ARQUIVOS DIVERSOS

DO  “BOM SELVAGEM”  AO  “HOMEM NOÉTICO”                                                                                  

1. No século XVIII o filósofo francês Jean Jacques Rousseau surpreendeu o mundo intelectual do seu tempo com a Teoria do Bom Selvagem. Este “Bon Sauvage” era possível encontrá-lo na ilha de Bornéu ou na Nova Guiné, mas fora daí já era difícil topar com um deles. Perderia seu tempo quem o fosse procurar na Europa, pois a Europa era, na opinião de Rousseau, povoada por seres humanos de categoria inferior. A civilização em vez de elevar o homem, o depravou e corrompeu. O culto exagerado da razão levou o homem europeu a se divorciar, não só do seu ambiente natural, mas também e mais ainda, do seu lado animal.

Todo animal é governado por seus instintos e aprende rapidamente as lições essenciais da vida adulta. O homem é o animal que mais tempo leva até alcançar a idade adulta. O tempo que precisa para isso é o mesmo de que um cão dispõe para viver sua vida toda. O cavalinho mal nasceu e já sai correndo por aí. O patinho já pula para dentro da água na mesma hora em que saiu do ovo. Só o homem precisa de tempo tão dilatado para tornar-se adulto. Há quem afirma que só aos 30 anos de vida um ser humano atinge a plena maturidade biológica.

2. O “Bom Selvagem” de Rousseau, bem como o europeu civilizado da época de Rousseau, morria cedo e por isso dispunha de pouco tempo para saborear as delícias de vida adulta. A idade média de um indivíduo adulto era de no máximo 40 anos. Tinha pouco tempo para se comportar como adulto.

A palavra climatização é usada para descrever métodos destinados a apressar o amadurecimento de uma fruta. No campo pedagógico usamos técnica semelhante para apressar a transformação de um adolescente em pessoa adulta. Exigimos dele que se comporte como adulto movidos pela crença ilusória de que “querer é poder”. Treinamos o recruta meses a fio, mas achamos que a passagem da adolescência para a fase adulta da vida pode ser realizada por decretos. Não existe passe mágico ou medida provisória capaz de abreviar o tempo que um ser humano necessita para entrar no gozo pleno de suas faculdades.

Hoje a idade média de pessoas do primeiro mundo gira em torno de setenta anos. A vida adulta destas pessoas é de sessenta anos no caso de um nonagenário. O resultado deste acréscimo de longevidade deveria aparecer no campo social sob a forma de organismos sociais mais adultos. Mas não é isto que acontece. Não somos mais antropófagos! Não nos banqueteamos mais com a carne de nossos prisioneiros de guerra, é verdade, mas o que aconteceu nos Campos de Concentração nazistas e soviéticos é mil vezes pior do que tudo o que de selvagem atribuímos aos índios americanos.

Será mesmo que a civilização estragou a humanidade como quer Jean Jacques Rousseau? Que civilização é esta que tornou os homens piores e mais insensíveis do que eram antes? A palavra civilização está associada ao conceito de cidadania. Cidadão, cives, em latim, serve para identificar pessoas que vivem em cidade. O seu oposto é o homem que vive no campo. Da palavra campo vem o termo camponês, que pelo fato de viver no campo, é considerado rústico e menos desenvolvido que os “civilizados” moradores de uma cidade. O aparecimento de grandes centros urbanos é recente. Mesmo no auge da sua prosperidade, Roma não contava com mais do que um milhão de moradores. Todo o Império Romano não tinha mais que cinquenta milhões de habitantes. O número de cidadãos romanos não ultrapassava, no tempo de Cristo, a casa dos duzentos mil. A urbanização do convívio social é, portanto, fenômeno recente. Só um sociólogo mal informado não percebe que ainda não sabemos como viver juntos.

3. De acordo com a opinião de Jean Jacques Rousseau, o que levou o homem civilizado a se corromper, foi a sua perda de contato com a natureza. Deixou de cultivar o seu lado instintivo movido pela presunção de que podia despedir-se da sua animalidade conferindo à razão um papel que os demais membros da biosfera costumam confiar ao instinto. Comparado com a sabedoria do instinto, as luzes da razão humana mais se parecem com lampejos de fogo fátuo do que com luminárias dignas de confiança.

Na época de Rousseau ainda existiam florestas virgens, intatas e povoadas de espécies de animais hoje extintas. O que restou da natureza daqueles tempos? É simplismo puro imaginar que o retorno à natureza ainda é possível. Quem mora em cidade contrai vícios e hábitos que tornam difícil uma readaptação à vida campestre. De mais a mais, o problema não é a cidade em si. Não se pode esquecer que o processo de urbanização faz parte do próprio processo de desenvolvimento integral da humanidade. A desumanização da cidade não acontece porque muita gente foi morar no mesmo lugar. Em outras palavras: o responsável pelos problemas de segurança e de transporte que afligem os moradores da maioria de nossas cidades de porte médio ou grande não é o fato de um número muito grande de pessoas morarem juntas, mas o fato social responsável por esta situação é a sua falta de preparo psicológico e ético para o convívio em ambiente urbano.

O homem do campo é cioso da sua privaticidade. Não quer ninguém por perto. Lugar de estranho é a estrada. A maioria dos moradores de nossas cidades vieram do campo e sua cabeça ainda funciona como a dos seus avós. As nossas cidades são híbridas, mestiços culturais: seus moradores vivem com os pés na cidade e com a cabeça na roça.

A palavra urbanização é empregada como sinônimo de boa educação, bons modos. Ao passo que o termo rusticidade é usado para classificar um tipo de comportamento em tudo oposto a tudo o que se costuma entender por urbanidade.

Os últimos a se converterem ao cristianismo foram os “pagani”, os que moravam fora das cidades. É mais fácil fundar uma Comunidade Cristã com pessoas que já aprenderam a viver em harmonia umas com as outras. Foi em cidades como Jerusalém, Roma e Antioquia que surgiram as primeiras Comunidades Cristãs de que temos notícia.

A mensagem proposta por Cristo sempre se deu melhor em ambiente urbano do que no campo. A razão é simples: na cidade é mais fácil reunir pessoas do que na roça. As pessoas do campo costumam ser mais individualistas e pouco propensas a compartilhar sua privacidade com outros. Por tudo isso é mais fácil cristianizar uma cidade.

O que não existe neste país é uma pastoral da cidade. Pastoral de terra, isso temos. O clero que atua nas cidades procede quase que exclusivamente do campo. Temos um ministério da cidade, mas é administrado por um ministro que não sabe sequer o que fazer com o dinheiro de que pode dispor. Quem pode, aproveita o fim de semana e as férias para fugir da cidade em que vive. Agimos como se a cidade não fizesse parte do que entendemos por natureza. O oposto da natureza é o artificial. Artificial é tudo o que deve sua origem à mão do homem. Mas o fato de viverem num mundo todo ele feito pelo homem, não impede a maioria dos moradores de uma cidade de preferir o natural ao artificial.

Rousseau não foi o último a prestigiar o natural em detrimento do artificial. A Moral católica continua condenando como contrários à moral todos os métodos contraceptivos artificiais admitindo como natural somente o da abstinência.

4. A urbanização da sociedade humana é um fenômeno recente, porém irreversível. Presta mau serviço à humanidade quem sonha com uma espécie de retorno ao campo como queria o truculento e tirânico Pol Pot do Camboja.

A cidade veio para ficar. É preciso conformar-se com a perspectiva de passar o melhor da sua vida num ambiente social todo ele feito pela mão do homem. Foi com a intenção de participar mais de perto do processo evolutivo da humanidade que Deus, em Pessoa, tomou a decisão de assumir a natureza humana. Na Pessoa de Jesus Deus se tornou Homem, conferindo, deste modo, à natureza humana um novo status. Incluindo a divinização da natureza do Homem como termo final de todo o processo evolutivo, Deus em Pessoa se tornou o Alter Ego da humanidade toda.

O traço essencial da fé em Cristo consiste em crer no amor de Deus. Aceitar os ensinamentos de Jesus, também é menos essencial. Mais importante é conformar a sua vida toda com o que Jesus ensinou. Passados dois mil anos ainda são poucos os que podem dizer com o apóstolo Paulo: “Para mim viver é Cristo e morrer é ganho” (Fl 1,21). Como é extensa a lista das passagens em que o apóstolo Paulo fala de Cristo! Para ele Cristo, o Crucificado e Ressuscitado dos mortos, é a chave de interpretação tanto do homem e de sua história, como do cosmos todo. Não é mais permitido fazer ciência ignorando a Cristo. Não se pode mais fazer teologia sem Cristo. O Cristo em questão não é o Filho de Deus, mas o Filho do Homem. Na Pessoa de Cristo é a humanidade toda que se encontra presente. Podemos aceitar esta nossa inserção em Cristo, mas podemos também cometer o erro de ignorá-la. Infelizmente é difícil encontrar um cristão disposto a morrer para si mesmo para que “Cristo possa viver nele” (Gl 2,20). Qual o cristão que pode dizer que “já não vive mais para si mesmo”? (II Cor 5,15).

5. O objetivo destas reflexões críticas é demonstrar que tanto a humanidade atual como o cristianismo de hoje não representam mais que um primeiro passo num processo que pode estender-se por mais alguns milhões de anos.

A humanidade atual possui um nível de consciência por demais primitivo e rudimentar para merecer o título de sapiens. Tem toda a razão os que acusam o homem civilizado de hoje de ser incapaz de conviver pacificamente com seus semelhantes e em harmonia com a natureza, por priorizar o espírito de competição em detrimento do espírito de solidariedade. Está sendo motivo de crescente queixa o modo desastrado como tratamos a Mãe Natureza. A biosfera é uma grande mesa em torno da qual estão sentados milhões de outros seres vivos de cuja vida dependemos muito mais que da sua carne. É absurdamente falsa a crença de que a vida deles é diferente da nossa e que podemos desligar o destino da humanidade do destino da biosfera.

O homem e seu planeta estão submetidos a um destino comum. Maltratando a Mãe Terra o homem maltrata a si mesmo. A extinção de uma espécie biológica não é uma fatalidade, é sempre o fruto de um pecado pelo qual a humanidade toda é responsável. “A natureza toda geme à espera de ser libertada pelo homem” (Rm 8,21). Antigamente a atividade agrícola fazia parte da consciência religiosa de uma pessoa tanto na China como na Europa. Hoje o seu lugar foi ocupado pelo agronegócio. Engana-se redondamente quem vê em tudo isso um sinal de progresso. A mercantilização da atividade agrícola representa um retrocesso cultural de graves proporções, pois o que pode ser comprado e vendido não pode constar na lista dos valores significativos e inalienáveis da vida humana. O crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) só pode ser identificado como sinal de progresso por quem já perdeu de vista a dignidade da pessoa humana.

Houve época em que se acreditava que mudando as estruturas sociais este fato iria contribuir decisivamente para transformar as pessoas. A crença de que estruturas sociais mais justas iriam produzir, ipso facto, governantes e cidadãos mais justos naufragou solenemente. No período final de sua vida o próprio Marx ficou decepcionado com o que escrevera. Tivesse tido mais tempo para fazê-lo, teria reescrito tudo de novo.

Em que aspectos fundamentais é preciso corrigir e completar o pensamento social de Marx? Um dos erros de Marx consistiu em definir o relacionamento social humano em termos de serviço. Atribuindo ao binômio senhor-servo um caráter paradigmático, acabou navegando nas mesmas águas que seus colegas do mundo capitalista. Não é por acaso que sua obra principal passou à história com o título de “O Capital”.

Também no mundo socialista o capital possui direitos e privilégios a que o trabalho se deve submeter. Na briga entre o capital e o trabalho “quem paga o pato” é o trabalhador.

6. Tanto o capitalismo como o socialismo representam ideologias condenadas ao desaparecimento. Uma sociedade em que um pai de família necessita da ajuda do governo para sustentar sua família é tão inaceitável, sob todos os aspectos, quanto aquela outra em que ninguém se preocupa com o que acontece no interior das famílias.

Um novo modelo social: é disto que precisamos. Uma sociedade é formada por pessoas. A manada é composta de indivíduos. Há uma diferença bem grande entre ser pessoa e apenas indivíduo. Indivíduos a gente pode colocar em fila indiana. Indivíduos a gente pode armar e lançar num campo de batalha. Com pessoas tudo isto já não é mais possível. Indivíduos podem ser usados, manipulados e manobrados, enganados e ludibriados. Quem pretende participar de uma Comunidade de Pessoas em lugar de se contentar com ser o pastor de um bando de ovelhas, tem que repensar por completo o seu conceito de ordem social. Num bando bem organizado não há crime pior do que o de sair da fila. O pecado maior que uma ovelha pode cometer é pretender pensar com a própria cabeça.

Pessoa é o indivíduo que aprendeu a pensar com a própria cabeça. A “beber água do próprio poço”, diria Gustavo Gutierrez. Pessoa é alguém que já não precisa mais procurar fora de si o que necessita para ser feliz. O Deus de cujo amor depende sua felicidade, ele o encontra dentro de si. Trai-se a si mesmo todo aquele que procura fora de si o que já possui dentro de si. O grão de trigo sabe como e quando germinar. Um ser humano malbarata a sua inteligência procurando fora o que poderia encontrar em si.

A ninguém Deus confiou a tarefa de falar a seus irmãos do alto de uma cátedra. No Evangelho de Mateus 23,2-12 lemos o seguinte: “Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo o que vos disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem, mas não fazem. Amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los. Praticam todas as suas ações com o fim de serem vistos pelos homens. Com efeito, usam largos filactérios e longas franjas. Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos primeiros assentos nas sinagogas, de receber as saudações nas praças públicas e de que os homens os chamem de Rabi. Quanto a vós, não permitais que vos chamem de rabi, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém na terra chameis de Pai, pois um só é o vosso Pai, o que está nos céus. Nem permitais que vos chamem guias, pois um só é o vosso guia, Cristo. Antes, o maior entre vós é aquele que vos serve. Aquele que se exaltar será humilhado e aquele que se humilhar será exaltado”. O grande problema com que nós, católicos, nos defrontamos neste momento, é o regime de governo da nossa Igreja. Dos que se dizem nossos pastores se pode dizer praticamente o mesmo que Jesus disse a respeito dos escribas e fariseus da sua época.

7. Quando indivíduos se unem para formar uma sociedade, fazem-no com base num código de comportamentos predeterminados. Na hora de distribuir direitos e responsabilidades a preocupação mais se volta para o campo dos direitos, cabendo a cada indivíduo a parcela mais significativa de direitos. Numa sociedade submetida a um regime totalitário, os direitos individuais ficam reduzidos a pouco menos que nada. Por conta do indivíduo restam apenas responsabilidades e com elas a obrigação de obedecer em tudo e cegamente a seus líderes. Onde pessoas se unem para constituir um corpo social, a preocupação maior se volta para os indivíduos, enquanto portadores de direitos naturais básicos, todos eles oriundos da sua condição de ser racional, autoconsciente e livre. Numa sociedade de pessoas verdadeiramente livres não há espaço para lutas e conflitos. Tampouco há nela lugar para classes.

O que levou os mentores da Revolução Francesa a pegar em armas foi o escandaloso grau de desigualdade social reinante no país. Atualmente estamos por atingir novamente níveis intoleráveis de desigualdade social. É evidente que a solução deste problema não é a guilhotina, nem é o pelotão de fuzilamento quem a pode oferecer. Tanto a Revolução Francesa como a Revolução Russa demonstraram que não é substituindo um regime violento por outro ainda mais truculento que se faz uma revolução de verdade.

O mundo em que vivemos é perfeito. É o que nos atestam tanto cientistas como pessoas que passaram pela “Experiência de Quase Morte” (EQM) ou Morte Clínica. Livros como o do americano Kenneth Ring “Rumo ao Ponto Ômega” – Ed Rocco – tratam deste assunto com base em depoimentos de pessoas que tiveram morte clínica, mas acabaram retornando à vida. Nem todos voltaram de lá impressionados com a beleza indescritível e a perfeição do mundo que tinham tido a ventura de ver. A imperfeição só existe lá onde o amor divino é impedido de penetrar. Por isso pode-se afirmar que o “pecado mortal” por excelência consiste em trocar o “primado da caridade” pelas tímidas seguranças de um regime disciplinar.

8. Uma comunidade humana ideal é aquela em que:
 - cada um pode ser ele mesmo, sem a necessidade de se submeter a modelos ou a copiar imagens estereotipadas;
-  consequentemente, lhe é permitido ser tão diferente dos demais quanto lhe permitem as estruturas do corpo social do qual é parte constitutiva.

Evidentemente ainda não atingimos um estágio evolutivo que nos permita um grau muito elaborado de originalidade e de expansão mais ampla dos planos superiores e mais personalizados da nossa autoconsciência. Não temos o direito de excluir os retardatários do futuro da nossa espécie, mas também não estamos obrigados a emparelhar o nosso passo com o deles.

Numa sociedade organizada segundo princípios totalitários cabe aos donos de poder determinar os limites dentro dos quais cada indivíduo pode exercer a sua liberdade. Numa sociedade liberal este direito cabe a cada indivíduo em particular. Numa sociedade mais afinada com as tendências do processo evolutivo esta tarefa caberá nem a um nem a outro dos dois contendores, mas a um personagem novo. Este personagem utópico chama-se Comunidade!

A comunidade é um organismo social constituído por pessoas. Isto é, por indivíduos que entraram na posse plena de suas potencialidades. O psicólogo suíço Carl Gustav Jung os define como indivíduos que moram em si mesmos, ocupando todos os espaços habitáveis do seu interior. O psicólogo italiano Roberto Assagioli os define como indivíduos plenamente identificados com o seu Eu Superior.

Pessoa é, portanto, um indivíduo capaz de se governar a si mesmo. Não tendo mais necessidade de se identificar com o que faz, pode identificar-se com o que é. Só depende de si mesmo. O único poder perante o qual se curva é a voz de sua própria consciência.

No estágio atual da evolução, nós, humanos, temos a tendência de nos identificar mais com sub-personalidades, isto é, com aspectos laterais e funcionais da nossa personalidade total. Somos seres em formação, portanto, incompletos, isso sim, mas não imperfeitos. O que nos falta não representa um defeito. Não somos deficientes, como o soldado que perdeu um braço ou uma perna em combate. O ideal seria ter consciência plena do que ainda falta para sermos completos. Pessoas que passaram pelo crivo de uma “Experiência de Quase Morte” são praticamente unânimes em confessar: “Agora sei o que é importante!”. “Dar e receber amor: isso é importante”, dizem muitos deles. “Desapegar-se das coisas desta vida, isso é importante”. “Usar as coisas, mas sem se deixar escravizar por elas, isso é importante”. As coisas verdadeiramente dignas de serem ambicionadas se encontram num outro mundo.

A pobreza do rico não está em ter muito, mas em contentar-se com tão pouco. Condenável não é o desejo como tal, mas o apego. O que torna mau um desejo é o fato de ele abraçar como absoluto o que é relativo. O mal não está em querer sempre mais. Inácio de Loyola descreve o verdadeiro discípulo do Divino Mestre como alguém que sempre deseja mais, não se contentando com o que já alcançou. Existe, por isso, uma diferença fundamental entre um mosteiro budista e uma comunidade jesuítica. Lá onde o tempo é obrigado a parar, não há espaço para um genuíno discípulo de Inácio de Loyola.

9. O que determina a natureza de uma comunidade e a distingue das demais formas de organização social é a qualidade dos membros que a constituem. São pessoas livres, tão livres quanto é possível sê-lo. Esta liberdade não é usada como pretexto para se isolar dos demais, mas serve para criar formas cada vez mais ricas e generosas de relacionamento interpessoal. São pessoas felizes e satisfeitas que não sentem a menor inveja ao ver que algum companheiro de jornada corre mais que elas, pois descobriram que a sua comunidade toda avança, cresce e se eleva através do progresso individual de cada um dos seus membros. Possuem uma concepção holística da vida em comunidade, diríamos hoje, porque veem o Todo presente em cada manifestação particular. São otimistas, pois sua fé inclui um voto sistemático de confiança na bondade inata da natureza humana. Acreditam firmemente que um ser humano entregue a si mesmo e cercado de amor acabará infalivelmente sendo melhor do que era.

As energias que atuam no interior da consciência de cada indivíduo são positivas e o impelem a ser sempre mais o que já é. A natureza evolutiva dessas energias transparece claramente do relato de pessoas que passaram por uma “Experiência de Quase Morte”. A condição pecadora da natureza humana quase nunca é mencionada nestes relatos. É verdade que as pessoas, a quem devemos estes depoimentos, não eram pessoas más, membros de alguma Confraria do Crime Organizado. Muitas delas, no entanto, confessam que, antes da sua (EQM) quase nunca se preocuparam com valores espirituais. Viviam para o trabalho e para a família. O acidente que quase lhes tirou a vida serviu para despertá-las da sua letargia. Nenhuma delas se converteu por ter visto a morte de perto. Não foi a morte ou a ameaça de morte que as assustou e levou a encarar a vida com outros olhos.

Na presença de maravilhosos “seres de luz” ninguém se sente culpado, mas todos se sentem amados, irrestritamente acolhidos por um Amor totalmente diferente de tudo o que até então tinham experimentado. “Agora sei o que é amor”! São poucos os depoimentos em que esta expressão não aparecesse.

No seio de uma autêntica comunidade humana as leis e regras são poucas e se vão tornando cada vez mais desnecessárias à medida que cresce e aumenta o amor com que todos se amam uns aos outros! “Nisto conhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros” (Jo 15,12). O que distingue uma comunidade das demais formas de organização social é o amor que circula em seu interior.

Da sua origem biológica todo ser humano carrega em sua psique a tendência de se juntar a outros indivíduos com o intuito de aumentar, deste modo, suas chances de sobrevivência biológica. Um segundo passo consiste em transformar o ambiente natural, dando com este expediente origem ao que chamamos de cultura.

A passagem do Homo Habilis para o Homo Faber deu-se quando este último começou a fabricar meios técnicos destinados a prolongar suas habilidades. O sucessor do Homo Faber é o Homo Sapiens, o representante atual do gênero humano. Seu lado forte é a inteligência racional que o impele à procura de conhecimento, desde o conhecimento empírico até o mais refinado conhecimento filosófico. Mas o Homo Sapiens está sendo deslocado do seu pedestal por um novo representante mais categorizado da nossa espécie. John White chama-o de Homo Noeticus. O Homem Noético se distingue do Homo Sapiens pela amplitude cósmica de sua autoconsciência. White descreve o seu Homo Noeticus da seguinte forma:

- “Homo Noeticus” é o nome que dou à forma emergente da humanidade. Noético é um termo que significa o estudo da consciência, e essa atividade é uma característica primária dos membros dessa nova estirpe. Devido à sua consciência mais profunda e à sua autocompreensão, eles não permitem que formas, controles e instituições da sociedade impostas pela tradição, sejam barreiras para seu desenvolvimento pleno. Sua psicologia alterada se baseia na expressão do sentimento, e não na sua supressão. A motivação é cooperativa e amorosa, não competitiva e agressiva. Sua lógica é de níveis múltiplos, integrada, simultânea, e não linear, sequencial, sim ou não. Suas habilidades psíquicas são utilizadas para finalidades benevolentes e éticas, nunca para fins imorais ou prejudiciais. Os modos convencionais da sociedade não os satisfazem. A busca de novas maneiras de viver e de novas instituições os interessa. Eles buscam uma nova cultura baseada numa nova consciência, uma cultura cujas instituições se baseiem no amor e na sabedoria” (Kennet Ring – Rumo ao Ponto Omega – Ed. Rocco, p.253).

Teilhard de Chardin dá a este novo representante da humanidade o nome de Homem Crístico, baseado na premissa de que Cristo foi não só o primogênito, o primeiro membro desta Nova Estirpe, mas o seu protótipo mais perfeito e avalista do projeto que visa a sua realização plena, tanto no contexto das realidades históricas quanto nas realidades da pós-história. O sucesso deste novo salto quântico no campo do desenvolvimento espiritual da humanidade não é apenas hipotético ou meramente provável. Quem o assegura é o próprio Criador: “Não vos deixarei órfãos, mas estarei convosco até o fim dos tempos” (Jo 14,18).

A chave que abre a porta de acesso a este futuro humano é a fé em Jesus Cristo. “Tudo é possível a quem crê em Cristo Jesus” (Mc 9,32). O poder de Deus não tem limites. “A Deus tudo é possível” (Mc 10,27). A fé em Cristo torna alguém tão poderoso quanto o próprio Deus. Houve nos primórdios do cristianismo época em que os discípulos de Cristo depunham tal fé no poder de Deus. Hoje, a maioria dos que ainda acreditam em Deus, prefere depositar sua fé mais em papas e em santos do que na Pessoa de Cristo.

10. O núcleo gerador de uma autêntica fé em Cristo é a consciência de ser amado por Deus com um Amor que excede todos os limites imagináveis.

- “Cristo nos amou quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,8). O apóstolo Paulo foi atingido pela graça de Deus quando se encontrava empenhado em destruir a obra de Cristo. Pior e mais perigosa do que a sua maldade é a ignorância dos homens. Ignorância aqui é sinônimo de inconsciência, é desconhecimento de sua verdadeira natureza.

- “Anima humana naturaliter christiana est”, dizia Tertuliano, um dos primeiros “Pais da Igreja”. Se é verdade que “a alma humana é cristã por natureza” não faz sentido tratar como se fossem opostos irreconciliáveis a graça e a natureza. O homem não é apenas um animal mais evoluído. Menos ainda é um “Anjo Decaído”. O que ele é, então? Um “anjo” em formação? Mais do que isto: é um “Deus” em formação. Jesus nos convida a sermos perfeitos: “Sede perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5,48). Ser perfeito como Deus é muito mais do que tornar-se parecido com Ele. Envolve uma identificação com Deus tão íntima que tudo o que nos atinge, atinge diretamente a Deus (Cf. Mt 25,40).

O filho possui em comum com o pai a mesma natureza. Se somos verdadeiramente filhos de Deus, então nada mais lógico do que a conclusão de que participamos com Ele da mesma natureza. Somos chamados para sermos “participantes da santidade de Deus” (Carta aos Hebreus 12,10). Presta, por isso, um péssimo serviço à causa de Cristo, todo aquele pseudo-mestre espiritual que insiste em tratar as suas “ovelhas” como um bando de pecadores incorrigíveis.

Christiane, recognosce dignitatem tuam”, dizia Tertuliano. É isso mesmo: está na hora de despertar nos cristãos um senso de dignidade que séculos de moralismo doentio levaram à beira da extinção. Da presença do “Ser de Luz” ninguém saiu humilhado ou com a sua auto-estima diminuída. Arrependido, sim, mas não derrotado. Desestruturado, mas não esquizofrênico ou antissocial. Pelo contrário: muitos deles retornaram com a consciência de que ainda tinham uma missão a cumprir, aqui e agora.

