece intacta. “Se quiseres...” é uma expressão que aparece a cada passo nas Palavras de Jesus.
           
É vezo de todas as religiões amarrar a consciência de seus adeptos à Vontade Soberana de Deus, transformando toda e qualquer prescrição legal ou disciplinar em manifestação da Vontade Divina. O medo do inferno era usado como instrumento preferido na luta contra o pecado.
           
Todo este medo constitui ainda hoje o background da consciência moral de grande parte dos cristãos. Enfrentar toda esta superestrutura pseudomoral exige coragem invulgar. E não é com meia hora de sermão que se vai conseguir algum resultado encorajador. A tarefa transcende a área de competência de psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Ultrapassa igualmente a competência do moralista e do diretor de consciência. A quem, então, recorrer?

Padre Marcos Bach


A REALIDADE É DINÂMICA
A moral católica dá a impressão de ser mais severa que a de outras religiões ou Igrejas. Ao menos a moral sexual que propõe, tem esta fama.
A verdade é que o modo como a Igreja católica formula a sua proposta moral não é muito feliz. Os termos em que é formulada poderiam ser muito mais propositivos e menos impositivos. O caráter normativo da moral não precisa ser expresso na forma de um decreto.
Uma norma moral não é uma lei que não admite exceções. Já Santo Tomás de Aquino opunha à Lex Moralis a Lex Vitae. A vida humana e a vida cristã, em particular, é uma escola. É em confronto com situações concretas que Deus manifesta sua vontade. Por isso a doutrina moral da Igreja não tem condições de responder a todas as necessidades de um casal, por exemplo. Há situações em que a aplicação pura e simples de uma norma teoricamente correta seria contra indicada.
A realidade é maleável porque é dinâmica. Um sistema ético-moral rígido, feito de regras que não admitem exceção, não combina com a Lei da Vida, pois a parte melhor da vida humana é feita de surpresas, isto é, de exceções. A regra é como o esqueleto: necessário, mas incapaz por si de pôr um corpo em movimento. A elasticidade produzida por músculos é muito mais importante do que a estrutura óssea.
Esta é uma verdade essencial quando se trata de avaliar o desempenho moral de uma pessoa. Dirigir um avião supersônico ou um carro de corrida exige do piloto duas coisas essenciais: preparo adequado e um veículo apropriado.
A tentação não é necessariamente sinal de fraqueza moral. Aos verdadeiramente fracos o demônio  não tenta, porque já os traz em sua rede. A tentação sempre se dirige aos que ainda não capitularam. A tentação é a homenagem que o vício presta à virtude. O ideal não é a paz do cemitério, mas o júbilo da vitória.
É esta visão otimista que falta à moral cristã, em geral.

Padre Marcos Bach


CONSCIÊNCIA VIGILANTE

A passagem de uma cosmovisão dualista para o seu contrário que é a concepção holística, não significa diminuição ou até mesmo perda da sensibilidade ética. Pelo contrário. O mal continua a ser visto como tal. A diferença está em que o mal já não possui mais a facilidade de mascarar-se como antes.

Num mundo em que a realidade e ilusão se confundem como é o nosso, basicamente dualista, a própria confusão favorece a ilusão, dando assim ao mal inúmeras oportunidades de se esconder do olhar vigilante da consciência.

Uma das atitudes que Jesus mais recomendou aos seus discípulos foi a vigilância. “Vos digo, e o digo a todos: vigiai!” (Mc 13,37).

Os piores demônios não são os que andam fora de nós, mas os que conseguiram introduzir-se em nosso interior e que lá estão bem amoitados e camuflados com a nossa conivência, caso ainda estiverem lá. O inimigo invisível é muito mais perigoso do que aquele que não se esconde. O “príncipe das trevas” é tão perigoso, não porque seja forte e poderoso, mas porque costuma cercar-se de trevas, e porque espalha trevas por onde passa. Daí a insistência com que Jesus nos aconselha a vigilância!

Quem quer enganar recorre à mentira. Quem quer iludir serve-se de meias-verdades. Meia-verdade é uma realidade ideologicamente filtrada. Um aspecto é verdadeiro e o outro é falso, mas o lado falso é encoberto pela “luz” que emana do lado certo.
           
Não se pode praticar a vigilância sem dispor de um grande poder de observação, percepção e capacidade de distinguir os sinais falsos dos verdadeiros. Aos líderes religiosos do povo judeu da época, Jesus acusou de incompetência por não serem capazes de interpretar os “sinais dos tempos”.

Estes sinais são constituídos por acontecimentos que indicam o surgimento de tempos novos, e apontam para um rumo a ser seguido. A interpretação deste tipo de eventos não é o lado forte dos porta-vozes oficiais do mundo religioso. Não há instituição religiosa que não se considere indestrutível, a si e a tudo que lhe serve de suporte. Nem quarenta anos tinham passado desde a morte de Jesus, quando o Templo de Jerusalém foi destruído por completo e extinto o sacerdócio. Hoje a situação religiosa é a mesma de então. Festejamos o terceiro milênio como se fosse possível construir um mundo novo mantendo em vigor toda a tralha de tradições e dogmas que fizeram do segundo milênio um dos mais tenebrosos da história.
Padre Marcos Bach


O MANIQUEÍSMO NA IGREJA

O chamado Maniqueísmo, com sua concepção pessimista do homem e do mundo material, constituiu no período inicial do cristianismo uma das mais sérias ameaças à integridade da fé cristã.

