quarta-feira, 30 de abril de 2014

O QUE NOS DIZ O TRABALHO

Às “feras do trabalho” a humanidade deve tudo o que é considerado “progresso”. Não fossem elas, os Stakanovs da Rússia de Stalin, o operário padrão do mundo capitalista, não teríamos nem prato, nem talher e nem o conforto de uma boa cama. Estas e muitas outras benesses da civilização moderna as devemos ao trabalho.
           
O trabalho é tudo, seja ele intelectual ou braçal. É o que nos pregam as ideologias trabalhistas do mundo inteiro. O trabalhismo ideológico define o trabalho como ocupação nobre, como atividade cujo exercício dignifica e enobrece a quem o executa. A medida do valor social do trabalho é o salário. Se um trabalhador ganha pouco é porque seu trabalho é de valor menor. Falta-lhe qualificação técnica ou profissional. A foice e o martelo são símbolos de um tipo de trabalho tecnicamente superado. O calo nas mãos, o suor do rosto deixaram de ter qualquer valor.
           
O que enobrece não é mais o trabalho em si, mas é o trabalho qualificado, o trabalho que exige inteligência e criatividade, o trabalho que só o homem é capaz de fazer melhor do que um robô.
           
Enquanto líderes sindicais insistem no direito que todo homem tem de ganhar o sustento através do trabalho, banqueiros e empresários do mundo inteiro estão empenhados em dispensar o trabalho humano e substituí-lo por um sistema automatizado de produção. O homem, a pessoa humana, só entra em cena e adquire importância no papel de consumidor. Alguém tem que absorver a produção e cobrir os seus custos. Este alguém é o consumidor, agente essencial do processo econômico todo.
           
Para substituir um operário serve um robô, um sistema automatizado. O que um robô não pode fazer é substituir um consumidor. Este ainda é imprescindível, sagrado e insubstituível. Em muitos países já existe uma legislação destinada à defesa dos direitos do consumidor. Boa parte da ideologia neoliberal tem por objetivo assegurar ao mercado um máximo de liberdade. Sua razão de ser é a livre circulação de mercadorias. Socialmente positivo e recomendável é tudo o que facilita a vida do consumidor. Séculos de fervor nacionalista são esquecidos. Apelar para sentimentos de patriotismo, para postulados éticos e para valores espirituais é o mesmo que pregar castidade a uma plateia de prostitutas.

O trabalho dignifica o homem?

Um trabalhador, funcionário ou empregado se pode colocar no olho da rua sem problemas maiores, pois as leis trabalhistas estão sendo “modernizadas”. Numa economia dominada pelo princípio neoliberal do Livre Mercado é absurdo falar em direitos adquiridos.
           
A natureza não se preocupa com o modo como animais e homens asseguram o seu próprio sustento. Seria ridículo dizer que um leão ganha a sua vida trabalhando. Dentre os nossos grandes “caçadores de fortunas” quantos podem ser classificados como trabalhadores? Especular e trabalhar não são a mesma coisa. A especulação financeira é o exato oposto do que sempre se entendeu por trabalho.
           
A atividade comercial merece o nome de trabalho? Será que classificar um professor como trabalhador em educação o eleva a uma categoria social mais nobre? É só o trabalho que dignifica uma pessoa?

Padre Marcos Bach

terça-feira, 22 de abril de 2014

A RESSURREIÇÃO DE JESUS

Os que viram Jesus expirar na cruz provavelmente saíram do Gólgota convencidos de que tinham assistido ao fim de um belo sonho. Devem ter sido bem poucos os discípulos de Jesus que ainda depositavam alguma fé em suas promessas. Os mais decepcionados, porém, não foram os discípulos, mas os inimigos de Jesus. Tiveram pouco tempo para se regozijar, pois apenas algumas horas depois do que parecia o desfecho final de uma empreitada triunfal recebeu dos guardas a notícia de que o túmulo se encontrava vazio.
           
Se os Evangelhos se restringissem ao túmulo vazio como provas de que Jesus não permanecia mais entre os mortos, a afirmação dos guardas poderia ser aceita, mas se ele apareceu vivo entre os vivos, a questão se coloca diferente. “Por que buscais entre os mortos ao que está vivo?” (Lc 24,5). “Ele não é Deus de mortos, mas de vivos” (Mt 22,32). Jesus associou a sua morte, voluntariamente assumida, à promessa solenemente repetida de ressuscitar (Lc 9,22). Jesus não só previu sua morte, mas até chegou a lhe fixar o tempo de duração: será morto, mas “ao terceiro dia ressuscitará”.