11. O bom cristão que ainda frequenta uma igreja, que ainda se contenta com ser católico praticante, não retorna de uma “Experiência de Quase Morte” com a convicção de que, para ser digno de entrar um dia a fazer parte deste mundo maravilhoso, que lhe foi dado entrever e vislumbrar, basta continuar a viver a vida como a vivera até então.

Poucos são os sobreviventes de uma “Experiência de Quase Morte” com a mesma consciência de antes. A visão do mundo luminoso que tiveram, transformou-os, proporcionando-lhes uma consciência nova, mais penetrante e crítica, mais ampla e livre que a anterior. Sofrem uma desestruturação do ego que os leva a se desidentificar com a autoimagem de antes, dando menos importância ao que outros pensam deles. Em outras palavras: tornam-se mais honestos para consigo mesmos, menos propensos a cultivar uma autoimagem falseada e inautêntica, baseada no parecer de outros. Parte significativa da Luz em que se viram mergulhados, penetrou neles e continua presente de tal forma que o processo de desestruturação e reestruturação da sua consciência continua pelo resto de suas vidas.

O bom cristão é fiel à tradição e conservador. Lembra uma abelha e seu organismo social preferido que é a colmeia. Há milhões de anos que nossa amiga Ápis Melífera constrói sua casa do mesmo modo, executa as mesmas tarefas, obedece ao mesmo tipo de ordem social.

O bom cristão pertence a uma “Igreja” que se considera eterna. Não é por acaso que a Igreja católica escolheu Roma como capital. Já os imperadores romanos encaravam Roma como a Cidade Eterna. Os papas nada mais fizeram do que colocar o pé nas pegadas dos senhores da Roma Imperial.

O trabalho das abelhas obedece a regras fixas. Além disso, não é o mesmo para todas. Há um estágio em que a abelhinha recém saída do alvéolo cuida da limpeza da casa. O estágio seguinte a transforma de operária em soldado, encarregado de vigiar a entrada e os arredores da colmeia. Só depois, ela se dedica à colheita de néctar e à fabricação da cera e do mel. Quando morre uma abelha, outra toma o seu lugar. Abelhas são intercambiáveis. Numa colmeia ninguém é insubstituível. Morre a rainha, cria-se outra.

Uma sociedade humana em que é fácil encontrar substitutos para os que morrem é primitiva, tão primitiva quanto uma colmeia. Um cristão que pode ser substituído com facilidade por outro, igualmente bom, pertence à mesma categoria que o “Bom Selvagem” de Rousseau. Indivíduos podem ser numerados, somados e quantificados. Pessoas, ao contrário,  jamais cabem em estatísticas. Ser pessoa significa não ter quem possa substituí-lo.

12. O número de cristãos autênticos deve ser pequeno, pois é difícil encontrar numa Igreja um cristão disposto a trocar sua fé herdada dos antepassados por outra menos tradicional. Quem leva a sério o aviso de Jesus: “Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á”? (Lc 9,24). Cristão autêntico, digno de ser chamado assim, é alguém que morreu para si e já não vive mais em função de interesses próprios. “Só não morre ao morrer quem já morreu em vida”. Este é um ditado que os monges da Idade Média costumavam repetir.

Cristão autêntico é aquele que já morreu antes, pois só pode ressuscitar quem já morreu. O ressuscitado é um morto que voltou à vida. Não é, no entanto, um simples redivivo, já que a nova vida que o acolhe em seu seio é radicalmente diferente da anterior. Muitos daqueles que experimentaram mais de perto uma forma completamente diferente de vida não conseguiram mais viver como o tinham feito antes. Passaram por um processo de desestruturação psicológica semelhante a do apóstolo Paulo às portas de Damasco. Não conseguem mais encarar a vida como antes. Já tiveram oportunidade de perceber o quanto era insensato o modo de vida que tinham levado antes. Descobriram que é possível viver a mesma vida de maneira muito mais inteligente, muito mais sensata. Embora não tenham saído da (EQM) mais religiosos, mais piedosos ou melhores que antes, saíram dela mais certos de que são amados por Deus assim como são, independentemente do que tiverem feito e aprontado em vida. Em vez de se verem julgados, saíram do encontro com o Supremo Juiz iluminados e dotados de um discernimento que os torna capazes de substituir a confissão por uma auto-avaliação e a direção espiritual por um encontro pessoal mais profundo com a sua própria dimensão divina.
           
Só Deus pode ressuscitar mortos. Só Cristo ressuscitou dos mortos por iniciativa própria, por ser o Filho de Deus. Ninguém consegue sair de um buraco ou de um atoleiro puxando-se pelos próprios cabelos. Nisto até o ateu Sigmund Freud foi honesto ao reconhecer que não é o analista, mas o paciente, o autor do processo de cura psicanalítico.

Saúde e doença são apenas o resultado de um modo infeliz de organizar o campo das relações humanas. Freud achava que saudável é o indivíduo que “está em dia com as exigências do ambiente sociocultural em que vive”. Jung era de opinião que saudável é o indivíduo que “está de bem consigo mesmo”. São João da Cruz, antes deles, deixou claro que só merece ser considerada saudável a pessoa que descobriu o “Deus que vive em seu íntimo mais íntimo”. O homem é um ser espiritual destinado a compartilhar com o seu Criador a mesma vida e o mesmo grau de intimidade com que um filho participa da vida de seu pai.

13. O cristão autêntico não representa a última palavra. Seu cristianismo ainda carece de um complemento, que é a perfeição. “Sede perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5,48). O cristão perfeito só pode ser definido como tal com base nos mesmos critérios usados para definir a perfeição de Deus. Como em Deus tudo é indescritível, também a perfeição cristã se furta a qualquer tentativa de descrição. A ideia de que um monge ou uma freira encarnam o ideal da perfeição cristã resulta de um equívoco. Quem o cometeu não foram teólogos, mas juristas. O “estado de perfeição” não pode ser identificado com um determinado modo de viver a sua fé em Cristo. Não pode ser associado a regras ou a um modo peculiar de se vestir.

O mundo criado por Deus é perfeito, mas esta perfeição permanece oculta e só se manifesta sob a roupagem da imperfeição. O místico cristão possui a capacidade de perceber o lado perfeito da realidade, mesmo quando este lado coexiste com o lado imperfeito das coisas. Para o perfeccionista a imperfeição é um mal. Não sabe como enquadrá-la em sua “Weltanschaung”, em sua cosmovisão.

Um místico cristão, como Teilhard de Chardin, não se escandaliza com a presença de tanta imperfeição no mundo. Para ele a imperfeição faz parte de um esboço de um mundo a caminho de se tornar perfeito. A perfeição representa um ponto final absoluto, além do qual não é possível ir. O que ainda pode ser mais perfeito é porque é imperfeito. O cristão perfeito não é alguém que não pode ser mais perfeito do que já é. Uma larva é perfeita quando possui todas as qualidades necessárias à sua condição de boa larva. Mas falta-lhe muito para chegar a ser, um dia, a borboleta que traz dentro de si. Assim como a larva já traz em si a borboleta que irá ser um dia, do mesmo modo cada ser humano traz em seu íntimo mais íntimo uma “centelha divina”, como a denomina o filósofo Platão.

14. Muito mais misterioso do que tudo o que deixamos para trás é o que se encontra à nossa frente. São eons e mais eons, tempo incrivelmente longo de que podemos dispor para completar o que iniciamos, seja nesta vida mortal, seja na outra. A eternidade pode ser concebida como unidade compacta, mas também se pode concebê-la como composta de unidades menores. Neste caso faria sentido falar em eternidades (no plural). O futuro que nos aguarda não é uniforme, é antes policromo. Vamos passar (se assim o quisermos) por muitas “eternidades”, crescentemente mais amplas e abrangentes. Passaremos ainda por muitas metamorfoses, antes de atingir, a estatura de Cristo, o primeiro ser humano plenamente evoluído. A história da humanidade não vai acabar em extinção da espécie. É isto que Jesus nos veio assegurar, como ninguém até hoje o fez.

O convite de Jesus deixa claro que é muito tímido tudo o que conseguimos encarnar em nossas descrições de cristão ideal. Tudo o que juntamos para definir o “estado de perfeição”, chega a ser ridículo, quando comparado com o esplendor da majestade de Deus tal como no-lo descrevem místicos como Teresa de Ávila. Até mesmo algumas das descrições feitas por pessoas que tiveram morte clínica falam do deslumbramento que sentiram no decurso da sua passagem por esta experiência. Pessoas que já prelibaram e pregustaram em vida as delícias que as aguardam no além, trocam o seu costumeiro modo de vida por outro, radicalmente diferente. Para que isso aconteça, não é necessário passar por uma “Experiência de Quase Morte”. O apóstolo Paulo não esteve perto de morrer quando Cristo lhe apareceu às portas de Damasco. Inácio de Loyola só mudou de vida depois que viu encerrada a sua carreira militar e seu sonho de glórias mundanas.

Há mais que uma forma de “matar” uma pessoa e há muitas maneiras de morrer. Seja qual for o tipo de morte que vier a atingi-lo, sem ela não há conversão, metamorfose ou metanoia. É de Lama Govinda a afirmação de que “verdadeiramente sábio é aquele que se põe a destruir sistematicamente o que construiu”.

A perfeição cristã não consiste em ser perfeito, mas antes em ser perfectível. O cristão conservador nega-se a destruir o que já foi construído. É como a crisálida que considera o seu casulo como lar definitivo. Uma crisálida que não sabe o que é ser borboleta e teima em permanecer sempre no mesmo estado, jamais estará em condições de sair do casulo. É ela que deve sair, ninguém irá tirá-la de lá. Bem nascida é a criança que saiu do seio da mãe por conta própria. Mãe e parteira nada tinham a fazer do que assistir.

Para muita gente a “Experiência de Quase Morte” teve características de um novo nascimento. Mas existem outras maneiras de nascer de novo. O Eu exterior, ao qual atribuímos o mérito de tudo o que de bom julgamos ter realizado em nossa vida, impede-nos de tomar consciência de que, além dele, possuímos um outro Eu, o Eu interior ou Eu  superior. Por isso, este Eu exterior ou ego deve “morrer” até não restar mais um só dos muitos desejos que costuma alimentar e sustentar. No Antigo Oriente era esta a ocupação mais nobre a que um sábio podia dedicar sua vida.

Nós, ocidentais, temos muita dificuldade em admitir que meditar é uma ocupação mais nobre e socialmente mais útil do que administrar uma empresa ou realizar obras de caridade. A quantidade enorme de tempo e de energia que gastamos servindo os interesses de um falso eu,  prejudica-nos muito mais do que o “dolce far niente” do napolitano ou o gostoso “papo pro ar” do caboclo brasileiro. Trabalho é necessário, mas o bom mesmo é não precisar trabalhar. Acusamos o índio de preguiçoso por não morrer de amores pelo trabalho. Os otários de carteirinha somos, no entanto, nós, que só conhecemos um tipo de progresso, o que nos assegura o trabalho. Enchemos nossa conta bancária com o fruto do suor de nossos rostos, abarrotamos nossos silos com o fruto de nossas lavouras, e depois definimos tudo isso como crescimento e prova de progresso.

15. Só pode haver progresso onde o que é velho e gasto é condenado a morrer. Pois não se pode avançar sem sair do lugar. O medo do novo aumenta na medida em que fica sempre mais difícil antever o que o futuro esconde em seu bojo. Este medo cresce em proporção geométrica ao número de passos não dados. Ficar parado à espera de dias melhores e de ventos mais propícios não é tática recomendável, quando se trata de projetar o futuro da humanidade ou de uma instituição humana qualquer. Tudo o que para e deixa de fluir acaba apodrecendo.

O fluxo da vida é inseparável da circulação de energias em movimento. Tudo o que deixa de fluir, acaba morrendo. No dia em que o sangue deixar de circular pelo corpo, este deixa de ser o que era para se transformar em cadáver.

Num organismo social em que as ideias não podem fluir livremente, está a caminho de se transformar em cadáver. Mas é exatamente isto que nos é dado ver nos dias de hoje. Faz parte do Mega Festival de mentiras da atualidade induzir-nos a crer que nunca houve tanta liberdade de pensamento e de expressão como hoje. O que um tele-espectador pode ver é determinado não por ele, “pobre diabo”, mas por homens a serviço do bussines, do negócio. E este só conhece uma única cor, o verde dos dólares.

O mundo católico teve a oportunidade de assistir à agonia de um papa e à ascensão de um outro. Meio mundo festejou a escolha do novo papa. Houve lágrimas, lamentando a morte do seu antecessor. Provavelmente foram poucos os que lamentaram mais a escolha do novo papa do que a morte do anterior. Terão sido, com certeza, muito poucos os que se alegraram mais com a morte do papa anterior do que com a escolha do novo papa. De resto, o papa que os cardeais escolheram não é tão novo assim, pois tem 78 anos e, a rigor,  já deveria estar aposentado há mais tempo. Uma das características mais intrigantes da Igreja católica oficial é sua preferência pelo velho em detrimento do que é jovem. Comparado com o que o liga ao futuro, um bispo, cardeal ou papa da Igreja católica, o seu compromisso com o passado é tamanho que não lhe dá sequer tempo e espaço para pensar no assunto.

O que é ameaçador, sob todos os aspectos, é a incapacidade da humanidade atual de enfrentar o seu próprio futuro com a leveza com que Davi enfrentou Golias. O que deu a vitória a Davi foi a sua agilidade e sua perícia no manejo da funda. Foi inteligente, pois percebeu que o único lugar vulnerável no corpo de Golias era a testa. O lado fraco da nossa civilização, como do nosso mundo globalizado, não é a testa, mas é o coração. É um mundo sem coração e sem amor. Não vejo exagero na afirmação de que o problema de todos os problemas do nosso tempo é a nossa incapacidade de dar e de receber amor. O “amor perfeito” só o cultivamos em nossos jardins, fora daí ele é tão raro, que psicólogos da estatura de Erich Fromm, Rollo May e Viktor E. Frankl chegaram a constatar que uma “bela amizade” é um feito raro e difícil de se encontrar. “Um Grande Amor só acontece duas ou três vezes em cada século”. A afirmação partiu de um ateu chamado Albert Camus.

Se um Grande Amor e uma bela amizade são raros, então deve ser pequeno o número de cristãos autênticos, pois o critério de avaliação de uma comunidade cristã “é o amor com que seus membros se amam uns aos outros” (Jo 15,17). No terreno da afetividade e do amor é infinito o campo aberto ao desenvolvimento espiritual da humanidade. Neste campo pouco ou quase nada foi feito e o que está sendo feito é por demais tímido para responder à demanda crescente de Amor. Pequenos amores, que nascem e morrem antes do anoitecer do primeiro dia de vida, temos muitos. Mas se amigo, amigo mesmo, é alguém “que está disposto a dar a sua vida pelos amigos” (Jo 15,13), quem de nós pode dizer que é amigo e que possui um “milhão de amigos”?

Quem quer ser amigo como Cristo o foi, deve renunciar a toda e qualquer pretensão de poder. Quem se considera revestido do direito de impor sua vontade a de outros, pode ser alvo de pomposas manifestações populares, mas não está mais em condições de ser amigo. Para poder ser amigo de alguém é preciso dar-lhe o mesmo amor com que me amo a mim mesmo. Se não for capaz de respeitar suas ideias e seus sentimentos como gostaria que fosse respeitado o que eu penso e sinto, então falta algo de essencial à minha capacidade de fazer amigos. E se não sei fazer amigos, é falso o cristianismo que professo. Na hora de repartir o bolo se pode ver quem é amigo ou não: se vou ser eu quem distribui as fatias, a fatia maior irá sempre para o meu melhor amigo. Uma das características que distingue o amor erótico do amor de amizade está em que este último gera um tipo de igualdade que o primeiro desconhece. Quando os apóstolos se meteram a discutir a questão do primado, procurando saber “quem deles era o maior” (Mc 9,34), Jesus lhes avisa: “O maior dentre vós é aquele que se tiver feito vosso servo” (Mt 23,11).

16. Será que é possível prever o futuro que nos aguarda? Como praticar uma futurologia com um mínimo de respaldo científico? Antes de mais nada, temos que descartar-nos da ideia ingênua de que o futuro vem ao nosso encontro trazendo em seu bojo a solução de todos os problemas que criamos ao longo dos milênios da nossa história. Não é o futuro que está vindo ao nosso encontro. Não é o tempo que vem ao encontro do homem, mas é este que se dirige ao encontro dele. Para ser exato, deveríamos dizer que são muitos os tempos com que podemos defrontar-nos futuramente. Nenhum deles é certo, todos eles são apenas prováveis. Se hoje já vivemos num mundo em que as certezas são poucas, porque vamos embalar nossa esperança com certezas que, às mais das vezes, nada mais são do que possibilidades?

É muito pouco o que podemos considerar como certo, verdadeiramente certo. Pessoalmente cheguei ao ponto de restringir a minha fé em Cristo à certeza inabalável do Amor Absoluto de Deus. Crer em Cristo é, para mim, colocar sua vida, seu amor, seu tempo e sua eternidade à disposição de Deus, baseado na Palavra de Jesus: “O Pai vos Ama” (Jo 16,27). Toda fé em Cristo acaba sendo um gigantesco voto de confiança da alma humana em seu Criador e Pai. É nesta extraordinária confiança no Amor Divino que podemos sintetizar tudo o que Jesus definiu como o Único Necessário. Quem tem a Deus como Pai, não precisa mais se preocupar com nada. Preocupa-se com o dia de amanhã aquele que não encontra tempo para se ocupar com o futuro que o Pai Celeste reservou a todos os que O amam e n’Ele depositam sua confiança.

O futuro deixa de ser opaco e imprevisível na medida em que permitirmos que ao menos uma parte dele penetre em nossas vidas já aqui e agora. E isto acontece toda vez que deslocamos o centro da nossa atenção consciente do tempo para a eternidade. São Luíz Gonzaga quando tinha que tomar uma decisão, perguntava-se a si mesmo: “O que tem a ver o que pretendo fazer com a eternidade?”. Em outras palavras: “Só o que merece acompanhar-nos em nossa Grande Viagem rumo ao Infinito, merece ser feito”. A medida que determina o valor do tempo escatológico é a eternidade e não a tradição. Na história do povo de Israel surgia sempre a figura de um profeta toda vez que o povo se esquecia de sua vocação messiânica. Quando o povo começava a depositar mais fé em seus aliados políticos do que em seu Deus; mais fé em seus projetos políticos e em suas tradições do que no Amor do seu Deus, aparecia o profeta para lembrá-lo de quem tem a Deus como Senhor e Pai não necessita de aliados poderosos, nem de grande prosperidade temporal para continuar a merecer um espaço e um lugar seguro na História.

Tudo o que podemos organizar para garantir-nos um lugar seguro na História é: começar a fazer aqui e agora o que gostaríamos de completar, um dia, na continuação da vida após a morte.

Artigo de Pe. José Marcos Bach, SJ.

 


                       MEU  PRESÍDIO DE  SEGURANÇA  MÍNIMA

                                                                                       Pe. José Marcos Bach, SJ

1.      “Precisamos de mais presídios, pois o número de criminosos e bandidos cresce a cada dia”!

É esta para muitos a maneira mais inteligente de “neutralizar” a ação do crime organizado.

“Para quem o crime é apenas um caso de polícia”, a solução será também um caso de polícia! Mais cadeias, mais policiais, armas mais sofisticadas, mais repressão e menos tolerância: não são estes os ingredientes preferidos da “farmacopeia” político-social dos homens que são pagos para assegurar a todos, também ao sem-terra e sem-teto, um mínimo de segurança?

Queremos presídios de segurança máxima para quem? Para os que vivem lá dentro ou para os que vivem fora deles?

A palavra presídio vem do latim praesidium, que significa proteção. Um presídio é, pois, um lugar protegido e que oferece proteção. É por isso a palavra mais apropriada a uma instituição social destinada à reeducação de cidadãos transviados, e que terminaram por se perder nos descaminhos da criminalidade.

Palavras como cadeia, casa de correção e prisão traem o espírito que reina em seu interior: repressão e perda de liberdade. Nelas vegetam pessoas que um dia optaram pela marginalidade social.

O conceito que ronda nossos presídios é o de que neles se encontra o que nossa sociedade conseguiu produzir de pior. Lá, entre altos muros de proteção, vivem amontoados como gado e tratados como animais perigosos seres humanos que a sociedade dos bem comportados juízes e promotores relegou à condição de lixo social.

Absolvemos pecadores pela mão do padre, reciclamos o lixo que empesta a periferia de nossas cidades, mas nada fazemos para devolver a consciência de sua dignidade a um criminoso!

Não fazemos diferença entre os que já descobriram que o crime não compensa e os que ainda acreditam que é fora da lei que se encontra o único caminho alternativo para aqueles que a lei deixou ao desamparo. Magistrados em greve continuam percebendo salários astronômicos, ao passo que um pai de família desempregado não tem quem lhe possa ou queira prestar ajuda.

Sacralizamos o privilégio, o chamado direito adquirido, enfim: “Nossa justiça é uma piada, nosso sistema penitenciário uma vergonha e nosso Poder Judiciário um Estado dentro do Estado”. Quem acha que esta situação é normal, consequência natural de um regime democrático ou da condição pecadora do homem, pode estar se enganando a si mesmo, tentando justificar a sua  própria omissão e inércia social.

Os que acham que a melhor política é “deixar como está para ver como fica”, e que o tempo irá se encarregar da solução deste tipo de problema, na realidade outra coisa não são do que inocentes úteis e aliados  naturais do crime organizado. Crime é como câncer ou como sarna: cresce e se alastra sempre mais à medida que encontra pela frente espaço suficientemente desprotegido para sua expansão.

O crime representa uma forma de guerra dos fora da lei contra os homens da lei. Juízes, promotores, desembargadores e advogados  dum lado, e do outro os Elias Maluco da vida! Também neste terreno funciona a lei do mais forte: quem tem mais dinheiro leva vantagem, porque pode contratar os melhores advogados!

A “Ordem dos Advogados”  não condena a quem defende criminosos. Taxa, porém, de racista o advogado que se nega a defender um preto.

Reformar o Sistema Judiciário do nosso país é tarefa para suicidas potenciais. O Poder Judiciário constituiu-se em poder autônomo e presta serviço a quem paga mais. A reforma do Poder Judiciário é uma utopia. De pouco adianta converter um punhado de “Lalaus” bem pagos, quando a carniça que os alimenta continua apodrecendo por toda a parte.

2. Uma sociedade não se transforma nem evolui sem a colaboração criativa dos seus membros. Em todo organismo social existe a figura do “guarda”, a pessoa que tem por ofício o dever de impedir que se perturbe a ordem estabelecida.

Por ordem se entende um conjunto de regras e convenções ditadas pela necessidade de evitar o caos e a desordem. Acontece que todo organismo passa por transformações. Assim sendo, o que é considerado desordem numa época da vida, pode muito bem deixar de sê-lo em época posterior. Daí vem a necessidade de refazer o código de leis em vigor, de tempos em tempos. A respeito do Código Penal Brasileiro pode-se dizer que uma revisão é mais do que urgente. Como em outras partes do mundo, também aqui a prisão surgiu como meio de proteger a sociedade contra a ação de criminosos. A cadeia é um símbolo do desejo universal de “justiça”.

Queremos justiça e respiramos aliviados quando um assassino é condenado a trinta anos de prisão! Castigar o crime, castigando o criminoso, faz parte do nosso conceito de justiça e de ordem social. O castigo é necessário como alternativa à impunidade. Uma sociedade que não pune exemplarmente a prática do crime não é moderna e mais justa do que os que optaram pela tolerância zero. O crime não gera direitos e não merece tratamento privilegiado. Não existe na atitude criminosa nada que mereça respeito. É isto que tantos defensores dos direitos humanos ignoram ou desconsideram em seus discursos filantrópicos.

O criminoso, no entanto, continua sendo uma pessoa humana, e como tal merece respeito. Caçar bandido como se caça rato é tão criminoso quanto matar um refém.

O bandido irrecuperável só existe na fantasia de xerifes implacáveis. O que importa a um xerife é acabar com o império do crime, e o meio mais eficiente para tal fim é acabar com os bandidos.

A pena de morte foi considerada durante milênios como a resposta mais adequada a quem cometeu crime de morte. São poucas as pessoas que em seu inconsciente não aprovam a pena de morte para certos crimes. Até o papa (João Paulo II) não excluiu por completo a pena de morte do seu conceito de justiça.

Tirar a vida de alguém é sempre um exagero jurídico-social. Não é matando que se promove o respeito à vida! A existência de corredores de morte é tão deprimente e inaceitável quanto a existência de pelotões de fuzilamento. Há muitas outras maneiras de infringir a lei do direito à vida do que andar por aí dando tiros.  Crime de “lesa sociedade” cometem todos aqueles que têm emprego garantido, salário de rei e não se preocupam nem um pouco com a situação desesperadora do pai de família que acabou de perder o emprego.

Os piores crimes contra a ordem social são cometidos por pessoas que perderam a vergonha. Um milionário americano morreu pobre, porque tinha chegado à convicção de que era “uma vergonha morrer rico”!

A má distribuição dos bens materiais é, sem dúvida, criminosa e motivo de escândalo. Muito pior e injusta me parece ser a má distribuição da justiça.

Todo nosso aparelho jurídico visa proteger direitos que há muito deveriam ter sido substituídos por outros. Nossos advogados ganham bom dinheiro defendendo privilégios. Nosso sistema fundiário é intrinsecamente injusto porque limita o direito à propriedade em benefício do direito de propriedade. Quem tem pode dormir tranquilo porque a lei o protege. Quem não tem nem o mínimo necessário para o sustento, não tem este direito.

3. Nosso sistema penitenciário é desumano e indigno de um país civilizado. Indigno, mais que tudo, de um país que se diz cristão.

Se “visitar os órfãos em sua tribulação” faz parte da religião pura e sem mácula, como afirma o apóstolo São Tiago (Tiago 1,27), então ter um coração compassivo em relação a seus irmãos presos deve sê-lo mais ainda.

Só pode ser suspeita uma fé religiosa que se especializa em procissões, romarias e manifestações de massa, esquecendo por completo a triste sorte dos presos em seus malcheirosos cortiços.

A ação de criminosos numa sociedade só se torna problemática quando pouco ou nada se faz para reintegrar no organismo social os que se tinham  colocado no lado oposto ao Bem Comum.

O que não podemos admitir e continuar a tolerar é o modo omisso como o assunto justiça social e segurança pública é tratado pelos ocupantes da “Praça dos Três Poderes”! O Poder Público é relapso neste terreno e não honra suas responsabilidades. O setor religioso é igualmente relapso na medida em que seus ministros pensam muito mais em suas igrejas do que na triste sina dos que a vida jogou na miséria. “Pelo fruto se conhece a árvore”, diz um provérbio.

Mais que as manifestações carismáticas são as obras de misericórdia que representam o fruto mais nobre da fé cristã. Tem carradas de razão o apóstolo São Tiago quando adverte seus leitores de que é preciso sair da condição de simples ouvinte da Palavra de Deus para o de praticante: “Tornai-vos praticantes da Palavra e não simples ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tiago 1,22).