Agostinho de Hipona foi por um tempo adepto do maniqueísmo. Através dele penetrou no pensamento moral cristão a atitude pessimista em relação ao corporal e à sexualidade, em especial.

Já o apóstolo Paulo via no corpo um pedaço de “carne”, sempre propenso a trair o espírito. Não são poucos os santos cristãos que atormentavam o seu corpo com toda sorte de agressões e punições, crentes de que o vilão é ele e não o espírito.
        
Os muçulmanos obrigam ainda hoje suas mulheres a ocultar o corpo e até mesmo o rosto para impedir que os homens caiam em tentação. Uma freira cristã usa hábito com a mesma finalidade. Padres e monges usam batinas e buréis. O objetivo é impedir que o corpo se transforme em instrumento de pecado para outros.
        
Este sentimento pessimista de reserva, quando não de rejeição explícita da matéria e do corpo humano em particular, tem contribuído, mais do que se pensa, para fazer da nossa uma civilização necrófila e do derramamento de sangue um ritual de exaltação e manifestação de heroísmo. Até a chamada História da Salvação é um conjunto de fatos abundantemente regados a sangue derramado!
        
“Sem derramamento de sangue não há remissão dos pecados” (Hb 9,22).
        
Há verdades que o são apenas em termos relativos: valem por um tempo e num contexto histórico-cultural limitado. O texto supracitado extraído da Carta aos Hebreus é uma dessas verdades superadas e ultrapassadas.
        
Uma delas é o valor que a palavra Sacrifício possuía na Antiga Lei e o significado que possui no pensamento cristão. Para transformar algo em propriedade exclusiva de Deus não é mais necessário destruí-lo. O grão de trigo é triturado, mas não é destruído. É transformado em farinha. A farinha é amassada e cozida, transformando-se deste modo em pão. O cacho de uva é também ele triturado, fermentado e transformado em vinho. 

Na Última Ceia Jesus tomou pão e vinho e associou a eles a memória da sua presença entre os homens. É como se nos quisesse dizer o mesmo que já dissera antes a Nicodemos: “É preciso morrer e renascer sempre de novo! Só os que sabem como fazê-lo poderão participar da Vida Eterna e ocupar um lugar na mesa do Banquete Celestial”! Cristo transferiu para o interior da alma humana o que antes dele tinha permanecido fora dela.

Padre Marcos Bach



SER ÉTICO COM O OUTRO E COM A VIDA

No dia em que Jesus voltar a morar no meio de nós encontrará pela frente dois pontos de estrangulamento sociocultural: dum lado irá defrontar-se com toda a monumental massa de problemas gerados pela incapacidade dos homens de se amarem uns aos outros; do outro lado estarão os poucos com que poderá contar. São os que já descobriram que o futuro e a sobrevivência da humanidade é, sobretudo, uma questão de amor e que a simples justiça não basta para operar o milagre da reconciliação da humanidade com seu Criador, consigo mesma e com a Mãe Natureza.
        
Amar significa colocar o próximo dentro de si mesmo, tratando-o como aliado natural, em vez de mantê-lo fora e até longe de si. A simples aproximação e boa vizinhança não são suficientes. É necessário fazer do amor um processo de identificação psicológica. Eu sou o outro e o outro sou eu mesmo. Antes de ser indivíduo, sou pessoa.
        
A individuação constitui apenas um momento dentro do processo evolutivo. Consiste em tomar consciência do direito que cada ser humano tem de ser diferente e até certo ponto representante único da sua espécie.
        
A personalização se dá em sentido oposto. Consiste basicamente na tomada de consciência de que o universo é um tecido, uma teia, uma toalha (como o define Teilhard de Chardin): nele tudo se encontra interligado a ponto de constituir um Todo, um Hólos, um TAO.
        
Cada “parte” é este Todo e só pode ser entendida quando considerada como tal. Tarefa da mente humana é revelar a presença ativa de um Todo maior em cada parte. Temos que substituir nosso conceito de natureza por outro. Charles Darwin está superado. A Biosfera já teria desaparecido há milhões de anos não fosse o apoio solidário que cada membro seu presta aos demais.

Padre Marcos Bach


ÉTICO É O AMOR GRATUITO E INCONDICIONAL

O passado pouco tem a nos ensinar. Mas o presente, quem sabe, nos pode oferecer insights mais aproveitáveis. Podemos encarar o presente como sendo o último degrau de uma civilização. Temos razões de sobra para isso, pois os sintomas de decadência sociocultural são evidentes. Visíveis a olho nu.

O pessimista realça a visão dos aspectos negativos do ambiente social, esquecendo o seu lado positivo. O tradicionalista vive da saudade dos tempos que se foram e não voltam mais. O religioso fanático e saudosista prega o retorno a uma religiosidade mais combativa e arcaica do que a que se deveria esperar de membros de uma sociedade verdadeiramente evoluída e moderna.

O presente é, na realidade, o único espaço de tempo verdadeiramente aproveitável.  “Carpe diem”, dizia o poeta romano. Devemos aprender a arte de “curtir” cada dia como se fosse o primeiro e o último da nossa vida, dizemos hoje. “Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mt 6,34). Pois o dia de hoje já nos proporciona uma sobrecarga de cuidados e preocupações. Ao menos hoje é assim para a maioria das pessoas.