A Ressurreição de Jesus.

1) Após a sua morte Jesus ainda ficou com os seus durante 40 dias. A intenção era clara: além de prepará-los para viverem sem a sua presença física, as aparições tinham a finalidade de eliminar de sua fé qualquer dúvida referente à sua ressurreição dentre os mortos. “Irei adiante e preceder-vos-ei na Galileia” (Mc 14,28). Foi na Galileia dos gentios que Jesus iniciou sua vida pública e é lá que queria encerrá-la. Longe de Jerusalém e de tudo o que a Cidade Santa simbolizava no imaginário popular. No meio da natureza, à beira de um lago com o Monte Hermon, a montanha mais alta da região à vista, é ali que Jesus se sentia verdadeiramente em casa.

2) O apóstolo Paulo atribui à Ressurreição de Jesus um caráter primicial. “Ressurgindo dos mortos Jesus tornou-se o primogênito de uma nova humanidade. Ele, Cristo, é o primogênito dentre os mortos” (Cl 1,18).
           
A Ressurreição de Cristo é uma das verdades angulares da fé cristã. O apóstolo Paulo não se cansa de associar à ressurreição de Cristo a ressurreição de todos aqueles que nele depositaram a sua fé. O apóstolo Paulo chega a afirmar que se Cristo não ressurgiu dos mortos, também nós não vamos ressuscitar (I Cor 19,16). Chega a inverter o raciocínio ao afirmar: “Se os mortos não vão ressurgir, então Cristo também não ressuscitou” (I Cor 15,16).
           
Para o apóstolo Paulo Cristo seria o maior impostor que a história conheceu “se não tivesse ressuscitado dos mortos, pois toda a nossa fé seria vã no caso de ele não ter ressuscitado” (I Cor 15,17). Tão vã como a nossa fé seria a ressurreição de Cristo, caso o universo todo não tivesse ressuscitado com ele. Foi Santo Ambrósio que carimbou a expressão segundo a qual o universo inteiro deixou de ser o mesmo depois que Cristo ressuscitou. “In eo surrexit mundus”, diz Ambrósio.
           
A dimensão cósmica da ressurreição de Jesus, envolvendo por igual místicos e cientistas, poetas e historiadores, antropólogos e teólogos é tão fundamental, que qualquer concepção antropológica bairrista deve ser descartada, a limine, como defeituosa e viciada. Não é somente o teólogo que precisa tratar o cientista com mais respeito. É também o cientista que precisa de mais humildade. O “Cogito, ergo sum” de René Descartes, só expressa a metade de uma verdade maior. O místico se põe em combate com esta verdade maior através de oração. Pois é além das fronteiras determinadas pelo pensamento que o Logos Divino se encontra à espera da consciência do homem.

Padre Marcos Bach

sexta-feira, 18 de abril de 2014

                          MÍSTICA DA EUCARISTIA

                     “E como amou os seus, amou-os até o fim” (Jo 13,1).

Depois que Jesus Cristo lavou os pés dos seus discípulos, tomou o pão, partiu-o e deu-o para que fosse partilhado, dizendo: “Tomai e comei todos vós, este é o meu corpo que será entregue por vós”. “Do mesmo modo, no fim da Ceia, tomou o cálice com vinho em suas mãos e disse: Tomai e bebei todos vós, este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos em remissão dos pecados. Fazei isto para celebrar a minha memória”.

Pergunto: o que tem a ver estes gestos de Jesus com o dar uma hóstia branca na boca de uma pessoa? Não foi um gesto de irmanação de todos os presentes este partir e partilhar o pão e o vinho, tornando-os símbolos do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo, o “Pão Vivo descido do céu?”, sua Pessoa presente em “espírito e vida”?  “Fazei isto em minha memória”  não evoca postura de relacionamento, gestos de fraternidade, de participação e de amor?

Dar a hóstia na boca da pessoa: a) bem pode representar um gesto que evoca submissão e minoridade. É um gesto de quem se coloca acima de todos e todas e decreta o que é verdade, o que deve ser obedecido.

b) Quem o faz não se coloca de igual para igual como o fez Jesus lavando os pés de seus seguidores.

c) Quem assim procede não convida a quem pretende distribuir o “Pão Vivo descido do céu” para sentar-se ao redor de uma mesa para partilhar deste Pão.