A virtude da misericórdia não tem por objetivo abolir a miséria, mas transformá-la. Se é possível transformar um monte de estrume num belo canteiro de flores, então deve ser possível transformar miséria em misericórdia!

Não é necessário acabar com o deserto como queriam Marx e companhia. Basta povoá-lo com um número suficiente de oásis.

O projeto “Presídio de Segurança Mínima” é por ora apenas um ato de fé. Uma utopia, dirão uns, um delírio romântico, dirão outros. Não há policial que não sorria ao ouvir falar no assunto. “Se nossos Presídios de Segurança Máxima" são o que são, o que se poderá esperar de um “Presídio de Segurança Mínima”? Se apertado ao máximo, o nó não consegue segurar, o que se pode esperar de um nó afrouxado ao máximo? Pois no campo jurídico vigora a crença de que segurança só é viável onde existe controle. E para nossos defensores da ordem, controle é sinônimo de repressão. Para eles repressão e ordem são correlatas: uma não pode existir sem a outra.

Partindo da perspectiva oposta, cheguei à convicção de que o modo como combatemos o crime é o responsável maior pela proliferação do crime organizado. Pior que o crime organizado é a hipocrisia organizada, a que damos o pomposo nome de “Política de Segurança Nacional”. Basta entrar numa prisão qualquer para sentir o quanto a atmosfera que lá se respira é degradante.

Já rezei missa em presídio e sei do quanto é hipócrita falar de amor num ambiente onde a vida de um ser humano vale menos que a de um cachorro!

Uma prisão é um lugar onde palavras como amor, misericórdia e liberdade soam mais como insulto do que como estímulo para o bem.

Numa prisão quem se salva é o diretor, que passa as noites longe dela. Tudo o mais é perda, do ponto de vista político-social.

A luta contra o crime, como os demais capítulos da luta contra o mal, exige inteligência e um nível de consciência muito maior do que tudo o que estamos investindo nesta área.

Se fôssemos botar na cadeia todos os que merecem estar lá, o país todo acabaria se transformando em “cadeia nacional”. Não é exatamente isto que estamos presenciando na televisão? O crime do colarinho branco, o crime organizado dentro da lei, comparado com o qual, o crime organizado fora da lei é “café pequeno”, e tem muito mais chances de sair-se bem melhor do que as tímidas tentativas de marginais e de foragidos da justiça.

Minha intenção não é difamar a Ordem dos Advogados, embora considere seus membros mais propensos ao papel de “advogado do diabo” do que ao de Robin Hood.

Ser contra, seja lá do que for, é sempre mais cômodo do que colocar-se a favor de uma proposta nova. Colocar-se a favor do que já conta com as bênçãos da tradição é mais seguro do que aventurar-se por terras e mares desconhecidos!

Nada assusta mais um covarde do que o desconhecido. Em termos de covardia temos de tudo: desde o papa até o sacristão. O medo ameaça tomar conta da nossa liberdade. Assista a um noticiário de TV para não sair dali convencido de que estamos indo de mal a pior em quase todas as áreas da vida social. Não sei quem é que vai tirar proveito do medo apocalíptico que ameaça tomar conta da opinião pública. Sei, porém, que todo aquele que se serve do medo para construir sobre ele sua segurança, é um doente mental.

O espaço social em que vivemos é tão patológico e patogênico quanto o ambiente de nossas prisões. Somos todos prisioneiros do medo. E só muito poucos dos que batem palmas à passagem do papa têm a consciência de que estão batendo palmas a um fóssil vivo. Os que aplaudiam Stalin e Hitler permanecem vivos, só mudaram o alvo dos seus aplausos. É grande o número de católicos que não conseguem sequer imaginar uma Igreja sem um papa infalível.

4. Assim como o campo da educação, também o da segurança social não pode ficar restrito à competência do poder público. Há também nesta área espaço para a iniciativa privada. Também aí é permitido terceirizar certos serviços.

Uma ONG que tenha este propósito poderia ocupar muito bem parte do espaço que de momento é reserva exclusiva do poder público. Não se trata de tirar parte do fardo dos ombros do Estado e confiá-lo a particulares. Como no terreno da educação, também aqui o Estado continua plenamente responsável e não pode confiar a empreiteiras sua parcela de responsabilidade social.

A Organização Não Governamental em questão, não pode ser uma empresa destinada a dar lucro a seus acionistas. O ideal seria concebê-la como “Irmandade Beneficente” e seus membros formariam uma espécie de confraria. Dotada de um máximo de autonomia, tanto em relação ao Estado quanto a instituições religiosas, fica livre para a tarefa de criar um sistema penitenciário verdadeiramente digno de um povo civilizado.
            Por isso:
1)      Quem vai construir nosso Presídio de Segurança Mínima é o governo. E é ele que vai financiar a sua manutenção.
2)      Quem vai planejar tanto a construção quanto a sua manutenção é a Irmandade.
Ambos os quesitos são fundamentais. Nada impede uma explosão de boa vontade, unindo o setor público e a iniciativa privada numa área tão explosiva quanto a da segurança social. Salvo engano, a Irmandade preparada e disposta a assumir o papel que lhe reservei, ainda não existe. Só existe, por ora, como sonho utópico, como coisa de filósofo.

Os noticiários da TV fazem de tudo para que continuemos a ter mais medo que esperança. O mais despretensioso psicólogo de fundo de quintal sabe que o medo nada ensina a ninguém e que é péssimo conselheiro.

Onde podemos encontrar: 1) Um presídio que não deva sua existência ao medo? 2) Um presídio onde é mínima a preocupação  com a segurança?

5. Quem vai engrossar um dia as fileiras dos que se dispõem a aderir ao nosso projeto? É provável que também aqui venha a calhar a palavra de Jesus: “Muitos são os convidados, mas poucos são os eleitos".

Nossa Irmandade ainda não nasceu. O primeiro membro dela pode muito bem ser um desembargador aposentado, um bispo emérito, um policial farto de caçar bandido. Há por aí tanta gente desempregada ou mal empregada que gostaria de dedicar, ao menos parte do seu tempo e do seu talento, a uma tarefa útil e bem planejada.

Criminosos também os temos em abundância. Nem todos são irrecuperáveis. Dos ladrões que foram crucificados com Jesus, a metade se converteu antes de morrer.

A passagem por uma prisão não é apenas um castigo. É mais que tudo uma oportunidade de melhorar de vida, e uma providente sinecura. É só saber aproveitá-la.

É evidente que o resultado positivo da experiência não depende só do apenado. O ambiente que o cerca e a atmosfera que respira num cárcere são tão decisivos quanto a colaboração inteligente dos seus inquilinos.

A nossa “Irmandade São Dimas” (vamos chamá-la assim) é constituída por pessoas que dispõem de tempo de lazer suficiente para tarefas como estender a mão a quem acabou de levar um tombo.

Quem nunca tem tempo para nada a não ser para correr por aí como barata tonta, não deve aplaudir o nosso projeto, menos ainda pensar em aderir à nossa Irmandade. Quem não tem tempo para perder e não quer perder tempo, não deve apresentar-se como candidato à nossa ONG. Quem quer aprender a amar como Jesus ama, deve ser senhor do seu tempo. Deve saber perder tempo em lugar de atropelá-lo. Deve imitar a serenidade com que a mãe espera o nascimento do filho.

O membro ideal de nossa Irmandade é a pessoa tranquila que sabe esperar. Quem acha que Paulo se converteu às portas de Damasco, engana-se: a conversão de Paulo foi um processo lento e sofrido que ele não conseguiu completar em vida.

Não creio que o atarefado homem de negócios seja o candidato ideal a membro da nossa Irmandade. Candidato ideal me parece ser aquele aposentado que dispõe de muito tempo, mas não sabe o que fazer com ele.

O aposentado que se sente no direito de cruzar os braços e as pernas e passar assim o resto da sua vida, não serve para candidato à nossa ONG. Não serve a legião dos que preferem passar seu tempo “tocando viola de papo p’ra o ar”. É preciso excluir da nossa ONG todo fariseu, isto é, todos aqueles que se consideram justos, incapazes de cometer um crime. Quem diz: “eu não seria capaz de cometer um crime tão hediondo”, não deve pensar em pôr o pé em nosso Presídio de Segurança Mínima. Toda tentativa de traçar uma linha divisória clara entre justos e pecadores, entre a lei e o crime, acaba por gerar mais hipocrisia do que justiça. Entre os que devem ser excluídos do nosso projeto encontram-se todos os que se dizem representantes de um poder superior.

Em nosso Presídio, como em nossa Irmandade, não há ninguém revestido de poderes que não lhe foram conferidos por voto majoritário dos seus membros. Um mínimo de chefia e um máximo de cooperação: é este o nosso ideal de governo.

Um máximo de autonomia e de autogoverno, coexistindo lado a lado com um máximo de autorresponsabilidade: é este o nosso maior desafio e será também este o segredo do nosso sucesso, caso viermos a ter um dia esta satisfação.

6. Como vamos organizar nosso presídio?

Já que o nosso é um Presídio de Segurança Mínima, não podemos tomar como exemplo e modelo o que se pode encontrar por aí com o nome de Presídio de Segurança Máxima.

Por que segurança mínima? Não é perigoso baixar a guarda a tal ponto?

A resposta exige um pouco mais de inteligência do que a que se exige de um agente penitenciário da velha guarda. Você quer segurança, dirá ele, então reforce as medidas de segurança máxima, coloque um guarda em cada esquina e um ferrolho com cadeado em tudo o que é porta e janela.

O nosso ponto de vista filosófico é outro. Partimos da premissa de que a segurança é como sombra: depende do objeto que a lança.

O motorista que se preocupa com a sua segurança faz bem. O motorista que se esquece de que a segurança dos outros é no mínimo tão importante quanto a sua, merece que lhe apreendam a carteira. Pode haver motorista mais perigoso do que aquele que vê perigo em toda a parte e que se sente continuamente ameaçado de todos os lados? Pode haver motorista mais perigoso do que aquele que banca o macaco e brinca ao volante? E o que pensar do motorista que conhece de cor os seus direitos, mas já não sabe onde foi parar a lista das suas responsabilidades?

O medo é sempre mau conselheiro. Mas pior que ele é a embriaguez. O álcool e a droga produzem um estado de inconsciência letárgico totalmente incompatível com o que entendemos por segurança. A segurança nas estradas  obedece aos mesmos critérios que a segurança nos presídios. Em vez de nos preocuparmos tanto com medidas de segurança, poderíamos pensar mais nos critérios que habilitam uma pessoa a conviver com outras e a encontrar prazer até no menor gesto de estima e amor.

Nos recintos do nosso Presídio de Segurança Mínima o mais importante não é a segurança, mas a qualidade de vida que proporciona a seus “inquilinos”. Queremos uma casa, isto sim, e não um cárcere ou uma casa de detenção. Queremos uma casa da qual ninguém pensa em fugir. Uma casa onde ninguém “pisa no calo do outro”, onde ninguém é melhor do que os outros. Onde direitos e responsabilidades são repartidos e compartilhados ao máximo, tanto quanto a nossa pobre condição humana em seu estágio evolutivo atual o permite.
            O que o cristianismo até agora fez no sentido de promover o primado do amor é muito pouco. A plena expansão do Reino de Deus permite muito mais ousadia e espaço muito mais amplo para os que preferem apostar na liberdade e investir no amor do que cercar-se de leis e de se rodear de guardas bem armados.

O amor desarma. É da sua natureza dar a vida e não tirá-la ou ameaçá-la. Deus só se faz presente onde o amor prevalece sobre o medo. Ditadores e déspotas têm medo de que alguém venha diminuir a sua autoridade. Onde encontrar um presídio ou posto policial onde o respeito à autoridade não é mais sagrado do que o direito de não ser tratado a pontapés?

A segurança é como a sombra: mais se persegue, mas ela foge. Queremos um presídio, porque sabemos que são necessários, ao menos por ora. Gostaríamos que fossem os lugares mais seguros do mundo e que seus “inquilinos” fossem as pessoas mais felizes do planeta.

Para nós um presídio é, acima de tudo, um lugar seguro e bem protegido. Nele as pessoas podem passar a noite sem sobressaltos. Tudo isto é tão possível quanto outra utopia qualquer.

O futuro da nossa espécie como do nosso planeta está intimamente ligado à nossa capacidade de aposentar paradigmas passados e de atrever-nos a “navegar por mares nunca dantes navegados”, como diria Camões.

O tipo de presídio que estou apresentando muito se parece com um mosteiro. A diferença que separa um do outro é esta: num mosteiro existem classes e diferenças hierárquicas que em hipótese alguma queremos contrabandear para o interior do nosso presídio. Queremos segurança, não resta dúvida, mas recusamo-nos a trocar segurança por liberdade. Até o mais humilde dos inquilinos do nosso presídio tem consciência da sua liberdade, e que o fato de ser presidiário não afeta a sua condição de sujeito de tudo o que acontece com ele. O presídio em que vive não é um lugar que o constrange, diminui e aprisiona. É, quem sabe, talvez o primeiro lugar em que lhe foi permitido ser gente, “dono de seu nariz”.

7. É possível que nosso presídio venha a ser a primeira escola em que se ensina que ser livre não significa ser dono da sua vontade e fazer o que se quer.

A vontade de que podemos dispor é basicamente a mesma e é uma só. Os princípios da ordem moral são os mesmos para todos. Não existe uma ética para homens e outra para mulheres. Uma comunidade humana é como um corpo no qual cada célula apresenta a mesma estrutura fundamental está sujeita às mesmas necessidades. Por isso conhecer-se a si é o mesmo que conhecer todos os demais.

A vontade humana é livre porque pode escolher. Quanto maior a lista de meios disponíveis, tanto maior o leque de opções possíveis. Onde não há espaço para escolhas múltiplas e onde não é permitido substituir uma escolha por outra melhor, é a liberdade que paga a conta.

Liberdade é em sua essência nada mais que autorresponsabilidade o será na medida em que brotar do íntimo de uma consciência devidamente esclarecida.

Esclarecer a sua consciência é tarefa que o Criador deixou a cargo de cada um. Aprender é uma tarefa que não pode ser terceirizada. O essencial da vida temos que aprendê-lo por conta própria. O amor, como o perdão, é lição que ninguém nos pode ensinar. Assim como ninguém nos pode ensinar a gostar de chocolate, ninguém nos pode ensinar a gostar de uma pessoa. Platão andou certo quando disse que aprender é lembrar de novo o que tínhamos esquecido. No entrevero feroz que é a vida numa grande cidade, é fácil esquecer lições tão simples como estas: “Não faças a um outro o que não queres que te façam a ti”; “Cada qual termina por colher o que semeou.

Em nossa escola não queremos tanto a atuação de mestres brilhantes, quanto a de alunos geniais. Nossa intenção não é dar emprego a quem quer que seja. Não são os mestres que qualificam uma escola, mas os alunos. Importante do ponto de vista pedagógico não é tanto o que se ensina numa escola, mas o que os alunos nela aprendem e levam consigo para a vida.

Mau professor é aquele que bitola o pensamento de seus alunos. Igualmente mau é o professor que não manifesta opinião. A tarefa de um bom educador é tão difícil porque envolve duas atitudes aparentemente antagônicas: respeito profundo pela liberdade de pensamento, e compromisso com um determinado tipo de ordem cultural.

O professor que se diz neutro é, via de regra, o mesmo que confere à ignorância os mesmos direitos que ao saber.

A palavra disciplina vem do latim e possui a mesma raiz que a palavra aprender. Existe disciplina onde se aprende. Manter a disciplina num acampamento é uma coisa, e mantê-la numa escola ou numa família é outra, bem diferente.
            
O objeto da disciplina escolar é o aprendizado. O melhor aluno  não é o que mais se parece com um robô, mas aquele que aprende mais. “Bom soldado não é aquele que marcha melhor que os outros e que mata mais inimigos que eles”. Depositamos na disciplina militar uma fé que ela não merece. Fora do campo de batalha ela deixa de ter qualquer sentido.

É um contrassenso total aumentar a própria segurança às custas da segurança alheia. Outro absurdo metafísico consiste em proceder como se o inimigo número um da ordem pública e da segurança social fosse a liberdade individual de cada cidadão. Cerceamos a liberdade individual ao máximo sob o pretexto de que é dela que brotam o crime organizado e outras imoralidadezinhas como estupro e invasão de fazendas.

“O homem é pecador nato”, diz o Pastor, brandindo a Bíblia. “A liberdade é uma armadilha de satanás, um cochilo do Criador”. “Não se deve conceder a cada indivíduo mais liberdade do que aquela que é capaz de suportar”. Se Deus tivesse pensado assim quando criou o homem, não nos teria enviado seu Filho e nossos problemas seriam bem outros.

É bem mais cômodo apertar botões e passar em revista pelotões de fuzilamento do que viver uma vida livre no meio de pessoas livres. É  fácil ser senhor no meio de escravos. O difícil é ser livre no meio de escravos. Nada mais fácil do que ser livre no meio de uma comunidade de pessoas livres.

Liberdade é sinônimo de responsabilidade, de autorresponsabilidade, para ser mais exato. Não faz sentido colocar um policial ao lado de uma pessoa livre. A liberdade se afirma e cresce de dentro para fora, como acontece com tudo o que traz em si o sopro da vida.

Se em nosso presídio podemos permitir-nos o luxo de reduzir a segurança a um mínimo indispensável, é porque oferecemos a cada inquilino o máximo de liberdade. Rejeitamos a limine a ideia preconceituosa de que disciplina e liberdade são opostos que se excluem. Por que uma pessoa perfeitamente livre não pode ser uma pessoa perfeitamente integrada ao ambiente em que vive? Por que o conceito de ordem tem que ser necessariamente tão restritivo e tão castrador da liberdade?

O que nossos homens da lei definem como ordem pode ser comparado à casca de uma árvore. Por detrás da casca existe um cerne.

O físico inglês David Bohm (já falecido) levantou a tese de que por trás do que definimos como ordem existe uma outra categoria de ordem mais próxima do conceito de caos do que do de ordem pronta para consumo. Existe, diz ele, no universo uma ordem anterior a todas as nossas tentativas de pôr ordem no mundo em que vivemos. Queremos segurança máxima. Queremos saber de antemão tudo o que for possível conhecer. Nada de improvisação. A inteligência a natureza a concedeu ao homem para que ele se planejasse a si e ao meio ambiente em que vive. Planejar foi durante os últimos séculos da nossa história a palavra de ordem dos que tinham trocado Deus pela deusa razão.

David Bohm chama de implicada, isto é, dobrada, a ordem maior que existe por detrás de todas as nossas pobres tentativas de manter a ordem ou de pôr ordem numa bagunça que nós mesmos provocamos. Não podemos partir da premissa de que o homem é o único responsável por seu destino. De que é o único protagonista da sua história. Mais pernicioso que o eurocentrismo é o antropocentrismo, para o qual o homem é a medida de todas as coisas. Quem define o homem como medida de si mesmo, deveria aplicar o mesmo critério à pedra que só poderia ser valorizada a partir de si mesma.

Num universo submetido à lei da evolução já não é mais permitido determinar o valor intrínseco de uma parcela do mundo real e existencial fora de um contexto maior e mais amplo. Uma fotografia nunca diz o que uma pessoa ou um animal realmente é. O movimento é tão essencial como manifestação de vida que é impossível distinguir um elefante parado de um elefante morto.

A ordem implicada da qual todas as demais tiram a sua legitimidade, não representa tudo o que já foi determinado e transformado em lei. Engloba, isso sim, tudo aquilo que de momento só existe no plano virtual como potencialidade pura. A consciência de estar inserido numa ordem superior faz parte dos aspectos fundamentais da consciência humana, a ponto de não haver povo que não se sinta comprometido com uma ordem, isto é, com um modo de proceder que independe da sua vontade livre.
            
O que significa ser homem, ser livre e ser feliz independe da vontade individual de cada um. Nem sequer pode ser determinado a posteriori por um segmento social mais evoluído. Além, muito acima de nossas tímidas tentativas de pôr ordem nas coisas, existe um plano onde tudo é semente e só existe como promessa e como esperança. David Bohm dá a este universo virtual o nome de ordem implicada.

Na cosmovisão de Santo Tomás de Aquino ela aparece com a denominação de “ordo libertatis et charitatis”, “ordem do amor e da liberdade”.

Se nossos moralistas cristãos fossem tomistas coerentes com o pensamento de seu mestre, o Doutor Angélico, poriam no fogo seus compêndios e tratados,  libertando as consciências de toda e qualquer forma de tutela moral e de protecionismo pseudorreligioso.

8. Nosso presídio não vai ser uma espécie de motel ou de boate, onde ninguém precisa responder pelo que faz. Tampouco vamos passar o nosso tempo cobrando tarefas e exigindo resultados.

Em vez de apresentar a cada inquilino uma extensa lista de obrigações, regras e deveres, vamos convencê-lo de que quem tem tantos direitos e vantagens como eles, também tem o dever de não ser mesquinho na hora de dar a sua contribuição para o bem de todos.

Nosso presídio não vai ser uma casa de detenção, mas um lar, uma família de pessoas livres. Não vai ser um convento onde haja lugar para diferenciação hierárquica. Não vai ser um mosteiro onde a regra é mais importante do que o amor fraterno. Não queremos que nosso presídio sirva de lugar de refúgio para pessoas religiosas que têm mais medo do amor do que da falta de amor, e mais medo da livre manifestação de ideias e sentimentos do que do patrulhamento ideológico.

Nosso projeto resulta de um ato de fé e não se baseia em premissas lógicas, nem se atém a planos previamente elaborados. Há nele muito espaço aberto à improvisação. Um dia pode começar dum jeito e terminar de outro, bem diferente. Lá tudo pode ser mudado, até mesmo de uma hora para outra, se for preciso. Lá ninguém se contenta com satisfazer necessidades e cumprir apenas o que é prescrito.

“Uma república de anjos é o que vocês estão querendo”, dirá alguém. É isso mesmo! Uma “república” e não uma “monarquia”. Um espaço aberto, onde quem pode, voa, e só caminham os que não sabem ou ainda não se atrevem a voar. Onde não existe fé, até o possível se torna impossível. Onde há fé, até o impossível se torna possível. “Tudo é possível a quem tem fé” (Mc 9,23).

Tudo se torna até mesmo fácil quando esta fé vem impregnada de amor e tem como avalista o próprio Deus. Nosso projeto se apoia numa fé aparentemente mais utópica do que realista. Neste sentido, pode ser considerado “cristão”.

9. Nosso presídio não vai ser um lugar fortificado, com guardas armados em todos os corredores. Pelo contrário, nele vai ser proibido andar armado. Há quem cuide da segurança externa, mas eles pertencem a uma outra categoria de agentes da ordem.

Nossa filosofia não nos permite o uso da violência, mesmo que seja em legítima defesa. A legítima defesa é um direito, mas ninguém é obrigado a responder de arma na mão a quem o agride. Podemos renunciar à legítima defesa, como podemos apresentar a outra face a quem acabou de nos esbofetear.

Castigamos o crime e o criminoso imaginando ser esta a maneira mais inteligente e sensata de combater o crime. A maneira mais inteligente de combater o crime é substituí-lo por algo melhor. Em vez de combater o crime organizado, melhor seria, quem sabe, organizar melhor a justiça.

Em nosso presídio não há lugar para apenados, pois não acreditamos que o castigo possa tornar alguém melhor. Condenar alguém a 30 anos de cadeia por um homicídio qualificado (!) tão pouco tem a ver com justiça quanto uma bofetada tem a ver com educação.

É evidente que a maioria dos nossos homens da lei “vai torcer o nariz” ao ouvir a nossa proposta. Não são as cadeias lugares em que os que tinham esquecido a lição voltam a aprender que o crime não compensa? Ser criminoso é uma desgraça. E o crime deixa uma pessoa marcada para o resto da vida: é isto que até o mais humilde ladrão de galinhas deve aprender. E é por isso e para isso que existem as cadeias, as polícias e os desembargadores.

Nosso presídio não abriga criminosos. O máximo que se pode afirmar de um dos membros da nossa família é que ele já foi criminoso, mas há muito deixou de sê-lo. Um ladrão que muda de vida deixa de ser ladrão. O “Lalau” da vida que não devolve o que roubou, este sim, continua sendo ladrão, mais ladrão do que nunca, na medida em que se beneficia da sua condição privilegiada de “ladrão de casaca”.

Em nosso presídio quem fornece os agentes penitenciários é a nossa Irmandade, e quem os paga é o governo. Lá todos são, até certo ponto, e se consideram presidiários, isto é, comprometidos com a segurança de todos. O sentimento de segurança nasce da consciência de se encontrar sob o abrigo de um escudo protetor.

Precisamos de segurança. Não somos mariscos obrigados a viver entre o rochedo e a onda. Precisamos de paz e de tranquilidade. E precisamos de um máximo de segurança e paz e não podemos contentar-nos com um mínimo.

Assim como não podemos contentar-nos com um mínimo de oxigênio para respirar, também não podemos contentar-nos com um mínimo de segurança.

O nosso Presídio de Segurança Mínima é na realidade um Presídio de Segurança Máxima. Por seus corredores você pode andar com a tranquila certeza de que só vai se encontrar com amigos e irmãos. O que lhe confere segurança é o alto nível moral dos seus inquilinos. Lá todos querem que você seja e se sinta a pessoa mais feliz do mundo. Se você tivesse interesse em ouvi-lo, facilmente encontraria por lá quem lhe dissesse: que bom encontrar-me contigo! Que bom que você existe!

Sei que meu amigo psicólogo, meu amigo padre e meu amigo brigadiano vão dizer: “Tudo isto é muito bonito, mas é completamente impraticável! A sociedade em que vivemos ainda não nos permite luxos filantrópicos de tamanho alcance”!

10. Nosso presídio não vai ser uma espécie de hotel de luxo, onde ladrões de alto bordo podem comer de graça às custas do povo. Lá cada qual recebe na medida em que dá. Vamos abolir o princípio que diz: “Dai de graça o que de graça recebestes”. Ou, para ser mais exato: vamos reinterpretá-lo e substituí-lo por este outro: “Quem não trabalha,  não come”. Nem Deus dá de graça às abelhas o mel que lhes serve de alimento. Oferece-lhes o néctar das flores, mas são elas que têm que ir buscá-lo. E são elas que têm que transformá-lo em mel. Deus não criou o “pão”, nem o coloca prontinho na mesa de ninguém. O que recebemos de graça é tão pouco e raramente constitui para nós motivo de orgulho. Preferimos vangloriar-nos do que realizamos com nosso próprio esforço.

Quem não se sentiria ofendido se lhe dissessem: “você é um parasita, você vive às custas dos outros”!

Onde encontrar um cárcere em que tanto guardas como apenados teriam no fim de cada dia o direito de se considerarem membros úteis da sociedade?


Quer humilhar um homem e insultar uma mulher, transforme a ele em mendigo e a ela em parasita social. No entanto, é exatamente isto que estamos fazendo em nossos mais modernos presídios.

Lasciate ogni speranza voi che intrate in questo luogo”. É com estas palavras que Dante se despede dos que estão por entrar em seu Inferno.