Viver intensamente a vida, significa, hoje mais do que nunca, viver cada momento presente. Nesta questão podemos tomar um monge contemplativo, budista ou cristão, como mestre e modelo de vida. Pois é dentro de nós que acontecem as coisas verdadeiramente importantes e decisivas da história humana.

A História, a que merece este nome, não se escreve com tinta. Menos ainda com rajadas de metralhadora, como dizia Mao Tsé-Tung. Não se escreve apenas com sangue, suor e lágrimas como pensava Winston Churchil.

Só há uma única maneira de fazer e de escrever História: é o amor com que a humanidade souber amar! A humanidade toda, sem distinção. Enquanto restringirmos o amor, impondo-o como obrigação moral e profissional, o Amor-Amor continuará a ser a gata borralheira que sempre foi.

Padre Marcos Bach


ÉTICA NA LIDERANÇA

O místico é uma pessoa como as outras. O que o distingue dos demais é que ele vive com um pé na terra e outro no céu, com um pé no tempo e outro na eternidade. Passar pelo tempo com um pé levantado é sua especialidade. Sua personalidade se parece com a do esquizofrênico. Mas há uma diferença essencial entre um e outro, pois enquanto o esquizofrênico permanece com o mesmo pé levantado, o místico troca de pé.

Teresa d’Ávila e Inácio de Loyola eram, sem dúvida, grandes místicos, mas eram, no entanto, exímios organizadores, pois a obra que realizaram perdura até hoje. Perguntado sobre o tempo que levaria para se conformar caso lhe anunciassem a extinção da Companhia de Jesus, dez minutos, foi a resposta que deu. O carreirista é um doente mental que necessita de cargos vistosos e de títulos pomposos capazes de reforçar a sua auto-imagem doentia.

O que distingue o autêntico líder da figura do poderoso chefão é que este último dá ordens, mas não as recebe. A autoridade do chefão lhe vem do cargo que ocupa e do fato de ser o único com direito de impor sua vontade a outros. É um desastre total para seus membros quando um segmento social passa a ser dominado por chefões que usam o cargo como se fosse propriedade particular sua.

A obediência de submissão é a virtude mais apreciada em regimes totalitários. Onde a unidade é confundida com unicidade, onde um único homem reclama para si o direito de pensar e de decidir por todos os demais, estamos assistindo a um dos espetáculos mais tristes que um povo pode oferecer à história. Se este povo é o alemão, o russo ou o povo de Deus, não altera nem diminui a gravidade do desastre.


O objetivo do líder é obter a concordância de todos ou da maioria dos seus liderados em torno de uma proposta. Para ele o debate é tão importante quanto a aquiescência. A Tabula Redonda se encontrava no salão central do palácio do Rei Artur. Numa Tabula Redonda os lugares não são numerados de acordo com critérios hierárquicos. Na Corte do Rei Artur, um cavaleiro podia tomar a palavra em pé de igualdade com o Rei. 
Padre Marcos Bach


ESPAÇO ÉTICO DEFASADO

O espaço moral da maioria das instituições se presta sofrivelmente às necessidades e condições de autorrealização do homem de 200 anos atrás. Encontra-se completamente defasado em relação às exigências morais do homem moderno. 

Em especial, a mulher moderna deve sentir-se bem pouco à vontade ao tomar conhecimento dos itens da extensa lista de obrigações, supostamente destinadas a torná-la feliz, isto é, realizada. Se o espaço moral convencional e tradicional, que continua sendo oferecido como abrigo seguro e ao mesmo tempo salvador ao jovem, chega a ser asfixiante por causa da mesquinhez com que concebe e mede a estatura do homem, o que dizer do espaço religioso? 

Os valores que povoam este espaço, que ligação direta, imediata e intrínseca têm eles com a sexualidade? São, quase sempre, de natureza exógena: não brotam da sexualidade. Ao contrário: visam circunscrevê-la, mantê-la sob controle. Tudo é pensado e definido como se a única relação entre Deus e a sexualidade humana estivesse ligada ao processo procriativo. 

O casamento é pensado a partir do ato religioso e em função da prole. Os resultados deste tratamento falsamente qualificado de religioso se bifurcam em dois sentidos: 

Primeiro, no sentido da degradação progressiva do casamento, em vias de se tornar assunto puramente secular. 

Segundo, no sentido de agravar a situação já precária das Igrejas cristãs, em particular, pois são elas, em geral, as instituições que menos se apressam em manter o contato com os passos (por vezes saltos) da evolução histórica. 

Se as Igrejas cristãs fossem menos confessionais e mais proféticas, substituiriam o tempo gasto em reuniões ecumênicas por outro tipo de colaboração. Mais própria de instituições que se identificam como continuadoras do pensamento salvífico de Cristo. 

O terreno sexual, ainda mais do que o campo social, oferece ao Cristianismo a grande oportunidade de credenciar-se perante o homem moderno como a Religião do Futuro. Isso certamente não vai ocorrer enquanto se publicarem encíclicas papais como a “Humanae Vitae”. 

A Esquerda Festiva por sua vez não tem de que se vangloriar. Rússia, Cuba, Vietnam oferecem um quadro de oportunidades de realização sexual positivamente ridículo, se tomarmos em consideração a imagem de progresso que procuram vender.