Jesus partiu o pão e o distribuiu. Apenas deu-o na boca de Judas, o traidor.

- Receber o pão na boca é declarar incapacidade de distinguir quem é quem;

- É ser passivo sem a menor ideia do que representa ser participante de uma Comunidade Cristã;

- É trair Jesus e seu projeto de vida para todos e todas em abundância, conquistado pelas pessoas que atuam numa comunidade e se relacionam nela com total doação, desprendimento e amor!

Dar a hóstia na boca de alguém é submetê-lo a ser inferior, a receber tudo pronto e a não precisar fazer esforço em conjunto para conquistar os bens que nos esperam e nos fazem viver melhor.

Por que é tão dramática a falta de pão na mesa de alguém? É porque o pão nosso de cada dia em cima de nossas mesas alimenta também o nosso espírito.  A Eucaristia é plena e completa se incluir o pão nas nossas mesas!

Os primeiros cristãos se reuniam e tomavam as refeições em comum. Celebravam, desta forma, o partir e o partilhar do pão em memória de Jesus, a Eucaristia (Atos 2,42...). Será que o mesmo não podemos começar a fazer em nossas famílias, em nossas pequenas comunidades para nos lembrar da importância do alimento para nossa vida, para nossas almas, para nosso espírito? Numa época de inversão de valores, onde cultuamos o automóvel e a indústria de combustíveis em detrimento dos alimentos, não é oportuno lembrar o pão como alimento humano e espiritual indispensável?

Que o partir e o partilhar do Pão da Eucaristia nos lembre a falta de pão na mesa de muitos de nossos irmãos e irmãs e nos leve a sermos solidários com aqueles e aquelas que não dispõem do pão de cada dia! 

Padre Marcos Bach

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O CONCEITO DE DEUS ATRAVÉS DA HISTÓRIA

“Tudo o que disserdes a respeito de Deus será mais falso que verdadeiro”.

A palavra Deus vem do sânscrito, uma língua antiga da Índia. De Dyaus Pitar originaram-se os termos Deus. Zeus e a palavra patér, em grego e o termo latino pater.

Desde sua origem o conceito de Deus vem associado ao de pai e a tudo o que numa cultura eminentemente patriarcal vem associado à palavra pai: autoridade, poder, hegemonia social.

Zeus, o mitológico pai dos deuses gregos, podia permitir-se atitudes e comportamentos que um simples mortal não podia adotar sem ferir leis fundamentais da ordem moral. “Quod licet Jovi, non licet bovi”, dizia um ditado romano. O que Júpiter pode permitir-se não é o mesmo que é permitido a um boi.
           
O símbolo de Júpiter é o Touro, bos, em latim. Era o Touro Sagrado, o pai supremo dos deuses, o único Senhor isento da obrigação de se submeter a limitações de natureza moral. Os mais destacados dentre os deuses do panteon greco-romano são filhos bastardos de Júpiter.
           
Quem quer entender em toda a sua extensão o esforço moralizador do cristianismo não pode ignorar o fato de que ele é hoje menos fruto da consciência religiosa de homens do deserto do que herdeiro religioso da civilização greco-romana.

Deus pode o que os humanos não podem! Júpiter pode permitir-se liberdades morais que são vedadas aos homens!
           
A superioridade de Deus está em que Ele pode o que os homens não só não podem, mas é lhes proibido poder. Só Deus pode fazer milagres, diziam os adversários de Jesus. Ao que Jesus respondeu: “Tudo o que Eu fiz, vós também podeis fazer”!
           
Jesus não veio a mandado do Pai com a missão de circunscrever a liberdade dos homens, impondo-lhes novos limites. Seu conflito com a cúpula religiosa do seu povo tinha como eixo a relação dialética que opõe entre si a Lei e a Ordem Estabelecida dum lado, e do outro, a Liberdade dos Filhos de Deus.
           
Jesus entrou na história dos homens como aquele que tomou o partido dos homens em detrimento de conceitos religiosos mais propícios à manutenção de regimes teocráticos do que a expansão democrática da liberdade do próprio Deus. O Deus de Jesus não cabe em conceitos e imagens. Não é Senhor amarrado a papéis e funções, obrigado a submeter-se a determinismos e a leis que Ele mesmo criou.
           