Não é a morte da esperança, de toda e qualquer esperança, o que aguarda a quem a justiça dos homens condenou a apodrecer em vida no fundo de uma masmorra?

A mancha mais vergonhosa e que mais contribui para afeiar o manto glorioso da honra nacional não é a fome, mas o desemprego e a falta de trabalho. Não queremos um Brasil em que ninguém passe fome, como não sonhamos com um presídio em que todos podem empanturrar-se e encher a cara, deixando por conta do governo a tarefa de pagar a conta. Queremos um presídio em que só passa fome quem não quer trabalhar. Para nós o direito ao trabalho é mais sagrado do que o direito à propriedade. Para  nós o direito a três refeições quentes por dia é muito mais sagrado do que o direito que tem o fazendeiro de colher, sob a forma de lucro pessoal, o que na realidade foi em boa parte fruto do suor alheio.

Não queremos que o nosso presídio seja uma cópia do Brasil de hoje. Queremos que ele seja o prenúncio de um “Outro Brasil”!

Desconfiamos sistematicamente de todos aqueles que nos acenam com facilidades. Desconfiamos de toda e qualquer manifestação de generosidade governamental. Não acreditamos em “promessas de campanha”.

Não queremos que o governo nos sustente. Queremos uma empresa lucrativa e autossustentável. Queremos um presídio do qual todos, inquilinos e funcionários, possam orgulhar-se. Não queremos ser vistos como uma espécie de mancha preta numa paisagem social que sem a nossa presença nem sequer saberia que vivemos num mundo em que existem o crime e o criminoso. Não queremos que as pessoas que nos visitam saiam com a impressão de que passaram uma hora na companhia do que até hoje a humanidade conseguiu produzir de pior. Queremos, isto sim, que elas saiam de lá com a convicção de que “nada é impossível a quem tem fé”.

É da natureza do homem responder no mesmo nível em que foi interpelado. É da sua natureza tratar com respeito os que o tratam com respeito. Amamos os que nos amam. Damos a vida pelos que se dispõem a fazer o mesmo por amor a nós.

Em lugar de apostar nas virtudes do amor gratuito, preferimos apostar nas virtudes do amor de comunhão. Partimos da premissa de que nos tornamos verdadeiramente senhores de nós mesmos na medida em que repartimos a nossa liberdade com outros e a casamos com a deles. Interdependência é nossa palavra de ordem. Onde todos precisam de todos, lá é mais fácil manter a ordem.

Intercâmbio é outra palavra de ordem. Nosso presídio vai ser um lugar de trocas e de permutas. O que nos torna ricos não é o que possuímos, mas o que compartilhamos. Por isso tudo o que por lá existe encontra-se à disposição de todos. O fato de haver pouca ou nenhuma propriedade particular, pouco ou nenhum objeto de uso exclusivo, elimina pela base um dos mais deletérios focos de desinteligência e injustiça.

Onde tudo é de todos e onde cada qual só pode dispor das coisas em parceria com outros, temos o comunismo que Marx queria e que Lenin não compreendeu.

11. Nosso presídio vai ser um espaço destinado a abrigar pessoas que se dispõem a viver cada qual a sua vida, mas em comunhão com outros.

Por ser o abrigo de uma comunidade de irmãos, não há nele lugar para estranhos. Todos se conhecem, pois vivem juntos da manhã até a noite. Dormem lado a lado em dormitórios comuns. Sentam à mesma mesa e se servem do mesmo buffet. Lá, cada qual se serve, em lugar de esperar que apareça alguém para servi-lo. Queremos reduzir em nossa família a um mínimo inevitável o número de pessoas necessitadas de serviço e especializadas em prestá-lo. Não vamos ter nenhum tipo de serviço, nem médico, nem jurídico, no sentido assistencial que lhe emprestamos. Não simpatizamos com a figura do “paizão” que diz: “deixa que eu faço”.

Em nosso presídio ninguém vai fazer por você o que você mesmo pode fazer. Nem vai fazer por você o que você não se dispõe a fazer.

Você, acostumado a ser servido de mil maneiras, de graça, se possível, e com direito a “bochincho”, você provavelmente não vai simpatizar nem um pouco com a nossa proposta.

Queremos ser servidos, porque é a única maneira de dizer a nós e aos outros que não somos servos, mas senhores. Todo serviço acaba em desserviço na medida em que passa a ser gratuito. É este um dos erros mais grosseiros do nosso sistema de saúde.

O que torna o pobre cada vez mais pobre como cidadão e ser humano é o fato de poder receber sem precisar pagar.

Nosso presídio vai funcionar mais como nicho ecológico do que como empresa. Nosso objetivo não é produzir e/ou consumir, mas repartir e distribuir. Num país como o nosso, em que a péssima distribuição da renda nacional brada aos céus, é mais que urgente criar modelos de boa distribuição da renda. Queremos que todos participem por igual do fruto do trabalho de todos.

Para nós a justiça social não consiste em cortar o bolo em fatias iguais e dar a cada um de acordo com suas necessidades, mas de acordo com a sua participação na tarefa de preparar o bolo. Com isto está dito que queremos uma comunidade de trabalho, um nicho social onde não existe o problema do desemprego. Lá há trabalho para todos. E quem não quer trabalhar é convidado a se retirar e voltar para o seu presídio anterior.

Não queremos favorecer a preguiça de ninguém. Quem quer comer de graça que vá procurar outro lugar. Não admitimos que alguém deva entrar em fila, seja lá para o que for, que um outro coloque em nosso prato a nossa porção de comida. Estes e outros detalhes vão fazer a diferença entre o que pretendemos e o que Marx e seguidores têm em mente. Não somos socialistas, nem socialistas cristãos. Somos capitalistas na medida em que investimos com o fito de obter resultados. Porém, há uma diferença: nosso capital é a pessoa humana.

A medida do lucro que visamos é o humano. Nosso “capital” cresce na medida em que as pessoas que vivem conosco aprendem a sorrir de novo como no tempo em que eram crianças!

12. O trabalho bem feito certamente dignifica a quem o realiza. Mas para ser digno de um ser inteligente e evoluído como o homem, não basta olhar para o que foi produzido. A medida do valor do trabalho humano é o homem. A qualidade do trabalho humano é determinado pela qualidade humana das pessoas que o realizam. A matéria prima a ser transformada e enobrecida é a pessoa que o realiza. O estado de espírito e o grau de consciência com que é feito são mais importantes que o resultado material.

Não somos trabalhistas, pois não temos o propósito de endeusar o trabalhador e de idolatrar o trabalho. Rejeitamos como simplista e mal intencionada a linguagem dos que pretendem equiparar educação com trabalho, rebaixando a figura do educador a de “trabalhador em educação”.

Não temos a intenção de fornecer Stakanovs e de criar em viveiro uma leva de “operários padrão”. Na hora da refeição não queremos sentar-nos ao lado de um burocrata que passa o dia inventando obstáculos legais à livre iniciativa dos que trabalham. O nosso país progrediria rapidamente se desaparecessem os entraves burocráticos que impedem, não a corrupção, mas a livre expansão da criatividade humana.

A passagem de uma sociedade competitiva para o seu oposto que é a sociedade cooperativa é por natureza mais revolucionária do que evolucionária. Não obedece à lógica da continuidade, mas à dialética dos opostos. Tudo isto que Marx e companheiros queriam alcançar com a ajuda de canhões e metralhadoras pode ser alcançado sem eles, mas não sem “violência”. Isto significa que é preciso quebrar e destruir algo que está impedindo que uma nova ordem social mais justa e mais humana venha a tomar o lugar da atual, mais voltada para a dominação do que para a comunhão.

Se concedêssemos ao trabalho e aos trabalhadores os mesmos direitos com que honramos o capital e seus aplicadores, já teríamos deixado para trás uma boa parte das mazelas que afligem nosso mercado de trabalho.

Não é a violência que devemos condenar, mas a sua má aplicação. No mundo em que vivemos existe muita violência disfarçada. O fazendeiro que protege a sua propriedade com toda a espécie de cercas, do arame farpado até o ninho de metralhadora, não tem a menor ideia do crime contra a natureza que está cometendo. Trata a sua fazenda como se fosse propriedade exclusivamente sua. Esquece uma das leis mais sagradas da mãe natureza: “no mundo em que vivemos somos todos inquilinos e não proprietários”. Nele somos todos vizinhos e próximos uns dos outros. Não seria maravilhoso se conseguíssemos criar e viver num mundo em que ninguém é dono de nada e de ninguém? Pois este é o mundo que temos em vista com a nossa proposta. Amar é como coçar: basta começar.

O amor é uma forma de energia semelhante à da pedra deitada num declive. Basta empurrá-la na direção certa para que se ponha a rolar.

O absurdo do mundo moderno consiste em repetirmos a tentativa de “Sísifo”: gastamos nosso tempo e nossas melhores energias no esforço vão de rolar até o alto de uma imaginária montanha uma pedra que muito bem poderia permanecer onde está. O lugar onde ela está, pouco interessa. O que importa é descobrir o que ela está fazendo no lugar onde se encontra.

Outro detalhe: o alto da montanha não é lugar apropriado para pedras proibidas de rolar.

Nosso presídio não vai ser um lugar onde o amor vai ser cronometrado, orquestrado, vigiado e mantido sob controle. O que cada um vai fazer com o seu potencial afetivo não vai ser tratado como assunto meramente pessoal e particular. Em relação a manifestações de natureza homossexual não vamos seguir a atitude vigente do “laissez-faire”. Na nossa opinião  não é indiferente o que duas pessoas fazem juntas numa cama. Nem nos é indiferente o modo como se relacionam entre si. Não somos liberais neste assunto, mas também não admitimos o procedimento dos que querem transformar a “transa homossexual” em caso de polícia. Adivinhamos vagamente o tamanho do abacaxi de natureza sexual que vamos ter que roer.

Para começo de conversa discordamos do conceito freudiano de normalidade. O amor que um homem sente por outro é tão normal quanto o que sente por uma mulher. Na opinião de Platão ele é até superior ao do pai para com o filho. Os gregos pouco valor atribuíam ao amor heterossexual.  Para eles o problema residia na pouca capacidade da mulher de equiparar-se ao homem na arte de amar.

O Código de Direito da Igreja católica preconiza o celibato como superior ao matrimônio, porque no matrimônio quem cuida dos aspectos afetivos do relacionamento conjugal é a mulher. Um padre casado teria que ser um homem que aprende com uma mulher a arte de amar. É isto que um clérigo machista não consegue admitir.

São dois os tipos de homem que não queremos em nosso presídio: o “macho” frustrado e o homossexual assumido. Explico: não queremos o tipo de homem para o qual o sexo é uma necessidade e a continência sexual um castigo. Também não queremos o tipo “gay” que acha normal fazer sexo com outro homem. Queremos que nosso detento aprenda a lidar com a sua sexualidade de um modo novo, mais livre e mais criativo. Queremos que aprenda a viver e a vivenciar a atração sexual não como necessidade fisiológica, mas como fonte de energia espiritual e como oportunidade.

O desejo sexual não é uma canga à qual temos que submeter-nos como nos submetemos à necessidade de sono. Um período de abstinência sexual pode ser muito útil para quem se tornou viciado em sexo. Nem sequer o animal satisfaz o seu desejo sexual compulsivamente.

Não queremos em nosso meio a presença de celibatários profissionais que se consideram superiores aos demais pelo fato de dormirem em camas separadas. Outro tanto não queremos favorecer o preconceito de acordo com o qual dormir na mesma cama com outro homem é para um homem tão normal quanto passar a noite ao lado de uma mulher.

13. Estes e outros aspectos de natureza psicomoral pesam em nossos momentos de autoavaliação, porque vemos o nosso presídio mais como escola do que como penitenciária ou como reformatório.

Nele haverá muito tempo para lazer e para estudo, para leitura e palestras. O trabalho não vai ocupar o dia inteiro, nem a semana toda. O fim do dia e da semana ficam reservados à formação intelectual e moral.

O que não nos interessa são aulas ou cursos de doutrinação ideológica. Nenhuma religião ou corrente política será admitida em nosso meio se vier com a intenção de angariar adeptos e de fazer proselitismo. Queremos que do nosso presídio saiam cidadãos plenamente recuperados como cidadãos. O “marginal” que acolhemos se despede de nós como cidadão, isto é, como alguém disposto a dar a sua contribuição para a construção de uma sociedade mais humana, mais livre, mais justa e mais ecológica.

Nosso aluno, que até agora foi mau aluno, tem que reaprender a ser bom aluno. Num presídio bem organizado as oportunidades de aprender são inúmeras. É só saber aproveitar.

Um sistema penitenciário que devolve à sociedade “trapos humanos” em lugar de cidadãos regenerados é tão injusto e antissocial quanto um sistema de saúde mais preocupado em fornecer atestados de óbito do que em acompanhar o paciente em seu retorno à saúde. Assim como um médico não é um profissional da doença, mas da saúde, do mesmo modo um agente penitenciário não está apenas a serviço da ordem. Sua função específica é devolver a fé em si mesmo a quem a tinha perdido por completo.

Queremos que ele, nosso irmão transviado, saia de perto de nós batendo no peito e cantando: “Sou novamente alguém em quem vocês, meus irmãos, podem confiar”!

Será que é tão difícil devolver a consciência de sua dignidade e autoestima a quem a tinha perdido? Formar agentes penitenciários altamente qualificados e competentes é sem dúvida muito mais importante do que melhorar o aparato policial. Que justiça é esta que não se preocupa com a qualidade humana e psicológica dos serviços que presta?

14. Ninguém quer morar perto de um Presídio de Segurança Máxima. Pois a fama das nossas cadeias é péssima. A ideia de que se possa organizar um presídio que seja em tudo absolutamente o oposto de tudo o que costumamos associar à palavra prisão, parece tão absurda e impraticável quanto atravessar a pé um braço de mar.

Que tal a ideia de criar um presídio do qual a vizinhança toda se possa orgulhar? Não é a prisão um lugar destinado à restauração da ordem e da justiça? Por que tem que ser tão tétrico e lúgubre o lugar destinado a este fim?

Há em nosso meio muita coisa que não dá para entender. Muitas delas fazem parte do nosso aparato judiciário.

Os moradores de nosso presídio vão ser cidadãos bem educados e bons vizinhos, dos quais ninguém, mas ninguém mesmo, se deva envergonhar. Todos eles, se alguma vez foram criminosos, já não o são mais. Criminoso é alguém que continua praticando crimes. Por que classificar como bandido e delinquente alguém que há muito desistiu de trilhar o caminho do mal? Um ladrão convertido não é um ex-criminoso, como um doente curado não é um ex-doente. Um nome limpo é algo que se pode herdar, mas que também se pode readquirir, por que não?

Os moradores do nosso presídio vão fazer parte da Associação de Bairro ou de qualquer outra forma de organismo comunitário. Não podem ser tratados como marginais. Uma comunidade pode contribuir de forma decisiva para a concretização do nosso projeto, deixando de lado um tipo hipócrita de superioridade moral. Não há necessidade de grande isenção de ânimo para descobrir que é pouca a distância moral que separa o mundo que impera fora delas do mundo que vigora no interior de nossas penitenciárias.

15. Em nosso presídio vai haver muita oportunidade para atividades de lazer. Lá só não sabe o que fazer e como passar o tempo quem quer. Este sujeito que não quer nada com nada e que sempre acha defeito em tudo, menos em si mesmo, nós o vamos devolver ao endereço donde veio. Consideramos uma injustiça dar de comer a um vagabundo. Sabemos que “a ociosidade é a mãe de todos os vícios”.

Não queremos que nossos inquilinos andem sempre ocupados. Mais que o fato de estarem ocupados e sem tempo para pensar em besteira, pesa em nossa avaliação a atividade que os ocupa. Além do trabalho e do estudo haverá espaço e tempo para esportes e atividades artísticas.

Nosso presídio não pode ser um lugar fechado. Vamos precisar de espaço para nos expandir, de terra para plantar.

Nossos presidiários já não são mais presos que é preciso vigiar. Não são mais o que eram. São cidadãos e em dia de eleição saem para votar como qualquer outro cidadão. Algema e acompanhamento policial são práticas que podemos dispensar tranquilamente.

Ao entrar em nossa família, cada novo membro dela se compromete em público a alguns requisitos básicos, como o de:
                        - não tentar fugir;
                        - não se envolver na formação de qualquer tipo de quadrilha;
                        - o de submeter-se ao regulamento da casa;
                        - o de participar em tudo das atividades comuns a todos.

Em contrapartida recebe o direito de participar com seu voto e seu parecer das decisões que afetam mais de perto a vida em comum e o bem-estar de todos, deixando assim de ser um excluído ou um marginal social.

O grau de desenvolvimento ético de uma comunidade humana se mede pelo grau de confiança que cada um dos seus membros pode depositar nos demais.

Para um cavalheiro medieval não havia crime mais hediondo do que a felonia. Trair a própria palavra e desonrá-la era um crime de lesa-honra que só com sangue podia ser resgatado.

Uma pessoa que não honra a sua própria palavra não é apenas um inútil social. É um elemento capaz de qualquer traição.

É por isso que pedimos a cada membro novo da nossa comunidade que nos diga sem subterfúgios e meias verdades o que podemos esperar dele. É ele que vai definir isto e não somos nós, seus companheiros, que vamos obrigá-lo a ser o que ele mesmo não tem a intenção de ser.

Algemas e cabresto são símbolos de um conceito de justiça e de ordem social que não é o nosso. Não queremos justiceiros, nem nos interessa uma ordem social incapaz de se sustentar por si mesma. Queremos um ambiente social em que é permitido substituir a obediência pela confiança mútua. Em que aquele que manda não é mais importante do que aquele que cumpre ordens. Queremos homens e mulheres que saibam o que fazer com a sua liberdade sem a intermediação de corretores sociais. Não queremos que nosso companheiro de presídio saia de lá mais incapaz do que antes de gerenciar o seu destino.

16. A cada passo aparece no noticiário que o governo tem o propósito de reformar e de modernizar o Judiciário. Trata-se de uma proposta mais do que urgente e de uma necessidade mais do que clamorosa.

Queremos mexer na cabeça de juízes e promotores, mas não na dos advogados bem pagos e de seus clientes cheios de dinheiro. Queremos mudar a cúpula do Poder Judiciário como se o cerne do problema fosse a má administração da justiça, o que não é verdade. O que precisamos não é de juízes, promotores e advogados mais afinados com as benesses da sua carreira, mas com a necessidade urgente, urgentíssima de rever e reformular nosso estatuto social.

Não podemos aplaudir juízes e desembargadores em greve por melhores salários. Mas seria igualmente injusto admitir que o seu compromisso com o estado de justiça termina com a aposentadoria. Um jurista que se preza não se serve da aposentadoria para dar por encerrado o seu compromisso com a justiça. Por isso gostaríamos que os membros da nossa ONG encarregada de administrar e dirigir o nosso Presídio-Comunidade fossem membros e ex-membros do Poder Judiciário. Cresce no país a cada dia o número de aposentados e com ele o de pessoas que não sabem mais o que fazer da vida e em que ocupar o seu tempo. Crítica, e das mais severas, quem a merece não é o aposentado, mas uma organização social em que não há mais espaço para aposentados.

Quem não sente vergonha da sociedade em que vive e da forma como nela se pratica a justiça, perde tempo se quiser aderir ao nosso projeto.

O juiz que pronunciou suas sentenças mais voltado para o amparo da lei do que para as exigências e necessidades da pessoa do réu, é alguém cuja colaboração não nos interessa, mesmo que venha com a intenção de corrigir erros passados. Não queremos que venha colaborar conosco quem o faz movido por um sentimento de culpa. Não concordamos com a filosofia de quem diz: “Já que eu vou bem, tenho a obrigação de ajudar outros a chegar aonde eu cheguei”.

Não vamos aceitar a oferta de quem diz: “Venho porque me sinto obrigado por minha consciência ou em virtude de minha fé religiosa ou política”.

Quem quer ingressar em nossa família, ou vem de coração na mão, ou não será aceito. O direito de escolher aqueles com os quais vamos compartilhar o mesmo teto e o mesmo futuro é um requisito do qual não pretendemos abrir mão. Ninguém me pode obrigar a conviver com pessoas que não me amam e cujo amor não me interessa.

Não queremos fazer do nosso presídio uma espécie de templo da justiça. Queremos mais, muito mais. Queremos que ele seja um lar, um templo do Amor.

Não nos interessa um lugar onde ninguém sonha e ninguém machuca ninguém. Queremos uma família onde quem tem dois rins em bom estado, sempre está pronto a doar um a quem precisa dele. Justiça sem amor é como corpo sem alma. E amor sem justiça é como alma sem corpo. A distância que nos separa do mundo com que nos contentamos, do mundo dos eternamente insatisfeitos, é que determina a diferença que separa a fé em Cristo e a esperança cristã dos sonhos acadêmicos de Marx.

17. Alguém, ao tomar conhecimento do que expus, dirá: “Mas o teu presídio mais se parece com um mosteiro do que com um estabelecimento penal”.

Nossos irmãos vão ser atendidos por uma Irmandade, isto é, por pessoas que se comprometem a tratá-los como irmãos. Estes, por sua vez, são incentivados a se amarem como irmãos.

A luz inspiradora de todo o projeto é a Pessoa e os Ensinamentos de Jesus Cristo, é verdade. Mas isto não quer dizer que ele seja religioso no sentido confessional do termo. Queremos que nossos irmãos descubram que uma pessoa sem fé em Deus acaba diferindo muito pouco de um chimpanzé que também não se preocupa com o que o espera depois da morte. Queremos que cada um deles tenha a oportunidade de descobrir Deus e o lugar que Ele pode ocupar na vida de uma pessoa, mas queremos que ele o faça por si mesmo e de livre e espontânea vontade.

Não nos interessa que alguém seja adepto desta ou daquela religião ou igreja. Preferimos uma fé religiosa discreta e até silenciosa a uma religiosidade espalhafatosa e extrovertida. O marido mais fiel não é aquele que mais alarde faz do seu amor pela esposa. Como no campo afetivo, o que vale não são as palavras, as declamações e o aparato histriônico, mas o grau de profundidade com que experimentamos o nosso relacionamento religioso com o nosso Criador.

Não queremos que a formação da consciência religiosa de nossos irmãos passe a ser administrada por terceiros. O que nos interessa é parceria. O que mais queremos é que nossos alunos aprendam a conviver uns com os outros como irmãos.
            “O outro é o inferno”, proclamava Sartre, um dos corifeus do moderno existencialismo ateu.
            “Como é belo e agradável conviver como irmão entre irmãos” (Salmo 133,1).

Conviver é uma coisa e entrar esporadicamente na vida de alguém, mais para colher do que para dar, é outra, bem diferente. “Nisto reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”, diz Jesus (Jo 13,35).

Se cristão é aquele que é discípulo de Cristo, e se discípulo de Cristo é todo aquele que ama a seus irmãos e companheiros como a si mesmo, então nosso presídio vai ser cristão. Mas só neste sentido.

18. Como base de sustentação religiosa do nosso projeto optamos pela fé no homem. Somos humanistas e nossa fé no homem, assim como nosso humanismo todo, se baseia na crença de que Cristo veio inaugurar um novo capítulo da história humana. O que Jesus veio ensinar-nos é o seguinte: “Até agora fostes ensinados a ver a Deus como Senhor. D’ora em diante sois convidados a vê-lo como Pai”. “Até agora fostes incentivados a olhar para o alto, pois era de lá que ele, Deus, se dirigia a vós. Mas daqui para frente podereis encontrá-lo nos lugares mais improváveis. Deus veio morar no meio de vós, joga no mesmo time que vocês. Prefere vencer, mas também sabe perder. Uma nova aliança foi estabelecida por obra e iniciativa de Deus, transformando por completo o relacionamento do homem com seu Deus”.

Deus não quer mais que o sirvamos, quer que o amemos. Ao despedir-se da vida no alto de uma cruz, Deus, na Pessoa de Jesus, deu-nos uma lição de amor que até hoje ainda não conseguimos assimilar: “Amigo é aquele que está disposto a dar a vida pelo amigo”. Você é amigo se na sua vida há alguém cuja felicidade é para você mais importante que a sua. Você é cristão se for amigo de Deus e se a sua amizade é para você infinitamente mais importante do que tudo o que o mundo se dispõe a oferecer-lhe. Tudo isto e muito mais queremos que levem consigo para o resto das suas vidas os que passam por nossa escola.

19. O governo começa a perceber que não pode fazer tudo sozinho. A iniciativa privada se encontra em situação idêntica. Estamos pagando a conta por erros ideológicos do passado. Passamos um tempo precioso endeusando as virtudes da iniciativa privada. Depois passamos a endeusar as virtudes do planejamento social.

Hoje começamos a descobrir que o caminho do meio entre a iniciativa privada e a ação coordenadora do setor público é o que melhor se presta à solução de problemas sociais.

Um governo democrático é aquele que sabe dialogar e cooperar com o povo (= demas, em grego). A iniciativa privada só procede de forma positiva e socialmente responsável se não confundir autossuficiência com autorresponsabilidade. A saúde econômica de nossas empresas não pode ser usada como indicador de prosperidade social. Mas são precisamente critérios desta natureza que excluímos dos critérios de avaliação do nosso projeto.

Alguém poderia dizer: “O projeto de vocês tem um defeito grave. Vocês não sabem aonde querem chegar. E não se preocupam com resultados. O fato de intitularem o seu projeto como de segurança mínima, está a dizer o quanto vocês estão empenhados em ‘remar contra a corrente’ ”.

Se nosso problema é falta de segurança, a resposta só pode ser uma: aumentar a segurança. Mas se admitirmos que nosso problema mais crucial não é a falta de juízes, de promotores, de advogados e de desembargadores, mas a pouca qualificação ético-social dos que desempenham estas funções, o panorama muda por completo e se torna o oposto do que a Ordem dos Advogados e a Ajuris gostariam ver circulando na opinião pública.

20. A iniciativa privada não está aí para tapar buracos que o setor público não soube fechar. Mas também não pode omitir-se simplesmente como se a manutenção da ordem e a segurança pública fossem da competência exclusiva do setor público.

A palavra terceirizar não traduz o tipo de relacionamento entre setor público e iniciativa privada que queremos. O que queremos é colaborar com o poder público nos moldes em que esta colaboração já está sendo posta em prática no campo do ensino e da educação.


A palavra parceirização define melhor o tipo de associação entre poder público e iniciativa privada que temos em mente. Visto sob este aspecto, nosso Presídio de Segurança Mínima pode vir a ser um modelo, uma demonstração do que se pode obter quando os dois poderes, o público e o privado, se unem e colaboram em pé de igualdade numa causa comum.  –  Agosto de 2003. 


 “GOGITO, ERGO SUM

1. Ninguém sabe como foi que o homem começou a pensar. Mais exato seria perguntar: quando foi que o primeiro primata, do qual herdamos esta faculdade misteriosa que é a inteligência e com ela a capacidade de produzir pensamentos, teve o primeiro lampejo de um conhecimento totalmente diferente do tipo de conhecimento que tivera até então? Certamente seria interessante saber como se deu a passagem do conhecimento puramente instintivo para o racional.