Padre Marcos Bach


REQUISITOS BÁSICOS DE UM ATO PARA SER ÉTICO

Um bem elaborado código de moral não basta como “receituário”. As luzes da razão podem ser úteis, mas são insuficientes e fracas demais para iluminar os caminhos imprevisíveis por onde a “vida” costuma passar. Para ser plenamente “humano” ou “bom”, isto é, integralmente de acordo com a natureza do homem, um ato humano, por mais modesto que seja, deve obedecer a cinco requisitos básicos:

1 - Deve ser racional, fruto de uma reflexão bem ponderada.

2 - Deve ser livre, pois é a liberdade que torna o homem verdadeiramente soberano de suas ações.

3 - Deve ser consciente, isto é, deve resultar de uma forma de conhecimento tão completo e perfeito quanto possível. Só a consciência pode oferecer a uma pessoa o grau de “infalibilidade” que representantes de regimes autoritários costumam reclamar para si.

4 - Deve ser um ato de amor. O oposto do amor é, neste contexto, o ódio, o medo e o predomínio do interesse pessoal sobre o social.

5 - Deve contribuir para tornar a vida mais agradável e feliz.

         A atualização do discurso moral cristão supõe mudanças mais do que cosméticas. Exige uma radical mudança de direção. Da preocupação pela forma correta de comportar-se, o cristão deve ser estimulado a se preocupar menos com aspectos formais e externos do seu comportamento, passando a prestar muito mais atenção e a dar muito mais valor à sua “qualidade ética”.
In: Manuscrito.



A MORAL CRISTÃ

A “ovelha perdida” tem mais chances de descobrir a verdade e o sentido da liberdade do que as noventa e nove que nunca tiveram a oportunidade de sair fora e ver sob outro ângulo. O pecado ensina também. Faz parte dos instrumentos pedagógicos do Divino Mestre. Jesus não condena o pecado nem a pessoa do pecador. Até foi acusado de excessiva familiaridade com pecadores e pecadoras. O pecado lealmente assumido não impediu Jesus de jantar na casa de Zaqueu. Os “pecados” de Maria Madalena e da Samaritana despertaram em Jesus um sentimento de misericórdia, de tolerância e de compreensão que destoa por completo da veemência com que condenava a hipocrisia dos seus adversários mais ferrenhos.

A moral cristã deveria ser a moral mais pura, mais transparente e honesta do mundo. E, no entanto, ela dá mais valor a ficções jurídicas (como a obrigatoriedade do celibato clerical) do que a direitos fundamentais da condição humana. A Igreja católica há muito deixou de ser uma federação de comunidades cristãs. Nela a instituição e os que a representam absorveram funções e prerrogativas que no início faziam parte dos direitos de cada comunidade particular. A centralização e a absolutização do poder eclesiástico contribuíram de forma decisiva para o processo de esvaziamento das Comunidades Eclesiais de Base. A Igreja cristã que era no início uma comunidade de leigos é hoje uma instituição clericalizada ao extremo. Este fato representa um grave desvio do ponto de vista social, como uma ofensa grave à maturidade do povo cristão. A ordenação sacerdotal confere a alguém poderes e atribuições que durante muito tempo faziam parte dos direitos de todo batizado.


Hoje se fala com alguma frequência nos assim chamados pecados estruturais. O pecado estrutural é social e não individual ou pessoal. É difícil identificá-lo ou apontá-lo com o dedo. É sorrateiro, subliminar. É como a digitalina, um veneno que não tem cheiro nem gosto. O pecado estrutural costuma esconder-se e travestir-se e se fazer passar pelo que não é. O modo como a autoridade é exercida na Igreja católica é um exemplo clássico de como o pecado estrutural se pode tornar realidade sem que alguém perceba a sua presença. O pior inimigo é aquele que a gente não consegue identificar ou localizar. 
In: Manuscrito.


A LEI COMO PEDAGOGA

É difícil encontrar num Tratado de Direito e num Compêndio de Moral assunto tão maltratado quanto a relação entre ordem social e liberdade individual. A “epikéia”, termo grego usado por Aristóteles, é descrita por ele como a virtude que inclina uma pessoa a interpretar uma lei no sentido mais favorável à liberdade do indivíduo do que à intenção do legislador. Um legislador realmente sábio, como o era Solon, não dissocia a lei da liberdade, mas reserva a esta um espaço bem amplo no contexto da própria lei.

Uma interpretação benigna da lei é sempre mais legítima e inteligente do que uma interpretação mais severa. Uma lei sempre manifesta a vontade de alguém. Este alguém pode ser um tirano interessado em reduzir a um mínimo controlável a liberdade individual de seus súditos. Mas pode ser também a de um sábio que não quer reinar sobre um bando de escravos. É por isso que suas leis não visam diminuir a liberdade dos seus concidadãos, mas apenas circunscrevê-la, mantendo sua aplicação concreta dentro dos limites do possível e do realizável.

A capacidade do homem comum de usar de forma plenamente responsável a sua liberdade é reduzida. As mais das vezes nem sequer sabe o que é ser livre. Prefere o amparo seguro da lei às incertezas que a liberdade inevitavelmente oferece aos que a ela se confiam.