A evolução do pensamento religioso em geral, depende em boa parte da consciência que a humanidade tiver de si própria. E esta, por sua vez, depende do conhecimento que tiverem do universo, da sua extensão como da sua complexidade. Até data recente o universo era aos olhos dos astrônomos o que a luneta de Galileu lhes permitia ver. Da noção de um universo acanhado de apenas 6.000 astros brotou um tipo de humildade que é o oposto não só da autêntica humildade cristã, mas também da modéstia típica de todo grande cientista. Werner Von Braun, numa conferência proferida em Frankfurt na Alemanha, a chamou de “a humildade do astronauta”.
           
Desde os tempos de Newton e Descartes até hoje, encontra-se em curso no campo teológico uma revolução de proporções “copernicanas”. Quem hoje fala de Deus como o fizeram Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino ou como fizeram Descartes, Leibniz e Newton, todos eles cristãos crentes, deveria revestir-se da mesma humildade e modéstia que professa todo grande cientista da atualidade. Em termos de conhecimento do cosmo e da estrutura da matéria estamos apenas tateando o chão à procura de um solo mais firme e confiável que aquele que as religiões nos oferecem. No terreno do conhecimento do universo estamos assistindo aos capítulos iniciais de uma história da qual o momento atual é parte de sua fase pré-histórica.

Padre Marcos Bach

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O DESTINO DO SER HUMANO

Para encontrar o seu verdadeiro destino, o homem tem que encontrar-se, antes de tudo, consigo mesmo. “Gnosei ton autón”, dizia um dos ilustres sábios da antiga Grécia. “Nosce te ipsum”, diziam os romanos.

O seu Eu interior é o único mundo que um ser humano é capaz de conhecer de verdade. Conhecer significa tornar-se um com outro. Por isso conhecer  e amar são sinônimos. Isto significa que o conhecimento é uma forma de amor e o amor uma forma de conhecimento. Sem amor não há conhecimento verdadeiro e não é possível amar o que não se conhece.
           
A raiz do malogro a que o Iluminismo racionalista conduziu a humanidade está na sua falta de amor. O fracasso do Humanismo secular ele o deve ao mesmo vício congênito. Razão é inteligência mais sentimento. Ela não se destina apenas à produção de pensamentos e de raciocínios lógicos. Os planos superiores da mente humana possuem a faculdade de produzir outro tipo de conhecimento essencialmente superior a tudo que os sentidos e a razão discursiva são capazes de elaborar. Por ora, esta esfera da mente do homem só é explorada por místicos e poetas. A eles a humanidade deve o que de melhor a mente do homem produziu ao longo da história. A mente humana é infinitamente mais do que uma simples máquina. Máquinas funcionam ou não. Funcionam bem quando produzem o que delas se espera.
           
A história da Europa passou a entrar numa nova fase quando teve início a luta entre fé e razão. O progresso científico teve que enfrentar, desde o início, a resistência tenaz do estamento religioso cristão. Às fogueiras e patíbulos da Santa Inquisição cabia a função macabra de garantir que a pureza da fé cristã não fosse manchada por hereges e heresiarcas. O progresso tecnológico era visto com grande suspeita porque aumentava o poder criador do homem às custas da onipotência do Criador. Todo este progresso material e cultural de que hoje nos orgulhamos foi alcançado, em boa parte, sem as bênçãos das Igrejas.
           
Um cientista como Heisenberg, Einstein, Capra e Bohm são homens de fé. Todos eles acreditam na capacidade do homem de transformar o ambiente em que vive. Não há entre os melhores deles um só ateu, pois todos acreditam na presença ativa de uma Inteligência Suprema. A esta fé se poderia acrescentar outro artigo a mais: o de que o universo, que Deus criou, é dinâmico. Foi feito para crescer e se expandir!
           
Sagrado é, sob o ponto de vista cristão, todo ser humano, sem nenhuma distinção. É isto que se deve entender quando se toca no assunto dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana. A Igreja católica está se empenhando em salvaguardar, juntamente com os demais Movimentos Humanitários, estes Direitos. No entanto, age de forma um bocado hipócrita, pois ela mesma, em seu foro interno, se esquece de praticar o que prega na televisão. Não só o cristianismo, mas as religiões em geral, só terão chances de participar do futuro da humanidade se nele entrarem dispostos a renunciar a todas as formas de desigualdade social. É no campo religioso, mais que em qualquer outro, que a desigualdade assume as mais virulentas formas de discriminação. Só não vê isto quem não quer.

Padre Marcos Bach