Esta compreensão nos poderia ser útil já que o uso da razão continua sendo um dos pontos mais vulneráveis e problemáticos da condição humana. O bom senso nos aconselharia a transformar todos os nossos canhões em arados, mas onde encontrar um político que sonhe com uma sociedade sem armas?

A transição do império da força bruta para o da racionalidade só conseguiu, até hoje, dar uns poucos e tímidos primeiros passos. A genética nos acena com a possibilidade de substituir os genes responsáveis pela proverbial agressividade da espécie humana por outros que a tornem menos agressiva e mais propensa ao convívio pacífico com seus semelhantes.

Em vez de desarmar a sociedade temos que pensar em desarmar o interior do homem, pois é de lá que nascem todas as guerras e todos os atentados terroristas. É este o conteúdo da versão tecnicista do discurso pacifista mais atual. Querer melhorar o interior do homem interferindo em seu genoma ou patrimônio genético pode acabar em tragédia e são poucos os biólogos que acreditam ser este o meio mais indicado para tornar a humanidade melhor do que é atualmente.

2. O dia era lindo e o sol ia se pondo lentamente, dando ao dia tempo de se despedir. Deitado de costas num tufo de capim, um chimpanzé bonobo fitava o firmamento azul, mastigando um talo de capim. Algo despertara em seu interior: a mania de querer entender o porquê das coisas. Enquanto acompanhava com o olhar o voo de uma águia elevando-se no espaço até se perder de vista, viu-se confrontado com estas perguntas: “Por que uma ave pode voar enquanto nós, bonobos, estamos condenados a nos mover apenas aos pulos? O máximo que podemos dar é um salto. A curta e ridícula distância que assim conseguimos vencer poria até um esquilo a morrer de vergonha”. “Por que o mesmo céu que de dia se manifesta tão limpo, de noite se cobre de luzinhas”? “Por que estas luzinhas só aparecem de noite? Onde se escondem durante o dia”? Toda vez que voltava a observar o céu do seu privilegiado posto de observação, se via defrontado com novas perguntas sem que tenha aparecido alguém que soubesse dar-lhe uma resposta!

Um dia a sua companheira preferida veio deitar-se a seu lado. Conversa vem, conversa vai, depois de muita hesitação, ele se animou a tocar no assunto que ultimamente o andava intrigando demais.
- Lucy, você anda às voltas com esta inquietação que sinto e que não me deixa em paz nem de dia nem de noite?
       - Nós, mulheres, já experimentamos esta inquietação interior há mais tempo, mas só o abordamos em segredo, pois temos medo de que nos considerem loucas e anormais.
            - O que você acha disso tudo?
       - Acho perigoso fazer perguntas para as quais não se tem resposta.
          - Você não acha que se pudéssemos voar e elevar-nos até onde pairam as águias, isto nos tornaria mais livres?
            - De que nos serviria esta liberdade, já que por lá, ao que parece, não existem macios tufos de capim, nem cerejeiras carregadinhas de frutas!
            - Tens razão, Lucy, tenho que conversar sobre este assunto com o Tio Asterix, ele deve ter uma explicação para o fenômeno que, se entendi bem, está pondo em polvorosa a tribo inteira.

Um discreto ruído estava a indicar que alguém se estava aproximando dos dois. Era o Tio em pessoa, que também perdera horas de sono fazendo-se perguntas para as quais não conseguia encontrar respostas.
            - Tio, será que o senhor tem uma explicação para o que está acontecendo comigo e talvez com muitos outros membros da nossa tribo?
            - O fenômeno é mais geral e não atinge apenas os membros da nossa tribo. Vim de uma conversa com um velho amigo da tribo vizinha. Ele me confidenciou que o fenômeno está se manifestando também em sua tribo. Ele não acha que o fato represente um perigo ou uma ameaça para a família Bonobo. Sua opinião é a de que se trata de um fenômeno positivo e altamente promissor. Mas o processo todo vai-nos colocar na necessidade de ter que descobrir de um modo novo o que é melhor para o nosso bem. Já não vamos poder contar com a segurança certeira que o instinto nos proporcionou até agora. Só pergunta aquele que já não sabe mais como agir e que rumo tomar. Quem não duvida, não faz perguntas. E quem não pergunta d’ora em diante não saberá mais o que é certo ou errado!
         - Mas Tio, o senhor não acha que a perda da segurança, que o instinto nos oferecia, representa não um avanço, mas um passo perigoso em termos de segurança social?
         - Como assim?
      - Não estamos tendo muito mais perguntas do que respostas confiáveis? Cada pergunta gera uma verdadeira ninhada de novas perguntas! E cada pergunta sem resposta ou, então, mal respondida, traz à tona a possibilidade do aparecimento de uma classe de mercadores até hoje desconhecida, a dos vendedores de respostas certas, se assim os podemos chamar. O senhor não acha isso muito perigoso?
     - Não nego que existam riscos para os quais não estamos preparados e de cuja gravidade nem sequer ideia podemos ter. Não se esqueça de que estamos apenas começando a pensar, pois é assim que meu sábio amigo da tribo vizinha chama esta espécie de atividade que tanto nos confunde e alvorota.

3. Desde aquele verão de milhões de anos atrás já surgiram e desapareceram centenas de civilizações, mas nenhuma delas conseguiu melhorar significativamente a qualidade do pensamento humano! Em lugar de tornar a humanidade uma espécie mais livre que as demais, o pensamento caiu, ao que parece, nas malhas dos vendedores de certezas.

Quem ainda se encontra em condições de saber o que é realmente certo ou errado? A respeito de quê ainda se pode ter certeza absoluta? O universo que vemos não é o mesmo que os mais renomados cientistas de hoje nos descrevem. “Tudo o que tagarelais acerca de Deus, é falso”, dizia Mestre Eckhart a seus ouvintes. “O que os cientistas definem como verdadeiro, na realidade nada mais é do que parte de uma monumental autofraude”. Quem afirma isso é David Bohm, um dos mais lúcidos cientistas da atualidade.

No século XVIII o culto da razão celebrou triunfos imerecidos. Enquanto Emanuel Kant festejava na remota cidade de Königsberg o triunfo definitivo da Razão Pura, Paris se preparava para os festejos da Deusa Razão. Foi um delírio que custou à Europa rios de sangue e sofrimentos sem fim, dignos de épocas que pareciam ter sido varridas do palco da história para sempre. Quando tudo parecia indicar que a guerra fora banida para sempre do palco da história e do terreno das soluções políticas, estourou a Primeira Guerra Mundial.

Enquanto os franceses mergulhavam num frenético delírio triunfalista, os alemães do outro lado do Rio Reno amargavam a humilhação que para eles representavam o ditador do Tratado de Versalhes. Duas gigantescas bolhas morfogenéticas, uma tão destrutiva como a outra, estavam se formando nos céus da Europa, dando origem a explosão da Segunda Guerra Mundial, bem mais desastrosa que a Primeira!

Nada descreve melhor a primeira metade do século XX do que o termo efervescência emocional. Tanto na Alemanha como na França e na Rússia ninguém mais raciocinava. Tudo era decidido aos gritos e berros com base em vagos conceitos de “honra” nacional. Ou de “justiça social”, como na Rússia. A razão e o bom senso cedera o lugar à paixão. Hitler era um apaixonado: punha paixão em tudo o que fazia e queria. Comparado com ele, Stalin não passava de ser outra coisa que um modesto Comissário do Povo, frio e calculista.

Os crimes praticados por ordem do Führer podiam justificar a tese dos defensores da Racionalidade Pura, para os quais a emoção é inimiga natural da razão. O Iluminismo do século XVIII foi um equívoco filosófico, pois despojou a razão do seu componente passional e emocional. Foi somente nos idos de 1960 que cientistas americanos, Goleman, entre eles, começaram a se ocupar com uma até então desprezada dimensão da mente humana, denominada por uns como “inteligência emocional” (Goleman) e por outros como “O Ponto Deus”. Ou então de “inteligência espiritual”.

O Ponto Deus representa e responde pela passagem do meramente humano para o divino. Tudo está a nos dizer que a essência da natureza humana não pode ser desvendada recuando no tempo. Pelo contrário, é adiantando-se à ação do tempo que se consegue ter uma ideia do que irá ser um dia o Homem Perfeito e plenamente humanizado. O Ponto Deus encontra-se embutido no interior do cérebro humano e é responsável por todo tipo de atividade que associamos ao conceito de atividade espiritual. Com esta descoberta fica claro que estamos sendo realizados e projetados a partir de forças criadoras que atuam além do tempo. Perde o seu precioso tempo todo aquele que acredita no poder mágico do processo histórico, como pensava Karl Marx. A História não possui este poder de tornar os homens cada vez melhores e mais humanos.

Como se pode sair do tempo e mergulhar num universo sem tempo onde a sucessão dos séculos e dos milênios cabe num único instante e num eterno presente? O que Jesus fazia quando ao anoitecer subia a uma colina para passar lá as silenciosas horas de uma bela noite de verão em oração, senão isso mesmo: saía do tempo e voltava a mergulhar naquele maravilhoso mundo sem tempo que é o Céu donde viera!

A oração por excelência é a que nos liberta da prisão do tempo e do pequeno e claustrofóbico mundinho dos que não têm mais tempo para nada. Esta oração tem um nome: chama-se contemplação. Quem quer aprendê-la dirija-se a Teresa de Ávila ou a Inácio de Loyola, ambos mestres consumados na arte da contemplação.

Um pequeno número de contemplativos, um por cento, é suficiente para transformar uma cidade violenta num Oásis de convivência pacífica. É o que nos garantem renomados sociólogos americanos.

“O tempo está começando a passar cada vez mais depressa”! Esta é uma queixa bastante comum. Parece que estamos assistindo a uma aceleração do tempo.

O tempo cronológico é determinado pela velocidade com que um objeto se move. O tempo psicológico é determinado pela quantidade de momentos sucessivos. A passagem do tempo se torna problemática e frustrante na medida em que não nos permite completar o que iniciamos. É extremamente desagradável chegar ao fim de um dia cansativo com a sensação de não ter realizado ao longo do dia uma única obra bem feita. “Se ao menos a noite nos desse a oportunidade de esquecer o tempo e de mergulhar no plácido mundo dos sonhos”! A noite poderia nos devolver com juros um pouco do tempo perdido durante o dia, mas para isso teríamos que aprender a arte tão pouco cultivada de dormir bem.
                                                                      Pe. José Marcos Bach,SJ



                                  AS DUAS HUMANIDADES

1. Se os cientistas que estudam a origem do homem não andam equivocados, o homem deve sua origem biológica a uma célula microscópica! E a vida desta célula surgiu quando ela começou a se dividir em duas e quando deu início a um processo biofisiológico que chamam autopoiese.

O que distingue uma célula viva de uma molécula sem vida é um detalhe aparentemente sem grande importância: a célula viva cuida de si, administrando as potencialidades desta nova forma de ser. Ela se multiplica e ao mesmo tempo se diversifica. Foi o jesuíta Teilhard de Chardin que chegou à conclusão de que a união só é verdadeira quando diversifica. A uniformidade que consiste na reprodução do mesmo é a âncora que segura o navio, mas não o põe em movimento. Onde nada de novo acontece, a evolução cedeu lugar à estagnação.

2. Autores há que definem a mulher como polo repousante da sociedade humana. São elas, as mulheres, que asseguram a continuidade não só da espécie humana, mas também de tudo o que no passado a humanidade já realizou no plano sociocultural.  Tomam como prova de suas teses o fato do óvulo feminino ser tão passivo em comparação com a agressividade e poder de penetração do espermatozoide masculino. É função do óvulo esperar que alguém venha procurá-lo. O comportamento de um espermatozoide o leva a viajar muito e a sair constantemente do lugar. A consequência psicoantropológica desta concepção é a tese de que o feminino é o polo respousante de um corpo social, ficando o papel ativo e verdadeiramente criativo por conta do representante masculino. Esta diferença é usada para justificar a superioridade do masculino sobre o feminino.

3. Por detrás de toda esta concepção discriminatória encontra-se bem aninhado um erro de categoria que confunde sexo com sexualidade. A Palavra de Cristo que afirma que “no céu não se casa mais, nem mulher alguma será dada em casamento, mas que homens e mulheres serão como os anjos do céu” (Mt 22,30), deu azo a muita confusão.

Monges e freiras espalharam a falsa crença de que o corpo ressuscitado não possui mais órgãos sexuais, já que a reprodução da espécie deixou de fazer parte da atividade sexual humana. Anjos não procriam. Certamente faria um grande benefício a homens e mulheres livrando-os da necessidade de procriar.

Ser mãe não contribui em si para elevar uma mulher a um patamar evolutivo mais elevado e mais nobre. Ter filhos e cuidar deles não é a mesma coisa que ser mãe. É preciso não perder de vista que a parcela feminina do gênero humano constitui quase uma espécie à parte e que as diferenças que a caracterizam são definitivas. Pois são estas diferenças, incluídas as de natureza anatômica, que dão sabor e encanto ao convívio de homens e mulheres. Só um grande amor é capaz de dar uma resposta adequada ao desejo sexual de ambos! O patamar evolutivo que o gênero humano atingiu até agora é demasiadamente rudimentar para que se possa construir sobre ele uma antevisão escatológica do futuro sexual da humanidade. O que em cada um de nós ainda não teve tempo de brotar é muito mais importante, sob o aspecto evolutivo, que tudo aquilo que nossos cientistas e teólogos conseguiram nos oferecer até hoje. Chegou a hora de prestar atenção a outras vozes, mais familiarizadas com o que em cada ser humano ainda está por nascer!

                                                     Pe. José Marcos Bach – Dr. em teologia moral
                                                                 Aos 16 de maio de 2008.




JESUS, MODELO DE LÍDER COMUNITÁRIO
           
O mais lídimo e completo Líder Comunitário foi Jesus. Foi Líder porque sempre ia à frente dos seus companheiros apontando o caminho. Caminhava com eles percorrendo em sua companhia as mesmas estradas, expondo-se às mesmas canseiras e aos mesmos perigos. Era companheiro de um modo como só Ele sabia sê-lo! Sabia emparelhar o passo com os que caminhavam depressa. Mas sabia também adaptar seu ritmo ao do mais lento, desde que ele continuasse caminhando.

            “Não se deve apagar uma tocha que ainda bruxoleia”, dizia.

Jesus conhecia muito bem os seus companheiros. Sabia o que se passava no íntimo da consciência de cada um deles. Interessava-se pelo bem-estar de cada um deles. “Faltava-vos, por acaso, alguma coisa quando vos enviei a pregar?” (Lc 22,35).

A vida de Jesus com seus apóstolos era realmente uma “Vita Communis”, podendo por isso servir de modelo de vida em Comunidade. Na base de qualquer paralelo está o modo como Jesus se relaciona com seus apóstolos. Era o Líder inconteste do grupo todo.

Não vale a pena ir à caça de modelos de liderança quando se tem na Pessoa de Jesus a possibilidade de encontrar todas as qualidades requeridas de Guia Espiritual. Em lugar de me alongar na descrição das virtudes todas do Divino Mestre, quero contentar-me aqui com a enumeração daquelas que julgo serem mais essenciais que as outras.

1)Um líder tem que ser uma pessoa livre, extremamente livre. Sua tarefa principal é motivar pessoas livres a assumirem sua liberdade como responsabilidade e não apenas como privilégio individual. Como um direito inalienável e intransferível. A obediência só é válida se vier a acrescentar mais liberdade interior a que já existe. Uma Comunidade Cristã cresce espiritualmente na medida em que a presença e a ação moderadora de um diretor de consciências se tornar mais e mais supérflua. A Comunidade atingiu seu ponto de maturidade social quando cada um dos seus membros é capaz de dar início a um novo organismo comunitário. O filho se torna adulto quando sente em seu íntimo o desejo e a necessidade de constituir a sua própria família.

Jesus foi o Líder Espiritual mais livre e respeitador da liberdade humana que a história conheceu. Um autêntico discípulo e apóstolo de Cristo se conhece pelo modo como trata a liberdade de consciência de seus semelhantes.

2)Um líder tem que ser paciente. Uma boa parteira sabe aguardar o momento mais propício ao nascimento de um bebê. Sabe que é o próprio bebê que vai organizar o processo todo.

A atividade de um Líder Comunitário é sob muitos aspectos semelhante a de um parteiro. A diferença está em que a parteira pode voltar para casa após o parto. O Líder Comunitário não pode fazer o mesmo, pois a evolução espiritual dos membros de uma Comunidade é contínua, dinâmica e diversificada. Nascimento e transição fazem parte de um processo ininterrupto e sem solução de continuidade. Sempre há alguém a ponto de despertar para uma nova fase do seu desenvolvimento espiritual. Uns precisam de mais apoio, outros necessitam de mais liberdade. E assim por diante.

Isso tudo obriga o Líder a manter-se vigilante, atento ao que se passa no íntimo de cada um. Em lugar de pedir (ou até mesmo exigir) conta de consciência com hora marcada, deve tornar-se tão disponível que qualquer um pode encontrar-se com ele a qualquer hora do dia ou da noite. Não pode ser escravo de horários ou de formalidades. Deve permanecer senhor do seu tempo.

3)Jesus foi um homem extraordinariamente compreensivo, compassivo e misericordioso. Não só tolerava atitudes reprováveis. Mais do que isso: procurava levar o “pecador” a compreender que até o pecado oferece lições que podem ser aproveitadas para o bem. Uma “pedra” na qual acabamos de tropeçar pode ser utilizada muito bem como parte da fundação de um futuro projeto de santificação. Agostinho de Hipona era um homem de desejos incontroláveis, como o fora antes dele Paulo de Társis. Paulo transferiu para a sua fé em Cristo o seu zelo fanático pela Lei. Transformou em Amor o que antes se parecia mais com ódio e sede de justiça.

Agostinho descobriu aos 30 anos de sua vida que tudo o que êxtases de amor erótico lhe podiam proporcionar, o Amor a Cristo lhe poderia oferecer também. Inteligente como era, descobriu em si a presença ativa de dois tipos de desejo: o desejo que escraviza e o desejo que liberta. Agostinho cometeu o erro de identificar o amor erótico como fonte geradora de escravidão. Estigmatizou o desejo carnal como fonte de pecado. Foi ainda mais longe: transformou a própria concupiscência carnal em pecado. Encarou o próprio desejo sexual como pecado, um pecado para o qual não há perdão nem absolvição, a não ser a continência total.

Toda nossa moral sexual é fruto de um equívoco pelo qual Agostinho é o responsável maior. Seu conceito de castidade é muito maniqueísta e pouco cristão. Para ele, como para o maniqueísta, o próprio desejo já é pecaminoso em si. O prazer sexual degrada a quem o experimenta. Agostinho não conseguiu descobrir o elo de união que liga entre si o amor e o desejo sexual. Neste terreno a Ética de Jesus é muito mais generosa e livre.

Um Líder Comunitário Cristão não pode ser um asceta para quem castidade é sinônimo de abstinência sexual e castidade perfeita é igual à abstinência total.

Jesus veio não para acrescentar mais repressão a que já existia. Veio redimir também o desejo e os prazeres da vida humana. Não foi um puritano nem se portou como asceta ou como inimigo das coisas boas da vida. É isto que um Líder Comunitário Cristão deve ter em mente se quiser ser tão compreensivo como o foi o Divino Mestre.

4)Qualidade que não pode faltar a um bom Líder Comunitário é a dedicação, virtude que o leva a ir ao encontro dos companheiros em vez de esperar que venham até ele. Não pode comportar-se nem como tecnocrata, menos ainda como burocrata ou funcionário. Seu papel se parece muito com o de uma boa e solícita mãe de família. Corre, no entanto, o risco de tornar-se escravo da função a ponto de não ter mais tempo para pensar em si mesmo. Além deste, existe outro perigo: o de transformar a sua dedicação em direito de posse. Meus filhos, diz a “mãe brasileira”; meus paroquianos, diz o pároco superzeloso. Minha diocese, diz o bispo. Todos agem como se fossem proprietários e donos das pessoas a que dedicam seus cuidados.

Outro equívoco bastante comum consiste na crença de que o amor confere direitos a quem o pratica. Direito à gratidão, à obediência e ao respeito. Muita frustração e muito complexo de vítima têm sua origem na crença de que o amor confere direitos. O amor não serve para adquirir méritos. O amor não é nenhuma “moeda” com a qual é possível negociar.

Amar é algo tão distante dos padrões de reciprocidade “mercantil” que predomina em nossa sociedade que o melhor a fazer é admitir que ainda não sabemos o que é amar como Deus ama.

A palavra cuidado vem do latim = cura. Expressa um tipo de dedicação mais interessado na promoção da saúde do que no combate à doença. A Dra. Elisabeth Kübler-Ross, famosa por suas pesquisas sobre a morte e o morrer (= tanatologia), é de opinião que a parafernália tecno-farmacológica pouco irá contribuir para melhorar as condições de saúde da humanidade. Se quisermos homens e mulheres mais saudáveis, matrimônios menos hipócritas, etc., vamos ter que investir muito mais amor em nossos relacionamentos sociais e em nós mesmos. Porém, antes de mais nada, temos que mudar de forma radical nosso conceito de amor. Temos que passar das mil e uma formas de amor bem calculado para o Amor Incondicional. O pai que abraça o seu filho homossexual, drogado e aidético com o mesmo amor com que o pai do filho pródigo da Bíblia o abraçou na hora do reencontro, entendeu o que é Amor Incondicional. Nada há no mundo capaz de apagar em definitivo a centelha divina que arde bem no íntimo mais íntimo de cada ser humano. Só o amor tem o poder de curar! Laboratórios e farmácias estão a serviço do combate à doença, mas pouco contribuem para melhorar as condições de saúde do povo.

Clínicas psiquiátricas incidem no mesmo erro: o de que curar uma pessoa é livrá-la da sua doença; que tem saúde aquele que não está doente. A verdade, porém, não é esta. Saúde e doença fazem parte do mesmo processo evolutivo-espiritual. Há lições que só a perda da saúde é capaz de nos ministrar. Quem sabe: é perfeitamente possível que a doença faça parte da própria saúde!

Constrangedora, sob todos os aspectos, é a atmosfera que reina em nossos hospitais! Mesmo os mais bem equipados oferecem ao doente tudo, menos calor e contato humano. Lá tudo é feito de acordo com parâmetros profissionais. Nada de envolvimento afetivo e emocional. Médicos e enfermeiros são profissionais da saúde. Empenham o melhor da sua dedicação à saúde futura do paciente. A pessoa do paciente e tudo o que com ela se relaciona não faz parte do seu campo de competência.

Um líder autêntico não é um profissional e não se comporta como boa parte dos profissionais da medicina costuma fazer. Não lida com “pacientes” e não encara eventuais “doenças” como desgraças ou como oportunidade de aumentar sua influência sobre os membros da comunidade. Não explora a fraqueza deles em proveito de sua própria imagem de “benfeitor” caritativo e generoso.

É muito difícil ser líder de verdade, pois teria que ser de certa forma um “alter Christus”, um outro Jesus. Encontrar um é ainda mais difícil porque ele evita as “luzes da ribalta” e não costuma frequentar as manchetes dos jornais. A medida da sua autenticidade é o desejo de permanecer incógnito, anônimo. Se for cristão procurará, como o apóstolo Paulo, “permanecer escondido com Cristo em Deus” (Cl 3,3).

Oculto, mas não disfarçado. O falso líder costuma ocultar-se por trás da função de conselheiro de reis e papas. Age à sombra do poder no papel de “válido” e de “eminência parda”. Não há tirano e ditador que conseguiria permanecer no poder por mais do que 24 horas não estivesse a cercá-lo a corte de “fiéis cumpridores” de suas ordens. É fácil aparentar liderança quando se dispõe de poder absoluto. Pouca diferença faz o traje que usa. Se é farda ou batina.

5)Um chefe autoritário será sempre um falso líder. Suas decisões serão inócuas e até contraproducentes se não contarem com o consentimento e a aprovação da comunidade.

Quando o Concílio Vaticano I (1869-70) definiu as condições em que um papa pode fazer uso da sua infalibilidade ligou este direito a “receptatio fidelium”. Isto quer dizer que para ser válida uma decisão papal necessita da “aceitação” do povo católico. A vontade de um papa só é soberana quando estiver em sintonia com a vontade soberana do Povo de Deus. Não se pode impor um fardo a alguém sem saber se ele está disposto a aceitá-lo. E se é capaz de carregá-lo.

Santo Inácio de Loyola só dava uma ordem quando tinha a certeza de que a ordem seria aceita sem constrangimento. A Inácio importava mais o modo como suas ordens eram recebidas.

Paulo VI se deu mal com a publicação da Encíclica Humanae Vitae por ignorar solenemente a “Vox Populi”, incluída opinião de cardeais e bispos.  O papa João Paulo II se deu mal quando tentou excluir as mulheres em caráter definitivo do acesso ao ministério sacerdotal.

Um autêntico líder sabe por instinto como distinguir um consenso forjado de um consenso espontâneo e livre. Não acredita em aplausos nem no parecer de maiorias forjadas. Não acredita em números, em estatísticas, em tecnocratas ou burocratas.

A Igreja católica é um lugar saturado de espaços  já tomados por leis e prescrições. O espaço reservado à iniciativa particular é extremamente reduzido e se encontra submetido à aprovação eclesiástica. As maiores vítimas de tudo são as Comunidades Eclesiais de Base. Basta que alguém se lembre de que a Igreja nasceu longe de sacerdotes e templos e se ponha a pôr em prática o modelo eclesial de Paulo para que seja tratado como herético e inimigo da Igreja. O lado forte do genuíno líder é a empatia, a capacidade de “sentir com os outros” e de se colocar em seu lugar. Sabe, como Paulo, “rir com os que se alegram e chorar com os que choram” (Rm 12,15).

Todas estas manifestações não seriam mais que encenação teatral se não partissem do fundo da alma. A compaixão é muito mais do que um belo sentimento, envolve sofrimento e é uma forma de participar efetivamente do sofrimento como da felicidade de uma outra pessoa. O que contribui para tornar o sofrimento “intolerável” é o sentimento de impotência, a incapacidade de poder minorá-lo.

Quem se dispõe a acompanhar seus irmãos no caminho da ascensão espiritual não pode gastar muito tempo pensando em sua auto-realização pessoal e sua própria felicidade. Esta será consequência de uma vida integralmente votada ao crescimento espiritual de seus semelhantes. “Quem quer salvar a sua vida perdê-la-á” (Mt 16,25). E aquele que a perde por amor a receberá de volta em plenitude (Cf.Lc 17,33). A morte de que Jesus fala é transitória, como foi a sua morte na cruz. Mais que morte é renascimento.

Um ramo novo da psicologia começa a ocupar-se com este fenômeno: é a chamada psicologia transpessoal. Ela pesquisa os planos da consciência total que transcendem os limites do ego individual. Já é grande o número de cientistas que se dedicam ao estudo dos planos mais elevados e sutis da consciência humana. Mergulham em profundezas e em altitudes que Freud ignorou. Supraconsciente, consciência espiritual, Eu Superior são termos que já fazem parte do vocabulário de um bom psicólogo moderno.