A lei é necessária, assim como o estribo é necessário a quem quer montar num cavalo. O apóstolo Paulo chama a lei de pedagoga, dando a entender que ela educa, educa para a liberdade, pois só é legítima aquela lei que educa para a liberdade. Uma lei que não se destina a ampliar o espaço interior e exterior destinado ao desenvolvimento de uma vontade cada vez mais livre é arbitrária e criminosa.

Assim como o bom educador é aquele que torna a sua presença cada vez menos necessária, do mesmo modo pode considerar-se legítima somente aquela lei que um dia se torna desnecessária. Não merece o nome de ordem justa uma ordem social que só consegue manter-se mediante o emprego da força. Muitos policiais na rua não recomendam uma cidade como ordeira e civilizada.

A lei é um instrumento de valor relativo. O ideal de uma sociedade perfeita é a sociedade sem leis, onde os tribunais de justiça e os postos policiais desaparecem, cedendo lugar a escolas e a campos de esporte. Onde há tanto espaço para o lazer quanto o que é reservado ao trabalho. O chamado tempo livre é tão indispensável à boa saúde social quanto o que os economistas de todos os quadrantes culturais e ideológicos definem como tempo útil.

O que torna a justiça humana tão capenga é o desconhecimento praticamente total da parte dos que a administram dos fatores de natureza subjetiva que induzem uma pessoa a enveredar pelo caminho do crime. A solução não está em explicar o crime até o ponto de justificá-lo, mas em definir melhor o conceito de justiça. Fazer justiça não é o mesmo que restabelecer o império da lei.        

O caminho que conduz a uma ordem social justa não é o do império da lei, mas o da “lex charitatis et libertatis” de Santo Tomás de Aquino. Só lá onde cada um pode fazer tudo o que quer e como o quer pode-se falar em sociedade livre. Só lá onde cada qual evita fazer tudo o que pudesse prejudicar a um outro é que se pode falar em Comunidade de Amor.

Evitar prejudicar o outro é o mínimo que se pode esperar de uma Comunidade de Amor. Entre este mínimo e máximo que se pode esperar de quem aprendeu de Jesus como amar os seus irmãos, existe um espaço tão grande quanto o que separa o finito do infinito.

In: Manuscrito  de Pe. José Marcos Bach, sj


PASSAGEM PARA A MORAL DO MOVIMENTO

Nos últimos 400 anos o panorama cultural mudou de forma radical com o advento da era científica. O homem descobriu que por detrás da aparente imobilidade do mundo se ocultam movimentos incrivelmente complexos. Tomou consciência de que tudo se move e que o equilíbrio e a estabilidade das coisas é de natureza dinâmica. Tudo no Universo, das galáxias às partículas, parece estar à procura de um centro misterioso e desalentadoramente distante.

O pensamento, tanto quanto a ação humana, foi atingido em sua estrutura por esta descoberta. A grande maioria não está familiarizada nem com o pensamento evolutivo nem com a moral do movimento que é a que lhe corresponde. Para uns toda esta questão faz parte de uma guerra verbal sem utilidade concreta. Ou, então, nada mais é do que uma tentativa de abalar em seus alicerces a moral cristã. O que é de se lastimar profundamente é o fato de se estarem alinhando tanto em política e economia quanto em moral e religião conceitos tributários de uma visão estática e fixista do mundo, como se a tradição e a revelação pudessem continuar a pairar acima da história. Como se a história, isto é, o terreno dos fatos, fosse tão somente uma espécie de pântano, poluído pelo pecado ou pelo fracasso humano. Como se a verdade não estivesse envolvida e comprometida com os fatos, mas tão somente com a doutrina e o dogma.

O pensamento evolutivo projeta a preocupação moral e religiosa para o terreno dos fatos, tomados não somente como ocasião, matéria inerte para a concretização do esforço moral, e/ou campo propício para a realização do encontro com Deus. O tempo e os fatos são assumidos como lugares teológicos, ao lado da revelação e da tradição. Definidos por João XXIII como “Sinais dos Tempos”, certos fenômenos sociais constituem verdadeiras fontes de verdade, já que encarnam, em termos históricos, o conteúdo um tanto abstrato, vago e indefinido da revelação.

In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe.J.Marcos Bach,sj – INEF/Vozes.


NOVA CONCEPÇÃO MORAL

A nova concepção (moral) define a fé cristã como atividade de vanguarda. E leva esta concepção a sério, a ponto de questionar a sua própria fé, no que ela ainda abriga e oculta de covardia prudencial e omissão política. Tira o cristão da penumbra tranquila das igrejas e o lança na luta de trincheiras, onde só sobrevivem os que vencem. Onde só vencem os melhores. Os melhores não são os truculentos agitadores, os tecnocratas frios, os calculistas e equilibristas espertos. A respeito deste aparato de poder alguém já proferiu uma sentença peremptória: “Eu venci o mundo”!

O cristão sabe que está do lado do Vencedor. Por isto está tranquilo, mesmo quando mede forças com as mais poderosas e implacáveis máquinas de poder, como foi o Império Romano. A vitória, embora escrita em letras de sangue, sempre acabará por lhe sorrir no término da jornada.

A nova concepção transfere a ênfase moral do campo cosmológico para o pessoal. Do terreno objetivo-ideal para o plano subjetivo-fatual. Em lugar de preservação de uma ordem ideal coloca em plano de vanguarda a fecundidade social de um determinado tipo de ordem.

Um sistema ético vale pelo grau de fecundidade relacional que é capaz de proporcionar, e não apenas pela elevação de suas exigências no plano ideal. Uma moral menos ideal, porém mais estimulante, lhe convém muito mais. Um sistema ético menos distante do esforço pessoal e mais aberto à ventura espiritual concreta. Mais próximo dos fatos e mais voltado para o futuro. Mais preocupado com as pessoas e menos subserviente aos interesses das grandes (e pequenas) instituições, valhacoutos habituais de oportunistas e carreiristas. Uma moral personalista e de movimento – diria Teilhard de Chardin.

A nova concepção concentra o esforço moral em torno do processo de personalização, entendido como esforço de dimensão cósmica, no sentido de uma interiorização crescente. Uma ética que reserva ao homem tarefas cada vez mais amplas, envolvendo-o na construção final do Universo.
In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach, sj – INEF/ Vozes.


PROCESSO ÉTICO, ECONÔMICO, POLÍTICO, SOCIAL E RELIGIOSO

O processo de libertação moral do homem atingiu, em nossos dias, um ponto crítico, prenunciando um salto qualitativo iminente no campo social, envolvendo em seu impulso as estruturas econômicas, políticas e as religiosas também. 

À medida que o momento crítico se aproxima, as resistências que os estratos sociais reacionários oferecem, aumentam de intensidade e violência. Quanto maior a confusão nas linhas conservadoras e retrógradas, melhor para a verdade e para a geração que se está apresentando para tomar as rédeas do poder.

Se não vier achar o caminho que leva do poder ao amor, ou melhor, do amor ao poder, não vão ser melhores do que seus predecessores de triste memória. 

O confronto dos chavões opõe, em campos supostamente contrários, os defensores da ordem e da segurança, e os partidários da democracia e da liberdade. 

Toda esta luta não ultrapassa o terreno dos estereótipos ideológicos, a terra-de-ninguém, onde o povo não mora. Onde os seus interesses não são tomados a sério.

In: Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


SÍNTESE EM ÉTICA TEM REPERCUSSÃO NO CAMPO SOCIAL

Toda síntese se realiza no plano da consciência. Será, portanto, o resultado de um esforço consciente cujo objetivo social é a formação de uma espécie de superconsciência coletiva. Será um processo em que se visa alcançar um estágio novo, de nível superior no plano evolutivo. O diálogo entre Ciência e Fé, Arte e Mística, Técnica e Política exige um máximo de imaginação e de amor. Da síntese que daí vier a surgir dependerá o futuro da nossa civilização e sua sobrevivência.

As condições para a realização deste esforço coletivo de síntese já existem. O estudo aprofundado da natureza humana revela a existência de uma sintonia entre consciência profunda e a intencionalidade divina original. Existe, por conseguinte, uma sintonia das consciências, pondo-as a vibrar em uníssono ou em harmonia, toda vez que uma corda essencial for tocada.
           
Esta sintonia profunda tem sua origem em Deus, de quem todos procedem. Por isso, o anseio generalizado de harmonia e paz é de natureza religiosa. O avanço em direção a este objetivo representa um avanço no campo religioso da Fé, mais que um avanço no campo moral e social. Significa um novo estágio religioso, cujos reflexos serão sentidos por ressonância no campo ético-social.

Sentimos todos na própria carne as consequências de uma ordem religiosa, moral e social que só permite às grandes multidões anônimas um mínimo de participação ativa. Uma ordem moral, religiosa e socialmente adulta é incompatível com a permanência de multidões anônimas e massificadas. Isto é, a maioria silenciosa. Ela cria e alimenta em seu bojo uma margem de irresponsabilidade demasiadamente perigosa para ser admitida sem consternação. Demasiadamente vergonhosa para ser tolerada por mais tempo.

Liberdade e responsabilidade moral correm paralelamente. Diminuir uma é diminuir a outra. Encaramos a liberdade como um convite para a irresponsabilidade. Isso vale para a liberdade tal qual a concebem o libertino e o liberal, o déspota e o grande Inquisidor. Não se aplica, porém, à liberdade como a entende o Evangelho. 

A liberdade puramente externa pouco valor tem sem a liberdade interior. Esta gera a responsabilidade moral e religiosa, base de todo e qualquer compromisso social. Responsabilidade moral significa compromisso com a própria consciência. 

Responsabilidade religiosa quer dizer compromisso com Deus, sintonia com as intenções de Deus. Compromisso com algum tipo de hiperconsciência em formação. Senso de responsabilidade ou vem da consciência ou então é farsa. Onde não há lastro pessoal social, moral e religioso nada mais resta senão o estado policial.

In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach, sj – INEF/Vozes.


A ÉTICA COMO DESAFIO

Enquanto a concepção dualista, pessimista e estática não ceder o espaço espiritual que ocupa indevidamente a uma concepção monista, dinâmica e evolutiva, o cristianismo não deixará a luz mortiça das “catacumbas espirituais” a que se refugia sem tentar o risco de se defrontar com a realidade da existência humana concreta, onde a luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, o Pecado e a Virtude se transforma num corpo, a corpo cruel e implacável. A piedade devota e sentimental das assembleias litúrgicas e o choque frontal com sistemas opressivos no ramerrão cotidiano da vida profissional marcam os extremos de duas concepções da vida cristã. A paz idílica das igrejas parece oferecer à fé o terreno ideal, na opinião da grande maioria. Ao passo que a brutalidade que circunda a vida profissional e política parece pertencer, em definitivo, ao domínio de Satanás, onde um cristão autêntico não tem sequer condições de sobrevivência moral.