Freud se dizia materialista e fazia pouco caso de aspectos da realidade que não pudessem ser enquadrados em conceitos científicos. Freud tratou seus pacientes mais como máquinas emperradas do que como seres livres e espirituais. Sua doença provinha, segundo seu diagnóstico, de seu desajuste social. Para ele a saúde psíquica é uma questão de equilíbrio entre o que o indivíduo deseja para si e o que a sociedade tem o direito de esperar dele. Freud atribuiu prioridade moral à luta do homem contra a libido. Não era anarquista. Pelo contrário: foi um dos últimos defensores da Santa Aliança. Era um conservador “fichado”. Seu pioneirismo é mais aparente que real.

6)Só pode ser líder quem é grande conhecedor da alma humana. Deve possuir conhecimentos psicológicos fora do comum. Um bom líder é sempre um ótimo psicólogo.

Psicólogo não é apenas aquele estudioso que disseca o íntimo das pessoas, separando o que é possível separar. Freud era mestre na arte de separar e dividir. Seu lado forte era a psicanálise. Para conhecer um relógio não basta decompô-lo em suas partes. É preciso ver como funciona.

Um Líder Comunitário Cristão não pode imitar Freud ou Marx. Para Freud e Marx o bom funcionamento é mais importante do que aquilo que se passa no íntimo da alma. Eram materialistas pragmáticos. Não ter problemas e não criá-los na vida de outros era para ambos o ideal e sinal de boa saúde psíquica e social.

Uma comunidade é uma entidade social que funciona no limite do que um mecanicista entende por ordem psicológica, ética e social. Uma comunidade judaica reunida na sinagoga pode dar a um cristão uma ideia do que Paulo entendia por Igreja: espaço aberto e propício à discussão de ideias novas!

Um líder autêntico não é um psiquiatra porque não pode contentar-se com sanar os aspectos mórbidos de pessoas e estruturas sociais. Uma comunidade é essencialmente mais do que um nosocômio, uma espécie de hospital destinado à tarefa de curar doentes ou de converter pecadores. É tudo isto e muito mais. É um espaço utópico, um lugar fora do lugar em que até mesmo o cristão comum costuma conviver em sociedade com outros. É um lugar em que se vive antecipadamente a “Communio Sanctorum”, a mais perfeita comunhão de almas que se possa imaginar. Numa comunidade as coisas não acontecem do mesmo modo que num quartel. Num mosteiro ninguém marcha ao som de tambores. Lá ninguém prega a luta de classes. E lá ninguém se prepara para outra espécie de luta que não seja a do amor contra a prepotência do ego e de seu instrumento ideológico favorito que é a imposição de leis.

Um psiquiatra se dá por vitorioso quando consegue expulsar e banir a doença da vida de seus pacientes. Parece muito, mas na realidade é bem pouco em comparação com o que Jesus entendia por saúde. É um erro imaginar que a saúde começa onde a doença termina. O mesmo se dá com o amor: não toma o lugar do egoísmo!

7)Um autêntico Líder Comunitário Cristão é acima de tudo pessoa de excepcional capacidade de Amor. Seu modelo é Jesus. Não há mais ninguém do qual possa aprender como amar. Esta, a de amar de verdade, é uma capacidade que não se adquire em academias, pois não é fruto de aprendizado. É puro dom da graça de Deus, concedido a quem o pede, não a quem o merece. Não é concedido aos que ocupam cargos. Não confere aos que o recebem outro privilégio que não seja o de poder servir melhor. É próprio do dom da caridade desarmar o espírito de quem o recebe de forma tão completa que é permitido comparar o resultado com a morte. O Amor-Ágape varre do relacionamento entre pessoas que se amam assim, tudo o que lembra distância e separação. Elimina por completo qualquer espécie de medo. Transforma em Temor de Deus o medo servil. Não necessita de leis para sustentar-se. É o modo mais eficiente de participar do Poder Divino. Não é concedido aos poderosos porque estes já substituíram em seu íntimo o culto da caridade pelas mais diversificadas formas de culto do poder. “Bendigo-te, Pai, porque escondeste este conhecimento dos sábios e poderosos e o revelaste aos humildes e pequeninos” (Lc 10,21).

No Reino de Deus aquele que se considera grande, é, na realidade, o último e o menor de todos. O Amor só será verdadeiramente divino se for incondicional. Toda vez que acrescentamos um “fusível” ou outro dispositivo qualquer de segurança a nossos gestos de amor, estamo-nos colocando fora do alcance da graça de Cristo. O Amor que Cristo nos veio trazer não é apenas sinônimo de morte. É, acima de tudo, sinônimo de Ressurreição.

É fácil encontrar hoje pessoas que depositam sua esperança na teoria da reencarnação. Um cristão pode dispensar a fé nesta teoria porque pode contar com uma “teoria” muito mais consoladora: a Ressurreição!

A fé na Ressurreição dá a uma Comunidade Cristã o necessário embalo que lhe permite decolar e se distanciar do pequeno mundo dos interesses imediatos. Seria um erro extremamente perigoso se uma Comunidade Cristã se transformasse em instrumento político no sentido que a palavra possui no contexto atual. Política se faz dizendo o que o povo quer ouvir. Prometendo o que deseja. E por aí afora!

Não são poucas as Comunidades Eclesiais de Base que se enfuneraram no momento em que se prestaram ao papel de agentes político-partidários de ideologias totalmente estranhas ao Espírito de Cristo.

No centro imaginário social de Marx se encontra a Mesa Bem Posta, repleta de iguarias sofisticadas. De todas as necessidades humanas nenhuma é maior do que as que se relacionam com os reclamos do aparelho digestivo.

O homem não é um animal que precisa comer bem para ser feliz. O ateu e materialista Marx não se deu conta de que o homem não pode contentar-se com a perspectiva de ser o animal mais bem alimentado do planeta. A assim chamada Teologia da Libertação incidiu no erro de acreditar mais na sabedoria de Marx do que na de Cristo. Marx nunca saiu do seu mundo de “pequeno burguês”. Opôs-se à Comuna de Paris. Não queria que sua filha casasse com um moço que não fosse capaz de sustentá-la a ela e a seus filhos.

Marx deflagrou um processo social de envergadura revolucionária sem sair da tranquilidade burguesa de um ambiente social suficientemente “liberal” para tolerar suas ideias vendo nelas tudo o que realmente significavam. O mérito maior de Marx está em ter tomado contato com uma dimensão da realidade humana básica, tão básica quanto a pleiteada por Kant e Hegel.

O caráter enigmático da condição humana não faz parte das preocupações epistemológicas de marxistas e comunistas. O perigo mais sério que uma Comunidade Eclesial de Base corre lhe vem de uma Teologia de Libertação incompleta e unilateralmente voltada para a solução de problemas materiais e de natureza política.

Distinguir não significa separar ou menosprezar uma forma de atividade em benefício de outra. Política e Fé religiosa não constituem valores separados e hierarquicamente distintos, mas são complementares. Não se pode subordinar a fé religiosa à ação política e vice-versa. Cada forma de atividade humana possui sua nobreza própria que lhe vem do fato de ser humana e de contribuir para humanizar tanto os que a exercem quanto seus beneficiários mais diretos.

Uma CEB (Comunidade Eclesial de Base) não pode filiar-se a uma determinada corrente político-partidária se quiser permanecer fiel à sua vocação específica que é a de ser estuário sociocultural. Numa CEB deve haver espaço para mais que uma forma de pensamento político. Por ser um laboratório de ideias, uma usina sociocultural destinada a fermentar o imaginário social, a CEB não pode ser “marxista” e seus líderes não podem definir-se como tais. Tudo o que a limita e impede de voar livremente ao sabor de correntes atmosféricas favoráveis deve ser evitado e tido como inconveniente, diria São Paulo (Cf. I Cor 6,12).

Encher a cabeça das pessoas com leis e regulamentos é atitude insensata quando uns poucos critérios de aferição bastam. De uma pessoa moralmente adulta se supõe que ela saiba descobrir por si o que é conveniente. Se Paulo se absteve de impor regras, contentando-se com apelar para o senso crítico dos fiéis de suas igrejas, é permitido a um Líder Comunitário Cristão fazer o mesmo. O amor fraterno substitui com vantagem inegável o mais sábio código de leis. Não há lei que não nasça do medo. Ora, se o amor é o oposto do medo, ele é também o oposto da lei e por isso não pode ser regulamentado. Se Deus é Amor e se o Amor possui em si o poder de tornar supérflua toda a espécie de lei que não seja a “Lex Charitatis” promulgada por Cristo, então chegou a hora de pensar a vida de uma Comunidade Cristã em termos totalmente diferentes e em boa parte opostos ao modelo Tridentino de Igreja.

Uma Comunidade Cristã não é o que seus membros pensam que ela é. Menos ainda é aquilo que seus “superiores eclesiásticos” julgam dela.

Uma Comunidade Eclesial, seja ela de base ou de cúpula, tem que encontrar o seu próprio sistema de autoavaliação. O filho que continua dependendo do beneplácito do pai jamais será outra coisa do que “bom filho da Santa Madre Igreja”. Só conseguirá movimentar-se dentro de um mundo em que a “aprovação eclesiástica” estabelece a vertente entre o que é bom e o que é mau.

O Concílio de Trento (1565) definiu um modelo de Igreja que o Concílio Vaticano I (1869-70) tentou perpetuar e que o Concílio Vaticano II (1962-65) tentou aposentar.

A figura central da Igreja Tridentina é o clérigo. O “pastor de almas”, para ser mais exato. Muito bem: estou falando a quem já se deu conta de que chegou a hora de despedir-se de uma determinada imagem da Igreja de Cristo e passar a adotar uma outra. O problema mais crucial não consiste em saber qual o tipo de jogador que é preciso tirar do campo, mas em saber quem terá condições de substituí-lo.

O Concílio Tridentino ligou o futuro da Igreja ao estamento clerical partindo da premissa de que é a cabeça que determina a saúde do corpo. Enquanto isto, Lutero e seguidores se empenharam em reformar a Igreja a partir da base. Pouca  importância merece o que está acontecendo nos altos escalões da Igreja hierárquica. O que determina o curso dos acontecimentos é o que se passa na base. O povo quer ter certeza de que está sendo bem conduzido. Faz questão de ser conduzido, evitando assim o risco de ter que decidir por si.

Durante séculos as religiões aproveitaram a ausência de uma consciência popular forte e esclarecida para os objetivos de dominação de uma classe privilegiada genericamente identificada como clero.

Quem quer colocar sua fé em Cristo ao serviço do Reino de Deus em lugar de desperdiçar suas energias espirituais e apostólicas em tentativas desesperadas de restaurar um modelo definitivamente superado de Igreja, tem que tomar em consideração, acima de tudo, o que se passa no plano subjetivo das consciências. Não pode perder o seu tempo escutando outras vozes que não as que ressoam no íntimo das consciências.

Boa parte do poder do clero lhe vem da crença de que a consciência de um Pastor da Igreja possui informações e conhecimentos especiais de que os membros do “rebanho” não dispõem. O Concílio de Trento inculcou esta crença e induziu o povo católico a introjetar em seu imaginário religioso a figura do sacerdote elevando-o a um grau de intimidade com Deus em virtude do fato de ser eclesiástico. Por mais de 400 anos a batina foi o símbolo do status sobrenatural do padre. Isto tudo está desaparecendo rapidamente da consciência do povo.

Estão surgindo por toda a parte agrupamentos religiosos inspirados na mensagem de Cristo e, portanto, cristãos, mas que já não se identificam mais como representantes de um cristianismo “confessional”. Tanto católicos como protestantes estão chegando à conclusão de que Augsburgo e Trento são marcas historicamente relevantes, mas de escasso significado dogmático. O intelectual de hoje não está interessado em tomar contato com a verdadeira Igreja de Cristo. Para ele as Igrejas fizeram o que puderam para desfigurar a verdadeira face de Cristo.

Jesus veio para unir e não para separar. Ora, um protestante fiel à Confissão de Augsburgo, assim como a identidade de um católico tal como a definiu o Concílio de Trento, não possuem caráter definitivo.

Quem quer ser aceito pelas massas populares deve apresentar respostas e soluções definitivas. Para assegurar seu poder, os Imperadores Romanos criaram o mito da Roma Eterna. Constantino convenceu os papas de que também eles e sua Igreja podiam participar desta “garantia histórica” de eternidade. Os altos escalões do mundo religioso, em geral, se preocupam mais com excluir do debate o máximo de “assuntos quentes”.

A palavra “irenismo” vem do grego, “irene” e significa paz. O pacifista odeia a guerra. Também a guerra de palavras e o choque de ideias. Paz e ordem são valores incompatíveis com liberdade de pensamento e pluralismo de ideias e crenças. É assim que os adeptos do neofundamentalismo dominante na Igreja católica atual concebem a reta ordem moral e eclesial. “Chega de discussões”, dizem, “vamos recolocar no seu devido lugar o que o Concílio Vaticano II tirou do prumo”. “O Concílio foi longe demais”, afirmam os que não foram preparados para viver numa Igreja que teve a coragem de abrir mão da sua condição de “rocha de Pedro” e de “Sacramento exclusivo da Salvação”.

A maior parte dos problemas que ameaçam uma Comunidade Cristã atual são de natureza psicológica e não teológica ou moral. É mais fácil juntar num chiqueiro cem porcos do que criar um zoológico em que cobras, macacos e tigres se vejam obrigados a dividir entre si o mesmo espaço físico.

Uma Comunidade Cristã em que o acesso ao espaço físico não é igual para todos, já não é cristã. Um zoológico que nada mais é do que um conjunto de “campos de concentração” manifesta em toda a sua extensão e profundidade o baixíssimo nível da sua consciência ecológica.

O que um neofundamentalista como o  Papa João Paulo II mais teme, é que uma aliança entre lobos e ovelhas possa custar-lhes o cargo de “pastores”. Quem quer o poder tem que fazer de tudo para que não falte nunca no imaginário popular a figura do “inimigo”, do “leão devorador”, do “lobo voraz”.

Uma Comunidade Cristã deixará de sê-lo na medida em que vier a dar espaço ao medo. Quem nada tem a perder e tudo a ganhar não precisa ter medo. Um barco em que Cristo se encontra pode desafiar qualquer tempestade. Uma Comunidade Cristã é tão indestrutível quanto é o tamanho da fé em Cristo de seus membros. Ao Líder Comunitário Cristão cabe a tarefa de manter viva esta fé, tanto pela persuasão quanto pelo exemplo.

Texto de Pe. José Marcos Bach, SJ – Dr. Em Teologia Moral.




                                              C R I S TO G Ê N E S E

"A renovação da cristologia leva a uma nova compreensão do cristianismo, ou seja, da herança de Jesus de Nazaré. Uma nova compreensão da cristologia obriga a fazer uma revisão de todos os temas centrais da teologia cristã... A orientação está num retorno aos Evangelhos e à vida terrestre de Jesus."
                                                            José Comblin

1. O dogma da Encarnação de Deus envolve um dos aspectos fundamentais da fé cristã. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). “O Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). A palavra Verbo, Logos em grego, pode ser traduzida como pensamento. O universo todo deve sua origem a um Pensamento de Deus. Este Pensamento se tornou matéria num primeiro momento do processo criador de Deus. Em seguida veio o segundo momento em que matéria se tornou vida. Num momento posterior a vida se tornou novamente pensamento. Do pensamento resultou o conhecimento, que a Bíblia identifica com amor. O amor gera a Comunidade dos Filhos de Deus.

O que faz da Igreja de Cristo um corpo social unido e coeso não é a submissão de seus membros à autoridade de seus chefes visíveis, mas o “amor com que seus membros se amam uns aos outros” (Jo 15,17). Onde duas pessoas se unem atraídas pela força de um amor comum, lá Cristo se torna presente sem mais, “ipso facto”, e não é necessário convidá-Lo (Cf. Mt 18,20). Esta tão misteriosa presença de Deus na alma tem muito em comum com o que acontece quando uma mulher engravida.

2. A palavra Cristogênese foi empregada por Teilhard de Chardin para descrever o processo pelo qual Cristo se encarna sempre de novo toda vez que uma alma abraça a fé em Cristo. Em vez de depositar sua esperança em sucessivas reencarnações, o cristão a deposita no Cristo Ressuscitado que volta a se encarnar toda vez que uma alma nasce para a Vida em Cristo. E isto só acontece quando ela abandona a fé em deuses e ídolos e passa a depositar toda a sua esperança no amor com que Cristo a amou muito antes que ela pudesse despertar e tomar consciência deste Amor!

É este o momento de salvação ao qual Jesus se refere quando diz: “Convertei-vos, pois o Reino de Deus está próximo” (Mt 4,17). Converter-se significa muito mais do que arrepender-se do mal praticado. Significa mudança total e radical de conduta. Quem se converte para a Vida em Cristo passa a queimar o que adorava até então e a adorar o que até então não fazia parte do seu campo de interesses. Converter-se significa essencialmente mais do que mudar seu modo de agir. É todo o seu modo de ser que muda radicalmente de sentido. Sua autoconsciência não é mais a mesma de antes! Já não entende a autorrealização do mesmo modo como a entendia antes, como a entende um budista, por exemplo. Assim como a Phenix, a mitológica ave que renascia periodicamente das próprias cinzas, um cristão só se torna cristão de verdade se vier a renascer das próprias cinzas. É neste sentido que temos que passar a interpretar a palavra de Jesus: “Quem quiser salvar a sua vida a perderá” (Mt 16,25). Algo do que herdamos de nossos antepassados tem que morrer se quisermos participar da Vida Eterna prometida por Jesus! A criança, quando nasce, troca uma vida despreocupada por outra cheia de imprevistos!

3. A ideia de que a Encarnação do Verbo é um processo que ainda não foi concluído, parece tão estranha que quase não aparece nos manuais de Cristologia. A maioria dos teólogos não sabe o que fazer com a tese de que em toda alma humana há espaço para completar o que falta à Encarnação plena de Cristo. Foi o apóstolo Paulo que melhor compreendeu esta tão misteriosa necessidade que Cristo tem de nascer sempre de novo na alma dos que nele creem. “Sofro até ser Cristo formado em vós”, escreve ele na carta aos gálatas (Gl 4,19). “Nenhum de vós vive para si mesmo” (Rm 14,7). “Para mim o viver é Cristo” (Gl 2,20). “Cristo vive em mim” (Gl 2,20). “Logo, já não sou eu quem vive” (Gl 2,20). No Evangelho de São João lemos esta frase atribuída a Jesus: “Se alguém não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus” (Jo 3,3). Este novo nascimento em nada se parece com o nascimento biológico, pois é de natureza espiritual (Cf. Gl 4,29). É pela fé e pela ação da graça que Cristo se torna presente na alma humana.

4. Cristogênese é uma palavra que Teilhard de Chardin emprega para definir a elaboração no decurso da Evolução do Cristo Total, isto é, do Corpo Místico unido a Cristo: “Toda a criação só existe afinal em função de sua significação como elemento de Cristogênese” (Hubert Cuypers – Vocabulário Teilhard – Ed. Vozes, p.30). O termo aparece em “O Fenômeno Humano” – Ed. Vozes p.329, neste contexto: “Se o mundo é convergente, e se Cristo ocupa o seu centro, neste caso a Cristogênese de São Paulo e de São João não é mais nem menos que o prolongamento, ao mesmo tempo esperado e inesperado da Noogênese em que, para a nossa experiência, culmina a Cosmogênese. Cristo se reveste organicamente da própria majestade da sua criação. E por isso mesmo é, sem metáfora, através de toda a extensão, de toda a espessura e de toda a profundidade o mundo em movimento que o homem se vê capaz de experimentar e descobrir o seu Deus. Poder dizer literalmente a Deus que o amamos não só com todo o nosso corpo, com todo o nosso coração, com toda a nossa alma, mas também com todo o universo em vias de unificação, eis uma oração que só se pode fazer no espaço-tempo” (O Fenômeno Humano, Teilhard de Chardin – Ed. Vozes, p.329). Crístico e cristificar são termos que têm a mesma raiz. “O crístico corresponde a um estado de união com Cristo da humanidade em evolução ativada por sua ação” (Vocabulário, p.28). Característico do pensamento cristológico de Teilhard é sua relação íntima com o processo evolutivo não só da humanidade, mas do universo inteiro.

5. A ideia de que o cosmos todo está grávido de Cristo, se não é original de todo, ao menos é bastante inusitada. Mais estranha é a crença de que a Cristo ainda falta uma dimensão e que o Cristo Total ainda está por nascer. Aceitamos, sem dificuldade, que à humanidade lhe falta muito e que ela se encontra longe de ter alcançado a sua estatura plena, que é a de Cristo, mas repugna-nos admitir que à estatura plena de Cristo lhe falte algo de tão importante quanto a plenitude e que cabe a pobres seres humanos a missão de fornecer a Cristo o que ainda lhe falta. Poderá faltar a Cristo algo sem o qual permanecerá incompleto? E não será pretensão atribuir ao homem a faculdade de prestar a Cristo o mesmo serviço que toda a mãe presta a seu filho?

Não admira, pois, que a Cristogênese encontre tão pouco espaço no pensamento Cristológico atual. Já se passaram mais que meio século desde a morte de Teilhard, mas é provável que tenhamos que aguardar por outro tanto de tempo até que Teilhard deixe de ser o ilustre esquecido que é atualmente. Seu nome é lembrado, mas seu pensamento continua tão esquecido quanto o eram as músicas de Johan Sebastian Bach durante os oitenta anos após sua morte. Parece ser sina de todo gênio ser descoberto como tal só depois da morte. Quem pensa adiantado e à frente do seu tempo não deve pretender ser compreendido pelos do seu tempo.

São poucos os escritos que Teilhard conseguiu publicar em vida. Mas o fato de ser alvo de uma censura implacável parecia não perturbá-lo muito, pois tinha plena consciência não só do valor de seu pensamento, como do tempo em que seria visto como atual. Teilhard era, acima de tudo, um intelectual, um pensador. O fato de ser um pensador cristão é responsável pelo modo personalizado como trata a relação do homem com Deus. Para ele a Verdade é uma Pessoa, a Pessoa de Cristo e se manifesta primariamente como amor muito antes de fazer parte de um ensinamento. A verdade não se aprende como se aprende uma língua. A verdade ou se aceita, deixando-se possuir por ela ou nos contentamos com o produto de nossa própria mente. A verdade de Teilhard é Cristo e o seu Cristo é onipresente, pois ocupa todos os espaços deste imenso universo.

6. É este o Cristo que pede para nascer sempre de novo em cada ser humano. O eleito já não é mais o representante de uma raça superior ou o membro de uma classe social privilegiada, mas todo aquele que, escutando a voz interior da graça de Deus, abraça a fé em Cristo. Uma das primeiras providências que o feto recém instalado no útero da mãe adota consiste em criar um cordão umbilical através do qual se abastece com os nutrientes indispensáveis ao seu crescimento. No caso que estamos analisando, cordão é a fé amparada pela graça. Sem a fé a graça divina não teria como operar. A fé é o chão onde a graça deita suas raízes. Depois de tê-la curado do seu mal, Jesus despediu a mulher, dizendo-lhe: “Vai em paz que tua fé te curou” (Mt 9,22).

Mas até a fé não teria este poder não fosse a graça a animá-la. Por isso pode-se resumir todos os passos que conduzem à salvação das almas a um único denominador comum: “Tudo é graça e dom gratuito de Deus, e nada do que necessitamos para a nossa salvação pode ser merecido por nós”! Qualquer tentativa de planejar o futuro da humanidade sem Cristo, nos levará mais uma vez a criar uma civilização próspera, mas culturalmente tão selvagem quanto o que nos é dado ver nas selvas da ilha de Bornéu. Ou será que os campos de extermínio nazistas eram mais civilizados do que o espetáculo de um ritual antropófago proporcionado por nativos das ilhas dos Mares do Sul?

7. Se o Cristo Total ainda está por nascer e se cada ser humano está predestinado a participar deste novo Natal, deste novo Nascimento do Filho de Deus, então é hora de abrir em nossa fé uma janela nesta direção! Podemos, apoiados nos ensinamentos dos apóstolos Paulo e João, acrescentar a Cristogênese, não apenas ao nosso conhecimento teológico, mas incorporá-la como experiência mística à nossa vida de fé! Com o mesmo enlevo e felicidade incontida com que a mãe acompanha dia após dia o que se passa em seu seio!

Experimentar a fé em Cristo como êxtase é algo bem diferente do que confiná-la à aridez de um gesto ritual. Traduzir a fé em cerimônias é sem dúvida um modo bem pobre de manifestar sua relação com a Vida! Nem Cristo nem o apóstolo Paulo eram homens dados à prática de cerimônias. Folheando as páginas dos Evangelhos tem-se a impressão de que era no meio do povo simples que Jesus se sentia à vontade. E o apóstolo Paulo dá a entender em suas cartas que era entre seus gálatas e coríntios que ele se sentia em casa.

Na medida em que o relacionamento da alma com Deus se torna mais íntimo e afetuoso, ele se torna mais personalizado e menos cerimonioso. Longas e monótonas cerimônias litúrgicas não são indício de elevado nível religioso. Pelo contrário. Tem carradas de razão o apóstolo São Tiago quando afirma que “religião pura e sem mácula perante Deus e o Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas em sua tribulação e manter-se puro do contato com este século” (Tg 1,27).

Cerimônias que em nada contribuem para melhorar o nível do relacionamento social e que ignoram a existência da legião de miseráveis não são apenas estéreis, mas são tão hipócritas e falsas quanto a religião que as patrocina. É isto que o apóstolo Tiago nos quer lembrar. E deste lembrete tem tanta necessidade o cristianismo de hoje quanto os primeiros cristãos! Louvar a Deus num belo e bem ornamentado Templo é fácil. O difícil é descobrir a sua presença numa favela dominada por traficantes e onde quem dá as ordens é o crime organizado. Louvar a Deus de “barriga cheia” pode ser muito bem um gesto tão pouco religioso quanto blasfemar o seu Nome. Quem ainda não descobriu que todo gesto de pompa e manifestação de poder e de superioridade é totalmente incompatível com a imagem de Deus que Cristo nos veio revelar, faz parte de uma espécie de cristão mais espúrio do que autêntico, e que para felicidade nossa está em vias de extinção. As igrejas e os templos estão começando a ficar vazios. Isto é altamente significativo.

8. A ideia de um Deus que ainda continua crescendo e que ainda não atingiu a sua estatura plena só pode ser vista com descrédito por quem aprendeu, desde a infância, a ver a Deus como Ser infinitamente perfeito. Com medo de incorrer em heresia e de ser taxado de panteísta não só distinguimos a perfeição de Deus da de suas criaturas. Estabelecemos um cordão sanitário entre a Suprema Perfeição de Deus e o mundo notoriamente imperfeito dos homens. A intenção era boa: pois o que queríamos era salvaguardar a honra de Deus, não permitindo que sua imagem viesse a ser maculada com o contato com nossas imperfeições. Mas já nos primórdios da era cristã apareceu Tertuliano para recordar aos cristãos que a glória de Deus e a glória dos homens não constituem mundos separados ou até mesmo antagônicos. “Gloria Dei est gloria hominis”, dizia ele. E a seus ouvintes dizia: “Cristão, lembra-te da tua dignidade”!

Mas quem antes de Tertuliano desferiu o golpe de morte à tese de que a glória dos homens é incompatível com a maior glória de Deus foi o próprio Cristo quando disse: “Sede todos perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5,48). A medida da perfeição a que um cristão é chamado por Cristo é a perfeição do Pai Celeste. Em outras palavras: “A humanidade só terá atingido a sua perfeição plena quando sua união com Deus for também total, plena e completa”.

O horizonte que separa a humanidade presente do seu futuro não é limitado. O ponto Ômega não deve ser visto como um termo final, como termo de chegada, mas como ponto de largada, pois o mesmo Cristo que está esperando no termo final do processo evolutivo é também o Cristo que o estimula a nascer sempre de novo e a crescer sem cessar. Como um pai digno deste nome cresce juntamente com o filho, do mesmo modo o Pai Celeste cresce também na medida em que os seus filhos vão se tornando adultos, emparelhando em estatura com a do seu Filho Primogênito. Cristo, como bom Filho, pediu ao Pai que lhe desse muitas irmãs e muitos irmãos. O que faz de cada novo membro do Corpo Místico de Cristo um Filho de Deus é o fato de encarnar-se em cada um deles!

É sem dúvida um erro lamentável dar por encerrada tanto a obra criadora de Deus quanto a Encarnação do Verbo Divino. A crença de que com a morte do último apóstolo Cristo deixou de se revelar e de dizer o que pensa é por demais ingênua para ser levada a sério. Deus já não se manifesta mais como no Sinai nem como o fez no Monte Tabor, mas basta olhar para o cálice de um lírio do campo ou para os olhinhos de uma criança para sentir que Ele está mais perto de nós do que conseguimos imaginar. Desde criança fomos ensinados a procurar Deus olhando para cima, para o alto. O Cristo que após a Ressurreição subiu ao céu foi o Cristo histórico, mas o Cristo Interior, Aquele do qual Santo Agostinho diz que é “intimior mihi ipso”, “mais próximo de mim do que eu mesmo”, este é o Cristo que se oferece às almas para ser a “Alma” de suas almas! A humanidade já teria sucumbido há muito à sua própria insuficiência e à sua própria letargia não fosse a ação superanimadora do Cristo. Teilhard emprega seguidamente este conceito para descrever e identificar o tipo de ação salvífica de Cristo que a quase totalidade dos teólogos cristãos ignora e desconhece.

Cristo subiu aos céus, é verdade, mas antes de partir deixou claro: “Não vos deixarei órfãos” (Jo 14,18). Teilhard percebeu melhor que outros que quem quer procurar Cristo e encontrá-Lo tem que dirigir-se ao interior das coisas e das pessoas se quiser encontrá-Lo. Jesus operou uma mudança radical no modo de procurar Deus. Quem quer encontrar-se com o Deus de Cristo tem que penetrar no interior das coisas. Quem quer descobrir a dimensão espiritual do universo tem que ir até o coração da matéria, afirma Teilhard. Deus sabe em que Einstein se baseou quando disse que “a essência da matéria é espiritual”. Um dos muitos méritos do mundo científico moderno é o de nos obrigar a desistir de procurar Deus onde Ele não está.

“Deus está em toda a parte, pois Ele é onipresente”! O catecismo tem razão: “não há espaço em que Deus não se encontre”. Mas esta presença de Deus admite graus de intensidade maior ou menor. A presença de Deus não é uniforme, pois não é sempre a mesma. Há espaços e há tempos em que Deus se manifesta mais intensamente. A Bíblia dá a estes momentos o nome de “Kairós”. Não convém confundir “Kairós” com o que no campo litúrgico é definido como tempo sagrado. Durante milênios a vida religiosa dos povos girava toda em torno de templos e de lugares sagrados. Quando a Samaritana perguntou a Jesus: “Mestre, diga-me, onde devemos adorar a Deus, em Jerusalém ou no Monte Garizim?”, Jesus foi taxativo: “nem em Jerusalém, nem no Monte Garizim! D’ora em diante Deus será adorado em Espírito e Verdade” (Cf. Jo 4,24).

Jesus provocou uma verdadeira revolução religiosa ao transferir o espaço-tempo sagrado do espaço físico e do tempo litúrgico para o espaço interior da alma humana! É como se tivesse dito: “aos olhos de Deus nada há de mais sagrado do que a Pessoa Humana”. Depois de Jesus Deus não é mais o “Ser Distante” que era. Nosso Deus, o Deus Cristão de Jesus, é alguém que me oferece a mão e o braço, pois é alguém que adora passear de mãos dadas com seus filhos.“Se alguém me ama e crê em mim, Eu e o Pai faremos nele a nossa morada” (Jo 14,27). A passagem do feto pelo seio da mãe é passageira, mas a presença de Deus numa alma humana é definitiva, pois a vida que Deus veio compartilhar com ela é a Vida Eterna. E mais do que eterna, esta simbiose do divino com o humano acaba por revestir a alma humana com os atributos do próprio Deus! Como em Deus tudo é Ação Pura (= Actus Purus), a alma identificada com seu Criador será eternamente aquilo que Inácio de Loyola define como “Contemplativus in Actione”!

                        Pe. José Marcos Bach, SJ– Prof. e Dr. em Teologia Moral

                                                           Aos 31 de maio de 2006




                                             A  IGREJA  DOMÉSTICA

1. As primeiras Comunidades Cristãs se reuniam para a Celebração Eucarística na casa (domus) de um de seus membros. A conversão ao cristianismo era um fenômeno coletivo: era sempre uma família inteira que se tornava cristã. A mulher, os filhos e até mesmo os escravos acompanhavam o chefe de família quando este se convertia ao cristianismo. Este detalhe explica, em parte, a rápida difusão do cristianismo a partir do momento em que ser cristão já não acarretava as consequências desagradáveis da época das perseguições.

A passagem do cristianismo da condição de religião perseguida para o papel de religião oficial do Império Romano foi um ato político, sem relação alguma com considerações de ordem religiosa. A Constantino e seus conselheiros não interessava saber o que Cristo tinha ensinado. É possível que conhecesse a palavra de Jesus: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A ele pouco interessava o que era de Deus, mas o que o preocupava muito era a “boa ordem” dos negócios do Império, seriamente ameaçados, tanto pela insistência com que os povos bárbaros pressionavam as fronteiras do Império, quanto pelas discussões teológicas entre cristãos. Mais que ninguém eram os gregos que era preciso trazer de olho e de rédea curta.

Naquela época e no ambiente conturbado do país era fácil uma discussão teológica degenerar em conflito armado e até mesmo em guerra civil. Era preciso tomar medidas drásticas que permitissem ao cambaleante Império Romano sobreviver por mais alguns lustros.

Quando o Papa Estêvão recebeu da parte do Imperador Constantino o convite de se encontrar com ele, não podia imaginar o que estava sendo tramado nos bastidores do Palácio Imperial. A Constantino, político hábil, não interessava a sorte do Cristianismo, mas o futuro do Império. Não o interessava a Verdade, mas a paz do Império. Em vez de continuar a perseguir os cristãos, Constantino achou preferível cooptá-los e levá-los a colaborar com ele num projeto comum.

O famoso Edito de Milão (313) não tinha o propósito de devolver aos cristãos uma liberdade que até então lhes fora negada, mas lhe deu, ao Imperador, a oportunidade de manter os bispos e teólogos cristãos sob controle. O primeiro Concílio conhecido como o de Constantinopla foi convocado por ele e tinha como objetivo pacificar os ânimos. Os seguintes Concílios foram também convocados por imperadores, aos quais o triunfo da verdade sobre a heresia não interessava. Seu objetivo era pôr um fim à discussão e desavenças que só um Concílio tinha o poder moral de dar por encerradas.

Quando quase quinhentos anos depois o papa ofereceu a Carlos Magno, rei dos Francos, a coroa imperial, este retribuiu o gesto do papa concedendo-lhe o domínio das terras que logo depois vieram a formar o território do Estado Pontifício. Esta confusão entre o que é de Deus e o que é de César só veio a crescer ainda mais.

Tudo piorou quando papas e imperadores entraram em conflito nas famosas lutas da “Investidura”. Nessas lutas inglórias a arma dos imperadores e reis era a espada e a arma preferida dos papas eram a excomunhão e o interdito. Estas últimas são instrumentos de intimidação moral de que os papas continuam dispondo até os dias de hoje. No mundo em que vivemos já é raro topar com um rei ou um imperador. A arma preferida de um presidente é o dinheiro. Com dinheiro se consegue tudo, até uma cadeira cativa no céu. Pagando bem, até do fogo do Purgatório se pode escapar.


2. A politização das estruturas eclesiais é uma realidade que continua fazendo estragos. A nomeação de um bispo ou cardeal é um ato eminentemente político, porque o critério determinante não é a necessidade espiritual das comunidades que compõem o corpo visível de uma diocese, mas o voto de aprovação do cardeal prefeito encarregado de fazer a triagem da lista dos candidatos. Sem o beneplácito do bispo, padre algum se torna cônego ou monsenhor.

A politização é um fato e sua abolição uma necessidade. O retorno ao modelo de Igreja dos primeiros tempos não representa um passo para trás, um recuo no tempo, mas um passo para frente, em direção a uma Igreja mais simples e menos politizada. O retorno às estruturas eclesiais das Comunidades do apóstolo Paulo envolve a reconquista por parte das Comunidades Eclesiais de parte significativa da autonomia perdida por obra de políticos e de eclesiásticos ambiciosos.

Não é por mero diletantismo demagógico que o apóstolo Paulo recomenda às suas Comunidades que permaneçam livres e que não se deixem privar da “liberdade com que Cristo as presenteou” (Cf. Gl 5,1). Continua sendo muito grande o contingente dos “que espreitam nossa liberdade que temos em Cristo” (Gl 2,4). A poderosa e bem pouco Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé está aí com esta finalidade: espionar e condenar ao “silêncio obsequioso” vozes dissidentes.

Do cristão, dizia Karl Rahner: “Ou ele será místico ou não será cristão”. O mesmo poderia ter dito da Igreja católica: “Ou ela se torna manifestação viva do Corpo Místico de Cristo, ou pode dar por encerrada a sua passagem por este mundo”! A Igreja do futuro ou será mística ou não merece mais atenção do que a que se dá a um fóssil!

Além de ser extremamente simples e sem diferenças hierárquicas tão pronunciadas como as que hoje distinguem e separam os representantes do clero dos demais membros de uma comunidade, é preciso respaldar o seu cunho doméstico e familiar. O lugar de reunião da Comunidade era a casa (domus) de um de seus membros (Cf. Rm 16,5). Até o apóstolo Paulo tinha “a sua própria casa” (Atos 28,30).

Um ambiente doméstico costuma ser muito menos solene e mais descontraído do que um ambiente público. O homem é a cabeça da família, mas a alma de toda a família é a mulher. Tudo o que uma mulher organiza costuma ser mais belo do que aquilo que sai da organização do homem.

A Igreja Anglicana possui no Rio de Janeiro paróquias presididas por mulheres. Elas, as paróquias e seu templo, chamam a atenção por sua limpeza e pelo ar de “coisa bem cuidada” que transpiram.

Ao transferir-se do setor privado para o setor público a Comunidade Cristã perdeu parte considerável de sua identidade original. As mulheres ficaram apenas com a tarefa de enfeitar a igreja. O culto e os atos que o caracterizam como culto religioso são executados quase que exclusivamente por homens. A despolitização das estruturas eclesiais e o processo de sua redomesticação em curso só pode obter êxito na medida em que nele as mulheres vierem a trocar papéis meramente decorativos por funções mais criativas.

A ordenação presbiterial de mulheres é um primeiro passo nesta direção, aparentemente mais corajoso do que ortodoxo, mas na realidade um passo imprescindível. Por ele a mulher conquista o direito de estender o campo de sua  maternidade ao espiritual em vez de restringi-lo apenas ao biológico.

Confiar a solteirões, que nunca trocaram uma fralda, a tarefa de ensinar a uma menina como ser mãe, só não é visto como atrocidade por quem já perdeu o senso do ridículo.


3. Sempre mais gente passa a morar em centros urbanos e o número dos que ainda permanecem no campo e na roça está diminuindo a olhos vistos. Cinquenta anos atrás morar na cidade era mais seguro do que morar no campo. Hoje a insegurança é geral.

É mais que evidente que no centro de uma megalópole como São Paulo o retorno a um modelo mais doméstico de Igreja toparia com dificuldades praticamente intransponíveis. O mesmo, porém, não aconteceria no caso de uma cidade pequena do interior do Estado que tivesse o mesmo propósito. Numa cidade pequena a vida em família e o contato interfamiliar ainda possuem chances que o campo e a grande cidade já não oferecem mais. Onde a maioria dos moradores possui casa própria e dispõe de um pedaço de chão onde plantar flores e verduras, a sensação de familiaridade com a natureza é bem mais pronunciada do que acontece com pessoas que moram em apartamentos alugados e em prédios enormes.

A rapidez com que é possível mover-se de uma localidade para outra acarretará, com o passar do tempo, uma espécie de fuga dos grandes e supercongestionados centros urbanos para centros urbanos menores. É uma verdadeira insensatez ir morar nas nuvens quando ainda existe tanto espaço ocioso bem perto do chão. É preciso maltratar as mais elementares regras do bom senso para animar-se a dar o nome de lar, doce lar, a um apartamento mais parecido com uma gaiola do que com uma casa.

O que faz de um recinto um lar, uma “domus”, é a atmosfera que abriga. Uma vila romana era toda ela construída em torno de um pátio interior. Nela tudo se abria para este pátio interior. Era lá que a família se reunia. A rua não tinha como entrar neste ambiente tranquilo, onde a segurança era total.

Os judeus da diáspora tinham o hábito de morar em guetos. O gueto era um espaço fechado, reservado e protegido contra estranhos. Boa parte da sua sobrevivência cultural os judeus a devem a seus guetos.

Numa cidade medieval os portões de entrada eram poucos, e, além disso, bem guardados. Comparados com elas, nossas cidades são um prato cheio para a ação do crime organizado. Há nelas mil portas por onde um assaltante pode entrar tanto de dia como de noite.

Quem vem sentado ao volante de um carro sempre leva vantagem sobre o “pobre diabo” que anda a pé. A ditadura do automóvel é inconteste. Milhares de carros partem cada fim de semana dos centros urbanos em direção das praias e centros turísticos do interior. O que não existe é um trem, já não digo um “trem-bala”, nem mesmo a modesta “Maria Fumaça” dos meus tempos de guri.

Banir o automóvel das estradas e do centro das cidades por ora é visto como sonho, mas dentro de alguns anos poderá ser uma necessidade. O automóvel deixa de ser uma bênção e passa a ser uma maldição na medida em que continua dispondo de mais direitos e privilégios do que as pessoas, a cujo bem-estar pretende servir.

O que faz de uma cidade um espaço acolhedor são suas praças. Do ponto de vista sociocultural uma cidade vale o que valem suas praças. O que seria Paris não fossem as suas praças! A praça é por natureza um espaço destinado a ser palco de encontro dos moradores de um bairro. O dono de uma praça não é o turista curioso, mas o morador da sua vizinhança.

Nossas cidades e cidadezinhas são espaços desprotegidos por lei e entregues à ação de bandidos e de especuladores imobiliários. Um vereador ou prefeito que tentasse banir o automóvel das ruas centrais de sua cidade, o mínimo que poderia esperar era perder a seguinte eleição. O automóvel tornou-se um dos mais eloquentes símbolos de liberdade e de progresso do mundo moderno! Mas sem ele, o crime organizado não teria condições de medir forças com os órgãos de segurança.

A Igreja Doméstica só será um lugar seguro se for um espaço isolado e protegido. A paróquia não é este lugar. Uma pessoa só se sente segura e protegida lá onde todas a chamam pelo nome. A Comunidade Doméstica será sempre pequena, pois ela exige que seus membros se amem como Cristo amou e continua amando cada vez mais aqueles que o amam. A lição não é difícil de ser entendida. Bem mais difícil será partir da teoria para a prática.

                                                                       Pe. José Marcos Bach,SJ

                                                                                 Data de 10 de janeiro de 2006.




                    É  PRECISO  PLANTAR  UMA  NOVA  IGREJA

         “Em geral, como demonstra a experiência histórica, cada direção nova de pensamento científico, originada da interpretação de dados positivos, mesmo se escassos, encerra sempre uma boa dose de verdade e supera, ao menos em parte, as concepções precedentes” (Piero Pasolini, Como Nasceu o Universo - Editora Cidade Nova - p.187).

O movimento denominado Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) lançou como slogan: “Temos que plantar um novo país”. O mesmo vale em relação aos que lutam por um espaço mais livre dentro da sua Igreja: “Temos que plantar uma nova Igreja”!

O verbo plantar pode soar estranho, mas vem a propósito, já que Igreja e país são entidades vivas. Planta-se uma árvore porque ela pode crescer e se desenvolver. Um edifício não se planta, mas se constrói. Um país pode deixar de ser um conjunto vivo e transformar-se num conceito abstrato, morto e sem vida. O que resta neste caso é um cadáver, um sonho que se apagou.

A ideologia da globalização está empurrando todos os países e todas as pátrias no rumo da extinção. Nosso planeta está sendo transformado em mercado. Um Grande Mercado, composto de alguns menores, ditos mercados comuns. Comum é, no entanto, a todos eles, a circulação de mercadorias, pois as pessoas não fazem parte deste sistema de trocas.

Deixo de lado os aspectos político-econômicos da crise atual, pois o assunto deste pequeno estudo é outro. Pretendo analisar o impacto que a citada crise estrutural irá ter no campo religioso e especificamente no campo religioso cristão.

1. A Igreja de Cristo

Cristo queria realmente fundar uma Igreja? Qual o perfil?
Queria uma instituição encarregada de zelar pelos interesses do Céu?
Ou queria uma Igreja que cuidasse da comunidade dos fiéis?
Cristo não veio fundar mais uma religião, mas abrir um novo espaço religioso.
Cristo nunca criou um espaço físico especial. Qualquer lugar era bom.
Cristo se inseriu perfeitamente no mundo cultural do seu tempo.
A Palestina ficava no centro do espaço cultural mais efervescente do seu tempo.
O tempo em que Jesus nasceu foi de intensa expectativa e esperança.
Cristo deu novo alento à esperança dos homens.

2. A virada constantiniana

Durante quase 300 anos a Igreja viveu no ostracismo e na clandestinidade. Sua doutrina era chocante demais para os grandes senhores do Império. A Igreja era considerada inimiga do Império.

Há duas maneiras de derrotar um inimigo. Uma é persegui-lo. A outra consiste em cooptá-lo e fazer dele um aliado.

Em 313 o Imperador Constantino escolheu o caminho da aliança e da cooperação entre a Espada e a Cruz. Este evento marcou o fim de um tipo de Igreja e o início de uma outra.

O cargo de Sumo Pontífice Romano passou a ser atribuição do Papa.

Todo este processo de transição não foi tão benéfico para o cristianismo quanto se costuma supor. Ficou difícil saber o que é de César e o que é de Deus. O que é atividade apostólica e o que é atividade política. Todo o poder ficou centralizado em torno da capital Roma. Um único soberano. O pessoal da Igreja tornou-se funcionário do Império. Os cristãos representavam a reserva moral do Império.

Como o problema crucial do Império era de natureza moral, a salvação só podia vir da parte do cristianismo, a única força moral disciplinada.
A Igreja como disciplinadora dos costumes e esteio moral da sociedade. Foi assim que o cristianismo se afirmou ao longo dos séculos subsequentes.
A Igreja mantenedora da ordem.
A abolição da escravatura não coincidiu com o triunfo do cristianismo. Foi no seio do mundo cristão que ela nasceu.
Os países mais ricos são cristãos (ao menos de nome). A existência de classes sociais com direitos desiguais foi incorporada à estrutura da Igreja.
A discriminação da mulher foi assumida pela Igreja.
A igualdade entre pessoas ainda hoje só existe no papel.

3. Superestrutura clerical

Em 70 d.C. os judeus perderam o Templo. Com o Templo deixaram de existir duas instituições religiosas fundamentais na aparência: o sacerdócio e o sacrifício.

Até hoje os judeus sobrevivem sem templos, sem sacerdotes e sem sacrifícios. O que prova que não eram essenciais.

Na época o cristianismo estava ensaiando seus primeiros passos. Alguém dentro da Igreja achou que chegara a hora de ocupar o espaço religioso que o judaísmo deixara vazio. Criou-se a figura do sacerdote em substituição à do presbítero. O bispo tomou o lugar do apóstolo. O profetismo foi esquecido.

A Celebração Eucarística tornou-se o Santo Sacrifício da Missa. O altar voltou ao centro do culto litúrgico. A mesa eucarística serve para separar o espaço reservado ao ministro do altar do espaço em que um leigo pode movimentar-se. Uma igreja-templo era dividida em duas partes: o coro e a nave.

O coro para os cônegos, a nave para o povo. Não demorou e apareceu outra novidade: o trono episcopal. Com ele vieram a mitra, o báculo e o anel. Roupas especiais foram inventadas para marcar a distinção entre clero e povo.

A cultura religiosa tornou-se privilégio do clero. O conhecimento mais profundo das verdades divinas ficou reservado a clérigos. Ao povo dizia-se o que tinha a fazer. A salvação da alma de um fiel era assegurada pelo cumprimento da lei moral. A oração vocal e o cumprimento das obrigações, entre as quais a frequência aos sacramentos, compunham o cardápio religioso do povo. Voltou à tona a crença no poder mágico de certas práticas rituais.

Entre o fiel e Deus foram sendo introduzidos sempre mais instrumentos de mediação. O mais destacado foi a figura do sacerdote. Com o correr do tempo o clero tornou-se uma instituição, uma corporação à parte, sem vinculação jurídica com as comunidades de base. Rege-se por conta própria e só deve explicações a Deus e a seus superiores hierárquicos.

O princípio hierárquico passou a vigorar não só na relação entre clero e povo, mas dentro do próprio mundo clerical. Surgiu a categoria do superior em oposição a dos inferiores, ou súditos. Traçou-se uma linha divisória bem clara entre os que têm poder e os que a ele não têm acesso. A interpretação das verdades da fé e a sua aplicação prática tornou-se monopólio do clero.

O magistério eclesiástico, representado exclusivamente por membros do clero, assumiu a função de árbitro supremo da verdade e do bem. À consciência individual ficou reservada a tarefa de orientar-se de acordo com o ensinamento do magistério da Igreja. A experiência pessoal, este campo tão fértil em conhecimentos novos, passou a ser menosprezada e posta sob suspeita de parcialidade. Criou-se uma nova divisão dentro da Igreja: a Igreja oficial e a Igreja particular. A Igreja docente e a discente.

Uma boa árvore é aquela que possui raízes fortes e bem fincadas no solo. Mas isto por si só não basta. Ela será boa se tiver um tronco robusto e sólido. Por último requer-se que possua uma ramagem adequada. O que lhe dá vida e saúde é a seiva que por ela sobe e desce.

Cada parte tem a sua função específica e a desempenha de forma bastante autônoma. Mas nenhuma das partes basta a si mesma. Todas interdependem entre si. Uma árvore, como qualquer planta viva, forma um todo holístico. Tudo o que cada parte faz é direcionado para o bem deste todo. Cada folha, cada célula pensa no Todo e dele tira o sentido último de sua atividade.

O mesmo vale do animal. O bem do corpo todo determina a atividade da cabeça. O fato de abrigar o cérebro não confere à cabeça um status independente ou de ordem superior. Não fossem o pulmão e o coração, o cérebro morreria em poucos minutos. O coração fornece o sangue. O pulmão o oxigênio.

Um organismo social necessita de sangue e oxigênio como qualquer corpo físico mais evoluído. Um organismo vivo não se constrói como se faz um edifício. Planta-se. Depois de plantado, cresce por si. Traz em si as potencialidades todas de crescimento, juntamente com os padrões que lhe são inerentes. Não precisa copiar modelos, pois já os traz em si.

Apliquemos tudo isso à Igreja de Cristo. Ela é uma planta, um organismo vivo e não um edifício ou instituição. É uma entidade viva e como tal sujeita à lei do crescimento. Sujeita ao mesmo tempo à lei da entropia, à lei da degradação. Como todo corpo vivo está sujeito à lei da morte.

Uma árvore sadia desfaz-se continuamente das folhas mais antigas para que novas possam tomar o seu lugar. Um dos maiores problemas da Igreja católica reside na incapacidade de seus dirigentes de desfazer-se de ramos e folhas que a evolução espiritual da humanidade tornou supérfluos e improdutivos. Rebentos novos não conseguem brotar por falta de espaço. A seiva é desviada para setores que na prática só servem para impedir que o passado ceda lugar ao futuro.

4. As Comunidades Eclesiais

Numa planta são as raízes que elaboram a seiva. O tronco a transmite aos ramos. É na copa que crescem os frutos. É o sol que os faz amadurecer.

Aplicando estes princípios de correlação à Igreja, teríamos o seguinte quadro: no alto, expostas à ação direta do Espírito Santo, encontram-se as Comunidades Eclesiais. É em seu seio que floresce a fé cristã. É lá que ela produz frutos. São os frutos que servem de medida de avaliação da fé cristã.

Que frutos são estes? Certamente não é a quantidade de leis e de verdades definidas a que Jesus se refere, quando diz: “É pelos frutos que se conhece a árvore”.

A razão de ser da Igreja-Instituição são as Comunidades Eclesiais, aqueles pequenos núcleos periféricos, quando não esquecidos por seus pastores, aparentemente incapazes de compreender o alcance da sua vocação.

Os pobres e os humildes estão em condições de compreender a sabedoria do Evangelho de Jesus muito melhor do que os ricos e letrados. É a eles que Jesus falou, aos pequeninos, que as elites sociais costumam tratar com mal disfarçado desdém.

Qual é a verdadeira natureza da cúpula hierárquica da Igreja?

É uma superestrutura que se sobrepôs ao corpo eclesial, absorvendo funções que de direito cabem às comunidades. As comunidades locais foram sendo despojadas de grande parte de sua autonomia e deslocadas para um plano inferior. Agora já não é mais a Igreja que deve servir às comunidades. São estas que devem servir à Igreja. A reta ordem social-eclesial foi invertida.

Dois terços do espaço nobre de um navio de passageiros são reservados a passageiros de primeira classe. Também na Nau de Pedro existem passageiros de primeira classe. A maioria é obrigada a se acomodar no porão do navio.

O Concílio Vaticano I (1869-70) ainda definiu a Igreja (católica, naturalmente) como sociedade perfeita. O Concílio Vaticano II (1962-1965) não teve a coragem de fazer o mesmo.