A nova concepção define a fé cristã como atividade de vanguarda. E leva esta concepção a sério, a ponto de questionar a sua própria fé, no que ela ainda abriga e oculta de covardia prudencial e omissão política. Tira o cristão da penumbra tranquila das igrejas e o lança na luta de trincheiras, onde só sobrevivem os que vencem. Onde só vencem os melhores. Os melhores não são os truculentos agitadores, os tecnocratas frios, os calculistas e equilibristas espertos. A respeito deste aparato de poder alguém já proferiu uma sentença peremptória: “Eu venci o mundo”! O cristão sabe que está do lado do Vencedor. Por isto está tranquilo, mesmo quando mede forças com as mais poderosas e implacáveis máquinas de poder, como foi o Império Romano. A vitória, embora escrita em letras de sangue, sempre acabará por lhe sorrir no término da jornada.

A nova concepção transfere a ênfase moral do campo cosmológico para o pessoal. Do terreno objetivo-ideal para o plano subjetivo-fatual. Em lugar de preservação de uma ordem ideal coloca em plano de vanguarda a fecundidade social de um determinado tipo de ordem. Um sistema ético vale pelo grau de fecundidade relacional que é capaz de proporcionar, e não apenas pela elevação de suas exigências no plano ideal. Uma moral menos ideal, porém mais estimulante, lhe convém muito mais. Um sistema ético menos distante do esforço pessoal e mais aberto à ventura espiritual concreta. Mais próximo dos fatos e mais voltado para o futuro. Mais preocupado com as pessoas e menos subserviente aos interesses das grandes (e pequenas) instituições, valhacoutos habituais de oportunistas e carreiristas. Uma moral personalista e de movimento – diria Teilhard de Chardin.

In: “Evolução do Amor Conjugal” – Livro de Pe. José Marcos Bach, sj


ÉTICO É PARTICIPAR DO BANQUETE DA VIDA

Para judeus e cristãos a História é mais do que um conjunto de erros e acertos, onde o que é certo corre por conta do Senhor do Universo, ficando os erros por conta da humanidade. A História é, para ambos, muito mais do que uma espécie de epifenômeno do Universo material. O mal é mais do que o subproduto de um processo evolutivo. O sofrimento é muito mais do que a consequência dolorosa de pecados e erros. A morte é muito mais do que uma simples fatalidade biológica. Seres humanos não morrem do mesmo modo como os animais. A morte de um animal, quando natural, é assunto estritamente particular e individual. Morre em benefício da espécie, dando lugar a alguém capaz, não só de continuar, mas de aperfeiçoar a obra iniciada.

É preciso ter em vista o caráter evolutivo do processo pelo qual a vida é transmitida de geração em geração. A nova planta não é exatamente a reprodução mecânica da que lhe deu a origem. É próprio da Vida produzir mudanças capazes de melhorar as condições gerais da biosfera. Melhor em nosso caso é toda mudança que favorece a integração e desfavorece a competição. Quando estas mudanças deixam de ocorrer, a espécie toda inicia o longo caminho do descenso rumo à extinção. São incontáveis as espécies biológicas e as civilizações que tiveram este destino. A razão é sempre a mesma: quem não quer mudar perde o direito a um lugar no Banquete da Vida!

Uma instituição humana, religiosa ou não, perde o contato com a Vida e com o Futuro na medida em que substitui a imaginação pela memória. Quando a Tradição começa a ter mais peso do que a imaginação criativa, estamos diante de um dos mais evidentes sinais de decadência. No terreno religioso e moral é exatamente isso que está acontecendo por toda a parte. O que deveria estar acontecendo é o contrário. Uma empolgante e poderosa antevisão do futuro deveria ocupar o seu lugar. O futuro não é apenas nem primordialmente continuação do tempo histórico passado ou presente, mas inauguração de um Novo Tempo e de um novo modo de fazer história. Consistirá em fazer acontecer o que ainda não aconteceu. E isto por meios que a humanidade até hoje não teve a ousadia de empregar. Onde o Amor será a energia propulsora da história. E a Liberdade o caminho.

In: “O Futuro da Humanidade” – Manuscrito de Pe. J. Marcos Bach, sj


ACUSADA DE CRIME

A chamada Moral Cristã é acusada de um crime que ela na realidade não cometeu: o de ter introduzido o pecado na vida do homem ocidental. Se a opinião de Friedrich Nietzsche fosse correta, o cristianismo merecia ser erradicado da face da terra como Hitler tinha a intenção de fazer. A Moral Cristã não tem sequer 2.000 anos de história, mas o pecado, o crime, a injustiça já existiram muito antes. Tanto a Bíblia quanto os registros suméricos atribuem o Dilúvio ao pecado dos homens. Os “deuses” o permitiram porque os “filhos dos homens” se tinham tornado tão profundamente imorais que não valia mais a pena tentar recuperá-los. Não é, portanto, à Moral Cristã que cabe o triste privilégio de ter inventado o pecado.

O super-homem de Nietzsche é uma espécie moderna de semideus, um Espírito Superior, dotado de uma superconsciência que o coloca acima e além do bem e do mal. Todos os sistemas totalitários cometem o mesmo pecado: colocam os seus “homens” acima da necessidade de terem que discernir, por conta própria, o que é bom do que é mau. O sistema fez isto por eles. À consciência de um bom nazista só cabia uma única tarefa: obedecer e fazer o que lhe era mandado!

Hoje faz parte da boa consciência de um europeu civilizado escandalizar-se com os horrores cometidos nos campos de extermínio da Alemanha Nazista. Mas séculos antes já existia na Europa cristã a prática de exterminar hereges, opositores e dissidentes indesejáveis. A diferença entre a GESTAPO de Hitler e os métodos usados pela Igreja em sua luta contra dissidentes é de natureza meramente semântica. Os meios empregados eram na prática os mesmos. Todos tinham o mesmo objetivo: exterminar pessoas com o fim de impedir que ponham em risco a hegemonia da verdade sobre o erro, do bem sobre o mal.

Hitler e sequazes se comportavam como semideuses, como demiurgos. Para eles não havia no mundo poder que pudesse impedi-los de realizar seus projetos. Nietzsche acusou o cristianismo de ser uma religião para fracos. A força do cristianismo reside, segundo ele, na sua capacidade de explorar o lado fraco dos homens.

O cristianismo e, em especial, a Moral Cristã, se parecem sob muitos aspectos com uma loja em que coxos e capengas, incapazes de caminhar sozinhos e com as próprias pernas, podem encontrar e adquirir uma variedade enorme de muletas e de cadeiras de roda. O cerne do problema ético dos nossos dias não é a existência do pecado. Depois de Nietzsche aconteceram tantas coisas horríveis e verdadeiramente bárbaras que já não é mais possível negar a sua existência. Somos pecadores, isto é, somos capazes de tudo o que de pior aconteceu na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stalin. De lá para cá a Europa mudou. A Rússia mudou. Tanta coisa mudou! No entanto, permanecem de pé duas perguntas: 1ª) O mundo pós-totalitário atual é melhor do ponto de vista moral do que aqueles que o precederam?  2ª) A humanidade, ou por outra, os causadores de tantas guerras e morticínios, aprenderam eles alguma coisa de verdadeiramente aproveitável de tudo o que andaram aprontando?

In: Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


DE LARVA A BORBOLETA

Quem já viu uma larva e acompanhou, embora por alto, todo o processo de desenvolvimento, cujo ponto final é a borboleta, possui uma bela analogia do que vem a ser o processo de crescimento moral de um ser humano.

Três fases distintas se podem observar aí:
1º - A fase biovegetativa, em que predominam as necessidades e atividades ligadas ao crescimento vegetativo.

2º - A fase da metamorfose, em que o desenvolvimento se fixa em torno de uma transformação radical de todo o ser.

3º - A fase final, de plenitude, análoga à da borboleta adulta.

O desenvolvimento moral da pessoa humana percorre um itinerário semelhante ao da borboleta. Nele as mesmas fases se podem notar, embora não percorram trajetórias tão lineares, definidas e sucessivas, como no caso da borboleta. A “distância” que um lepidóptero percorre desde o ovo até a fase adulta é totalmente insignificante comparada com a que a pessoa humana vence em sua trajetória evolutiva. No caso da borboleta todas as fases do processo de crescimento e transformação fazem parte do mesmo ciclo, que é o biológico. No entanto não se deve minimizar a distinção que separa a larva da borboleta. A diferença morfológica é apenas indicativa, pois a mudança mais radical e significativa ocorre no plano psicossocial. O modus vivendi de uma larva pouquíssimo tem em comum com o modo de vida de uma borboleta. Os hábitos são outros. A relação com o meio ambiente passou por uma transformação radical.

A relação da larva com a natureza é mais parasitária que outra coisa. A larva é individualista. Onde um punhado delas se junta para formar uma colônia, nenhuma delas “pensa” em outra coisa do que em proteger-se melhor. Larvas não se comunicam. Comem, descomem e dormem o resto do tempo. Seu mundo é o do consumo máximo. 

Já a borboleta tem um modo de ser totalmente diferente. Sua relação com a natureza nada tem de predatório. Alimenta-se da generosidade da flor, fecundando, polinizando-a em troca. Borboletas passam horas brincando ao sol, adejando ao sabor da brisa. A vida da borboleta é praticamente lazer total. É a borboleta que é fecunda; a larva é estéril. São as borboletas juntamente com as flores que dão coloridos a uma paisagem. O universo da borboleta é imensamente mais amplo do que o da larva. Ela não só vê mais, mas sabe olhar melhor e apreciar mais do que lhe é dado ver. Ela vê e aprecia o que mesmo a mais sofisticada das larvas desprezaria com soberano desdém. Se perguntássemos a uma larva: estás satisfeita? – Ela responderia: sim, porque estou com a barriga cheia! Uma borboleta já não responderia do mesmo modo. Diria: sim, porque me sinto leve e livre como o ar, a brisa e a nuvenzinha lá no céu.

In: “Consciência e Identidade Moral” – Livro de Padre José Marcos Bach, SJ.

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