Nada existe nos Evangelhos que nos autorize a supor que Cristo deixou à Humanidade uma Igreja pronta e acabada. Nem sequer um projeto ou esboço de projeto. Legou à posteridade um espírito, uma intenção e um propósito, juntamente com os meios essenciais de po-los em prática. Esta função Ele a confiou a seus seguidores. Estes, a exemplo do apóstolo Paulo, foram organizando por toda a extensão do império romano Comunidades de Fé em Cristo.

Estas comunidades ou Igrejas locais não obedeciam sempre a um único modelo sociocultural. Neste terreno a diversidade merecia o mesmo respeito que a preocupação pela unidade. Sem esta diversificação a catolicidade perderia o seu sentido e em seu lugar surgiria o império da uniformidade.

Que haja espaço para Igrejas locais dentro do corpo da Igreja universal, é o que de mais normal se pode esperar de um corpo social sadio e bem organizado.

Temos hoje tantas Igrejas particulares que não é mais possível saber qual delas é verdadeiramente universal. São mais de duzentas e cada uma delas representa um ambiente social e cultural fechado em grau maior ou menor. Em todas elas predominam tanto o individualismo quanto o gregarismo e o espírito de rebanho.

Motivo de escândalo não é a diversidade, mas a divisão que as separa entre si. Diferenças que poderiam ter contribuído para enriquecer a todos, foram transformadas em muros que separam. A comunhão solidária de todos em Cristo Jesus desapareceu e com ela também o ecumenismo perdeu seu poder de aglutinação.

Enquanto o ecumenismo não for mais que um movimento político externo destinado a desativar barreiras de natureza jurídica e teológica, suas chances de sucesso serão sempre precárias. Enquanto a preocupação pelo retorno à unidade perdida não vier a constituir elemento básico da consciência coletiva de cada comunidade em particular, o esforço dos dirigentes eclesiásticos dificilmente terá alguma chance real de êxito.

No século XV (Concílio de Florença) já se tentou restabelecer a unidade do mundo cristão por decreto. Não deu certo. Como restabelecer por decreto o que foi perdido não por decreto, mas por falta de espírito ecumênico? Toda estreiteza de espírito sempre termina em cisma. Os culpados não são tanto os que propõem mudanças, quanto os que se opõem sistematicamente a qualquer proposta inovadora. O maior responsável pelo cisma protestante não foi Lutero, mas o papado romano que não soube lidar com o desafio que representavam as teses de Lutero. O que poderia ter sido uma bela oportunidade de renovação, terminou melancolicamente em ruptura e até mesmo em hostilidade entre Igrejas irmãs.

Quando será que vai surgir nova oportunidade de restaurar a unidade da Igreja não mais por meio de arranjos em nível de cúpula? Será que a consciência cristã já atingiu um nível de maturidade coletiva capaz de impulsionar as Igrejas todas em direção a esta unidade?

Esta nova unidade eclesial não pode ser vista como o fruto de uma política de aplastamento. O que se deve ter em vista não é o resultado de um processo de aplainamento ou de eliminação das diferenças próprias de cada Igreja singular. As diferenças estão aí para serem valorizadas. E isto se consegue integrando-as num Todo maior. O ser humano responsável pelas diferenças no campo cultural é o mesmo. O Cristo de todas as Igrejas é o mesmo. Por que separar o que Deus criou unido? Por que negar-se a unir o que no pensamento e nas intenções de Cristo nunca esteve separado?

O cristianismo, e com ele cada Igreja cristã em particular, só terá futuro se encontrar o caminho de retorno à unidade primigênia. Se continuarem separadas como agora, nenhuma delas terá futuro. Isto tem que ser dito não só aos que as dirigem, mas a cada cristão, em particular. Que tenham um chefe comum aqui na terra, não é importante, já que todas elas têm a Cristo como Cabeça e chefe supremo. Se agirem segundo a lei do amor solidário, cada uma delas pode dispor-se a ceder muito mais e com mais coragem do que de momento se dispõem a fazer. Pode-se afirmar sem medo de exagero que a unidade das Igrejas é a pedra de toque a partir da qual é lícito medir o grau de catolicidade da Igreja de Cristo. Todas são imperfeitas, incompletas e falta-lhes muito para merecerem o título honroso de membros vivos do Corpo Místico de Cristo.

Na celebração litúrgica o sacerdote católico reza “pela Igreja santa e pecadora”.
Onde está o pecado e quem o comete? Será que na mente dos pastores há lugar para a convicção de que também um papa pode cometer pecados? Separar as figuras eclesiásticas em duas personalidades, uma humana e outra santa, uma fraca e pecadora e a outra acima de qualquer suspeita moral, é atitude que lembra os fariseus do tempo de Jesus.

Quem sabe, os piores pecados e de consequências mais funestas, quem os comete com maior frequência não são as “ovelhas”, os pobres pecadores de rua, mas altas figuras do clero?

O próprio exercício do poder tende com facilidade a transformar-se em pecado.

O que constitui a essência da Unidade Eclesial é a fé em Cristo e esta se mede tomando como critério os frutos que produz. Os ensinamentos que uma Igreja propõe e seu nível disciplinar, pouco significam. O que vale mesmo é a vontade de união afetiva com Cristo e com seus irmãos na fé.

Por isso se pode afirmar que a essência da Igreja de Cristo é invisível e não cabe em números ou em estatísticas. O aparato exterior pode dar uma forte, porém enganosa impressão de unidade, sem que lhe corresponda no terreno subjetivo, isto é, no interior das consciências, um movimento significativo de aproximação de todos com todos. Igreja de Cristo é qualquer ambiente ou lugar onde pessoas se reúnem e se encontram como irmãos e filhos do mesmo Deus. Não interessa o rótulo que vier a ser dado a estes encontros. Pouco importa saber qual a Igreja.

O Espírito Santo não depende de nenhuma instituição. Sopra onde quer. E com a força que quer. A renovação da Unidade Eclesial será obra do Espírito Santo. Terá características de restauração. Isto é, de retorno a um modelo original. Pode acontecer com a impetuosidade de um vendaval violento, como no dia de Pentecostes, dia em que a Igreja nasceu para o mundo. Às mais das vezes a transformação se dará de forma sutil, semelhante ao sopro de uma brisa amena, quase imperceptível. Mas estes são aspectos que envolvem a ação do Espírito Santo. Nenhuma necessidade há que Lhe lembremos a parte de responsabilidade que Lhe cabe.

Quem precisa ser acordado somos nós, carismáticos ou progressistas, e não o Espírito Santo. Não é batendo palmas e cantando horas a fio que se irá acordar a enorme legião de adormecidos e sonâmbulos, que representam a maioria estatística das Igrejas cristãs, ao que parece.

Por onde iniciar o movimento de renovação da Igreja?

O primeiro passo cada qual que tiver o propósito de dar a sua contribuição a este movimento, terá que dá-lo no interior da sua própria consciência.

O segundo passo é mais problemático e consiste em criar um espaço social adequado à tarefa. Este espaço não existe pronto, deve ser criado.

Boa parte do espaço social já se encontra ocupado e tomado pelas formas tradicionais de prática religiosa. Mas resta ainda muito espaço vago que as religiões oficiais não ocupam.

Onde? No campo político, artístico e científico, por exemplo. Atualmente a melhor filosofia e teologia é feita em laboratórios.

Ecologia e medicina oferecem imensos espaços vazios onde a presença de Deus mal começa a ser sentida. E as viagens espaciais, campo em que até hoje religião alguma se fez presente, pode constituir o ponto de ruptura entre um tipo de religiosidade provinciana e outro de amplitude cósmica.

Na China comunista o capitalismo começa a ocupar espaços que o sistema socialista em vigor não consegue ocupar com a mesma eficiência. Surgem, desta forma, “bolhas” e ilhotas capitalistas no seio de um país regido por princípios socialistas. Isso tudo acontece de forma intencional com a aprovação dos senhores do regime vigente.

Algo parecido se pode fazer no campo religioso.

No terreno ocupado por cada Igreja existem interstícios e espaços vazios, terrenos baldios onde a iniciativa particular tem muito mais chances de sair-se bem do que as pesadas máquinas da pastoral oficial.

A fé cristã é essencialmente eclesial e comunitária. É constituída de dois momentos básicos: a adesão a Cristo e a integração voluntária no seio de uma Comunidade Eclesial. Esta última pode assumir as mais variadas formas de expressão social, desde o econômico, até o místico.

É neste terreno que as oportunidades de desenvolver a criatividade da fé cristã são ilimitadas. E é este o campo em que a iniciativa particular costuma colher resultados muito mais compensadores do que os órgãos das Igrejas oficiais.

Comunidade é um espaço social específico, onde um máximo de liberdade criativa coexiste com um mínimo de restrições. É o espaço social mais fluido e plástico que se possa imaginar. É espaço não padronizado, com o mínimo necessário de regras preestabelecidas. É espaço aberto a mudanças. É espaço dinâmico e ofensivo.

Comunidade é no campo social o que no campo de batalha é uma “cabeça de ponte”.

É espaço dinâmico porque nele tudo se move. Lá a regra não é o respeito pela tradição, pela hierarquia. É democrático. Lá não se pergunta pelo que deve ser feito, mas pelo que pode ser feito. Uma comunidade não é minimalista. Seus membros se colocam muito à frente do seu tempo e longe das massas que se contentam com milagres e curas.

         Cristo ia à frente dos seus. “Irei adiante”, disse.

Nosso Chefe Divino em nada se parece com o tipo de general que fica na retaguarda do campo de batalha, em seu bem protegido posto de comando.

Quantas comunidades cristãs não são mais que supermercados em que os fiéis consomem o que o pastor produz e oferece!

Uma comunidade é um organismo vivo. Sujeito a ataques de fora. Sujeito à lei da entropia. Passível de ser parasitado. De ser transformado em trampolim político por carreiristas ambiciosos.

São João da Cruz tinha a ambição e o desejo de fazer carreira na conta de inimigos dos mais perigosos da vida monástica.

Não é fácil realizar uma comunidade. A comunidade é instrumento de perfeição. Não é lugar de refúgio próprio para pessoas que têm medo de viver no meio do mundo, lado a lado com pecadores.

Manter viva, atuante e vigilante uma comunidade é tarefa para gênios. Que o digam os pastores de nossas Igrejas!

Até hoje nenhuma tentativa de renovar a Igreja, partindo da cúpula em direção à base, deu certo. Há nas Igrejas excesso de projetos e falta de vontade política e de ação concreta.

A responsabilidade pelo futuro da Igreja de Cristo é igual para todos, já que todos receberam o mesmo batismo. É responsabilidade que um leigo não pode transferir ao representante do clero.

O modo como cada qual a desempenha, é diferente. O campo não é necessariamente o mesmo para todos.

Também nesta área a iniciativa particular oferece melhores chances de êxito do que ruidosos projetos oficiais.
        
                                  Pe. J. Marcos Bach, SJ – Pentecostes – 2002.




O CASAMENTO DE ASSOCIAÇÃO

Em nossos dias, por influência da filosofia personalista, da educação pouco diferenciada do menino e da menina, do acesso generalizado da mulher ao mercado de trabalho, mesmo em profissões até agora reservadas ou quase reservada aos homens, da vivência cotidiana de uma real ou ilusória igualdade entre os dois sexos, da superação de uma “complementaridade” ambígua e enganadora em prol de um profundo companheirismo, e por outras razões ainda, aparece um novo tipo de casamento: dois jovens decidem se unir – “ juntar os trapos” – e viver juntos, cada  um conservando sua profissão, seus gostos, suas amizades, eventualmente seus lazeres, afinal, seu destino. “Independência na interdependência” parece ser o lema dessa união. Entre eles há um intenso diálogo, em todos os níveis, desde o espiritual  ao carnal. Este diálogo, esta comunicação, real e afetiva, profunda e permanente, é vivida como necessária, não somente para que haja casamento, mas ainda para que o casamento permaneça. O “papel passado” lhes parece, então, inútil, já que a estabilidade de sua união em caso algum depende de um contrato assinado, nem de um rito público, civil ou religioso, mas sim de um amor que tem de ser re-criado e re-afirmado todos os dias. “Casamento de Associação”, que supõe de cada parte não somente uma plena capacidade de engajamento, uma estrutura psicológica solidamente integrada, mas também uma lealdade perfeita para consigo mesmo e para com o outro; daí a exigência de fidelidade absoluta, pois que significaria esse amor, se ele não fosse exclusivo, e, portanto, definitivo? O que é diretamente procurado nesse casamento, não é mais, em primeiro lugar, a procriação, nem a satisfação sexual, mas, acima de tudo, o crescimento e o aperfeiçoamento dos protagonistas desta união. A procura permanente de uma plenitude, através do amor, é o essencial deste casamento.

Para que a procura dessa plenitude seja válida, é necessário que ambos os interessados sejam plenamente conscientes de seu propósito, pois, se acontecer que um dos dois – ou ambos – procure, mesmo inconscientemente, realizar um casamento de dominação ou de união, esquecendo-se, ainda que temporariamente, que o seu projeto é outro, o casamento inevitavelmente entrará em crise. É muito possível que esta seja uma das razões do grande número de separações, muito dolorosas habitualmente, que surgem entre jovens casais, depois de alguns anos ou mesmo meses de vida em comum: procurando realizar um casamento de associação, para o qual não foram preparados, esses jovens, aos quais  foi apresentado como modelo o casamento das gerações anteriores – casamento de dominação ou de união – encontram-se na impossibilidade total de imitá-lo; acreditam, então, se achar diante de um fracasso – quando deveriam simplesmente romper as amarras, esquecer os modelos, olhar juntos para frente e descobrir seu próprio caminho.

(Texto do livro O Futuro da Família: Tendências e Perspectivas -Vozes e INEF – de Pe. J.Marcos Bach, SJ – do Prefácio de J. P. Barruel de Lagenest).



 VIDAS ENTRELAÇADAS

A moral sexual dos compêndios continua atrelada a uma concepção dualista e dicotômica da sexualidade humana. Segundo esta concepção, homens e mulheres se encontram em lados opostos. O matrimônio resulta de um pacto onde uma série de concessões determina o espaço social reservado a cada um. Ao lado de uma harmonia mais aparente que real, ferve uma “guerrinha de nervos” mal disfarçada. A mulher à qual o homem declara dedicar todo o seu amor é geralmente uma “ilustre desconhecida” a respeito da qual ignora praticamente tudo. O mesmo se pode constatar a respeito da mulher.

Homens e mulheres se conhecem mais como figuras imaginárias do que como seres de carne e osso. Quando o primeiro casal humano verdadeiramente consciente de si se encontrou pela primeira vez, o homem prorrompeu na exclamação: “Esta é carne da minha carne e osso dos meus ossos”! Não é partindo de lados contrários que homens e mulheres se dirigem ao encontro um do outro. As diferenças entre homens e mulheres são relativamente poucas e pertencem todas elas à mesma natureza. O modo de encarnar a natureza humana é substancialmente o mesmo. As diferenças tipicamente sexuais são de ordem formal e estilística. Salientar por demais as diferenças é o que se encontra por trás da “guerra dos sexos”. Assim como toda guerra, também esta é totalmente desnecessária, e só acontece lá onde o bom senso foi expulso do diálogo social.

A mulher não é a encarnação exterior da metade que lhe falta. Finalidade da união sexual não é juntar partes para com elas formar um todo maior. Se assim fosse, não haveria como justificar o celibato. O casamento seria o fruto de uma necessidade biopsicológica. Onde situar o amor numa união dominada pela necessidade e regida por determinismos psicofisiológicos? O Código de Direito Canônico declara “consumado” um matrimônio após a realização do primeiro ato sexual completo. O que torna o matrimônio indissolúvel e faz do sim dado na devida forma canônica uma “opção irreversível”, é o ato sexual. Basta um único ato fisicamente completo para “amarrar” um casal em caráter definitivo ao “sim” dado ao pé do altar. Em momento algum o Código se preocupa com os aspectos qualitativos do ato. Esta supervalorização dos aspectos fisiológicos do ato sexual continua fazendo parte da Moral Sexual católica. A ausência de qualquer espécie de preocupação pelos aspectos afetivos e psicológicos do ato sexual é gritante. Uma ultrapassada concepção fisicista contribuiu e continua contribuindo mais do que se supõe para a desagregação da vida familiar e para a degradação do relacionamento sexual do mundo ocidental cristão. É evidente que um dos aspectos mais falhos da moral católica é de natureza antropológica.

Ao optar por Aristóteles em detrimento do pensamento platônico, a Igreja católica baixou o perfil antropológico do homem. Na opinião de Platão o homem é um espírito condenado a viver numa prisão, o corpo material. Já era bem outra a opinião de Aristóteles, pois segundo ele, o homem é sob todos os aspectos um animal. O que o distingue dos outros animais é sua racionalidade, isto é, sua inteligência. À concepção idealista do platonismo Aristóteles contrapôs uma visão mais fisicista do comportamento sexual humano. No campo moral continua prevalecendo o pensamento de Aristóteles. No terreno da “espiritualidade” continua prevalecendo a concepção idealista de Platão. No terreno moral continua em vigor a “Lex Naturae”: todo ato sexual que não permanece “aberto à vida” (em sentido biológico), é imoral, por ferir um princípio básico da Lei Natural. É o papa Paulo VI quem o diz.

O envolvimento afetivo não faz parte dos critérios de aferição ética de um ato sexual. Os únicos critérios que determinam sua liceidade moral são de natureza biofisiológica e jurídico-social. O amor não faz parte dos critérios constitutivos da moralidade de um ato sexual. É admitido como obrigação, como exigência colateral. Como imperativo extrínseco, como valor acrescentado e agregado, mas que por si nada acrescenta ao modo correto de cumprir o dever conjugal. O fato de estarem casados na forma da lei confere a cada ato conjugal a sua liceidade e seu valor moral básico.

A Moral católica se contenta com prestigiar a forma exterior correta e os aspectos de natureza ritual do intercurso sexual. A falta de envolvimento afetivo não torna um matrimônio nem ilícito nem inválido. Mesmo que o último resquício de calor tenha desaparecido, o casamento continua válido, e lícito o cumprimento do dever conjugal. O matrimônio que deveria ser visto como proteger e promover uma incipiente comunidade de amor, demasiadamente frágil e inexperiente para poder bastar-se a si mesma, tornou-se uma espécie de camisa de força e de gaiola dourada. Foi transformado em território sagrado do qual não é permitido fugir. Uma espécie de “Muro de Berlim” destinado a manter prisioneiro um povo escravizado. Tudo o que procede de Roma reflete a preocupação da Igreja católica por seus cânones e por uma ordem moral estabelecida. Pouco ou nada há que se possa definir como preocupação por libertar a consciência do Povo de Deus do cerco de muralhas arcaicas. Uma muralha tanto pode servir para proteger como para aprisionar e sufocar.

A Igreja católica ergueu em torno do comportamento sexual de seus fiéis uma verdadeira muralha de prescrições e de proibições. Numa sociedade de baixo nível de consciência e pouca instrução este aparato jurídico-moral servia para assegurar um mínimo de disciplina e de ordem. Mas, em nossos dias, esta moral já não consegue impedir a crescente onda de desagregação moral das sociedades que até pouco eram tidas como baluartes do progresso espiritual da humanidade. Suas diretrizes não convencem mais e seus argumentos supõem um tipo de credulidade que já não se encontra mais em parte alguma, exceto nas camadas culturalmente mais atrasadas da nossa sociedade.

A casuística consiste em desvincular o comportamento moral do contexto da consciência pessoal. Cada fato é despojado de suas características particulares e subjetivas. É transformado em caso.  Casos análogos são contemplados com a mesma resposta. Isso facilita o trabalho dos confessores, mas em nada ajuda o penitente. Um juiz ou um médico que procedesse do mesmo modo perderia o cargo por incompetente. Não admira que o penitente, ao sair do confessionário, tem a impressão de não ter sido compreendido e de não ter sido levado a sério! Não existe no Código de Direito canônico um parágrafo sequer que se ocupe com os direitos da mulher. A mulher é tratada mais como “objectum juris” do que como sujeito portador de direitos próprios e inalienáveis! Comparada com a do homem, a posição social da mulher é subalterna sob todos os aspectos. A voz masculina é sempre mais forte que a da mulher e sua presença bem mais decisiva que a da mulher. Como se pode falar em igualdade e em respeito mútuo, quando a metade da humanidade é impedida de participar de forma deliberativa na definição de seu próprio destino?

Cresce no mundo ocidental o número de homossexuais. O número de homens “gays” que abandonam a clandestinidade e assumem esta sua preferência sexual também aumenta a olhos vistos. Nos tratados de moral práticas homossexuais continuam sendo definidas como imorais e nos tratados de psicologia são considerados anormais e contrárias à natureza. O problema não é de hoje, pois já era candente na antiga Grécia, nos tempos de Platão. Para Platão o parceiro ideal do amor de um homem era outro homem. Não havia, no terreno afetivo de um homem verdadeiramente culto e livre, lugar e espaço para o amor de uma mulher. Para preencher a masculinidade de um homem, nada mais apropriado que o amor de outro homem!

Aristóteles, que em seus anos de moço também fora homossexual, tentou elevar a discussão transferindo o acento decisivo do plano erótico para o plano da amizade (philia, em grego). É dele, Aristóteles, a famosa definição, segundo a qual a mulher é por natureza um “mas frustratum”, um “macho que não deu certo”!O celibatário Tomás de Aquino, assim como seu mestre Alberto Magno, um ginófobo declarado, não hesitaram em endossar subrepticiamente o mesmo tipo de ginofobia. Quanto mais machista uma cultura for, tanto mais violentamente se manifestará nela o medo da mulher.

A ginofobia se encontra infiltrada na própria estrutura, tanto da Igreja católica como do seu sistema moral, muito mais do que seus panegiristas oficiais costumam admitir. Perderá seu tempo aquele que procurar localizar alguma forma de presença feminina nos escalões privilegiados da Igreja Docente. “A moral católica é a mesma para todos, homens e mulheres”. Mentira, pois existe também na Igreja católica uma diferença na avaliação do pecado de uma Madalena e o de um padre pedófilo. Mulher adúltera é sem-vergonha. Homem adúltero é vítima do poder de sedução de mulheres desavergonhadas!  Não foi Eva que seduziu Adão?

O islamismo inventou a poligamia como forma de impedir a um homem de se tornar adúltero. O cristianismo proíbe a poligamia, mas inventou, para substituí-la, tanto a lei da fidelidade conjugal como o celibato.

Todo casamento cristão tem que ser monogâmico, diz a Moral Cristã. Acontece que a natureza do homem, como a da mulher, não é tão monogâmica quanto seria necessário para assegurar o elevado grau de fidelidade conjugal exigido pela Moral Cristã. Até um desejo mal direcionado pode ser pecado! O próprio conceito de fidelidade conjugal se prende demais a aspectos externo do comportamento sexual. Quem se contenta com permanecer fiel nos termos ditados pela moral, corre o risco de transformar seu matrimônio num túmulo, belamente ornado por fora, mas cheio de falsidade e de mentira por dentro. Comete equívoco fatal quem condiciona a sua fidelidade a do cônjuge.A fidelidade à qual Jesus se refere em Mt 19,12 é incondicional. Deriva de um compromisso pessoal e só secundariamente se apoia em alguma forma de exigência legal ou moral. Onde falta esta disposição interior, o adultério e o divórcio são apenas questão de tempo. Um edifício construído sobre base tão movediça quanto a boa vontade humana, cedo ou tarde irá desabar. Nem o sentimento do dever e menos ainda a palavra dada têm o poder de atração necessário. A consolidação de união conjugal deve dar-se a partir de dentro do próprio casamento. De nada servem escoras e enxertos quando a estrutura do edifício se encontra à beira do colapso.A afirmação de que todo casamento é intrinsecamente indissolúvel e que só quem participa da autoridade de Deus pode anulá-lo, é discutível. É evidente que não cabe ao homem “separar o que Deus uniu”. O problema está em saber qual a união que deve ser considerada indissolúvel e definitivamente sancionada por parte de Deus!

O magistério eclesiástico nunca incluiu em suas preocupações outros aspectos da vida matrimonial e celibatária que não os de ordem jurídico-moral. Ainda hoje é escassa a atenção que a Sagrada Rota Romana, responsável por processos de divórcio de católicos, presta aos aspectos psicológicos dos “casos” que lhe são encaminhados. O Código de Direito e os Compêndios de Moral ainda concedem ao cônjuge “inocente” o direito à separação.Se é verdade que não é permitido ao homem separar o que Deus uniu, como explicar tamanha facilidade e generosidade em decretar o fim e a ruptura de um laço tão sagrado como o compromisso matrimonial? Por que tanta severidade moral quando se sabe como é “difícil ser bom”? Por que tanta indulgência dum lado e tanta severidade do outro? Se é precisamente no campo sexual que mais vivamente se manifesta a extrema fragilidade moral de homens e mulheres, por que os pastores do rebanho cristão tão pouca atenção prestam a medidas pastorais de caráter preventivo? De todos os casamentos que acabaram em naufrágio, a grande maioria poderia ter sido salva, diz um psicólogo. A maioria dos que morre de câncer, poderia ter sido igualmente salva. Em ambos os casos, os pacientes só foram procurar ajuda quando já era tarde.

Há na vida de todo casal um momento crítico a partir do qual o estado de saúde não poderá ser mais o mesmo de antes. A doença nunca entra em cena distribuindo bofetadas e pontapés. Aparece de forma insidiosa e indolor. Faz parte da virtude da vigilância a capacidade de perceber a tempo quando é aconselhado procurar um médico. Se esta atitude fosse adotada também no campo da saúde moral, teríamos muito menos surpresas desagradáveis e o número de “casos perdidos” seria certamente bem menor.

A palavra fidelidade vem da palavra latina “fides”, que significa fé. Lá onde não existe fé, não faz sentido falar em fidelidade. A fidelidade nada mais é do que fachada moral quando lhe falta o suporte da fé. “Tudo é possível a quem tem fé” (Mc 9,23). Também na vida de um casal vale o mesmo.

Um dia alguns discípulos de Jesus tentaram inutilmente expulsar um demônio. Encontrando-se com o Mestre, lhe perguntaram: “Por que razão não conseguimos expulsá-lo?”. Ao que Jesus respondeu: “Por causa da fraqueza da vossa fé! Se tiverdes fé como um grão de mostarda direis a esta montanha: transplanta-te daqui para lá e ela o fará, e nada vos será impossível” (Mt 17,20-21).Esta fé capaz de transportar montanhas tem também o poder de inspirar a um casal o modo mais inteligente e sensato de enfrentar e remover do caminho eventuais obstáculos. A atitude de fé, quando plenamente desenvolvida, é como um edifício de vários andares. Na base se encontra a fé que todo ser deposita na natureza, no ambiente que o rodeia: a certeza de estar em boa companhia e de poder contar com o apoio de um ambiente ecológico positivo e solidário. Podemos chamá-la de dimensão ecológica da fé. Logo acima deste, encontra-se um segundo patamar: a fé em si mesmo!

(Texto do manuscrito “ESBOÇO DE UMA NOVA ÉTICA SEXUAL” de Pe. José Marcos Bach, SJ – in memoriam).

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