ESPIRITUALIDADE

A AUTÊNTICA COMUNIDADE CRISTÃ

A tentação de transformar uma Comunidade Cristã num “terreiro” e num centro de curas é por demais insistente para que alguém permaneça imune a ela. Igualmente grande é a tentação de usar a Comunidade Cristã como palco destinado a tirar a fé cristã da obscuridade: o assim chamado marketing religioso está se tornando moda em grande número de Igrejas “cristãs”.
           
Quem mais sofre com este tipo de “apostolado” é a verdade. Numa celebração destinada a empolgar multidões só pode haver espaço para aplausos e slogans. Nelas a dimensão crítica da fé cristã é sistematicamente excluída. Lá tudo é motivo de exaltação emocional, como se o essencial da fé cristã consistisse em louvar a Deus e em entoar aleluias em sua honra.
           
Jesus não era frequentador assíduo do Templo, um lugar santo onde era proibido contestar e criticar. Mas podia ser visto em Sinagogas. Nelas era permitido questionar, discordar. Havia nelas lugar para a voz do profeta. Por onde ia, Paulo incluía a Sinagoga em seu roteiro apostólico.
           
A Sinagoga judaica é o espaço religioso mais próximo do que o apóstolo Paulo entendia por Igreja ou Comunidade Cristã. Era e continua sendo até hoje um centro aglutinador de um povo disperso e sem pátria. A perseguição e o ostracismo social sempre fizeram parte da sua vida de povo “errante”. A Sinagoga era o lugar onde a comunidade judaica reacendia sempre de novo a sua esperança messiânica e sua fé nas promessas feitas por seu Deus.
           
Uma Igreja ou Comunidade Cristã é, no entanto, um espaço religioso diferente. No centro da religiosidade cristã a esperança deixou de ser expectativa e passou a ser sinônimo de posse e certeza. A palavra grega pleroma, isto é, plenitude, tão frequente nas cartas de Paulo, caracteriza a diferença que existe entre uma Comunidade Judaica e uma Comunidade Cristã. Entre uma Sinagoga e uma Igreja. O grande mérito de Paulo consiste em ter sabido somar o que podia ser somado, em sintetizar o que podia ser sintetizado. E em excluir e deixar de fora o que não se ajustava ao Espírito da Nova Ordem inaugurada por Cristo.
           
O que para um judeu é motivo de saudade e de expectativa, passou a ser no seio de uma Comunidade Cristã motivo de júbilo e de gratidão. Para um judeu o essencial da História da Salvação ainda está por acontecer. Embora admita que o essencial já tenha acontecido, o cristão “progressista” sabe que sua fé não lhe garante um futuro tranquilo e sem conflitos. Tem a consciência de que até a mais idílica das Comunidades Cristãs não será um lugar apropriado para quem gosta de estar de bem com Deus e todo o mundo.

A fé cristã não oferece soluções mágicas ou definitivas. Numa Comunidade Cristã tudo é tão provisório, imperfeito e inacabado quanto numa Sinagoga judaica.
           
No Concílio Vaticano I (1869-70) a Igreja católica insistiu em se autodefinir como “Societas Perfecta”. Quase um século mais tarde o Concílio Vaticano II (1962-65) já fez questão de salientar o caráter transitório das instituições eclesiásticas.

Grande parte do que é considerado definitivo e eterno por canonistas e burocratas apressados, na realidade é tão relativo e transitório quanto o é qualquer meio em relação ao fim. O fim é a instauração do Reino de Deus na Terra dos Homens. Igrejas e instituições eclesiásticas nada mais são do que meios. É do fim que os meios recebem a sua legitimidade.
           
Missão essencial de toda Comunidade Cristã é tornar visível a presença do Amor Divino na vida dos homens. Pregar a Cristo no conceito de Paulo é anunciar à humanidade o advento de uma Nova Era nas relações do homem com Deus e dos homens entre si. Por isso não merece ser considerada cristã uma comunidade que se comporta como se o mundo ao redor dos seus templos não fizesse parte das responsabilidades de sua missão apostólica.

Padre Marcos Bach


O QUE TORNA O TRABALHO HUMANO

O trabalho braçal, repetitivo e mecânico exigem pouca inteligência e nenhuma criatividade. Em vez de elevar o espírito e aprimorar a inteligência, contribui antes para degradar a quem o realiza nestas condições.

Não é o trabalho em si que deprime e degrada, mas o modo como é feito e a intenção que o motiva. São aspectos de ordem subjetiva que distinguem o “trabalho” de uma formiga do trabalho humano.
        
São cinco as condições subjetivas requeridas para que se possa qualificar uma atividade do homem como humana, a saber: que seja racional, consciente, livre, realizada com amor e que reverta em felicidade.

Nem tudo o que o homem faz é humano, afirma Santo Tomás de Aquino. Grande parte do que as pessoas habitualmente fazem ou é subumano ou semi-humano.

É muito difícil encontrar uma pessoa que aja e se comporte sempre e em tudo de acordo com as possibilidades reais de sua condição humana. Quando não age impelida por emoções, age pensando apenas em seus próprios interesses.

Ou não sabe o que está fazendo, nem tem ideia do que deveria estar fazendo, então se submete passivamente a uma rotina de trabalho da qual não sabe nem quer evadir-se.
        
A rotina é a bengala do preguiçoso. Tudo o que se torna rotineiro já não merece mais o qualificativo de humano.

Se o homem fosse uma “máquina” sem alma própria ou um animal um pouco menos animal que um chimpanzé bonobo, bastaria colocá-los a todos numa procissão.

Uma procissão obedece a um roteiro preestabelecido. A ninguém é permitido caminhar mais ou menos depressa que os outros. A procissão é um fenômeno típico do mundo animal. Só pessoas despidas de qualquer senso criativo amam procissões, espetáculos de massa, onde só existe espaço para aplausos.
        
Quem trabalha submetendo-se passivamente a exigências e condições que sua consciência pessoal desaprova não merece ser classificado como “herói do trabalho”.

Aquele que trabalha numa empresa em que o nível de consciência de dirigentes e trabalhadores se encontra próximo do zero, fatalmente acabará pensando e agindo como eles. Sua situação subjetiva será afetada paulatinamente pela atmosfera da empresa. Colocará a eficiência no lugar do bem e a pragmática no lugar da ética.

Padre Marcos Bach


O AMOR ACIMA DE TUDO

O amor se manifesta nos seres humanos sob as mais variadas formas. O amor é a base de todo e qualquer relacionamento do homem com o universo em que vive. O amor é uma forma de tomar consciência tanto de si mesmo como do universo que nos cerca. É amando que descobrimos a distância que no campo evolutivo nos separa do nosso primo mais próximo que é o chimpanzé bonobo! É amando que descobrimos a nossa verdadeira natureza!

Quem não aprende a arte de amar, jamais saberá quem ele é! E o que é pior: jamais saberá o que fazer com a vida que traz em si!

Confrontado com uma galáxia, sentir-se-á esmagado por ela! Confrontado com a fugacidade do tempo de vida com que pode contar, sente-se ludibriado e traído, pois em seu íntimo mais profundo sente-se chamado à imortalidade!
       
Todo o seu ser resiste com tenacidade indomável à ideia de morte! É comovente assistir à luta de um doente em fase terminal por uns poucos dias a mais de uma vida que já não merece este nome.

Temos que recordar o seguinte se queremos ter uma ideia da diferença que existe entre a vida de um chimpanzé e a de um representante da espécie Homo. Um chimpanzé passa o dia comendo e procurando comida. Emprega seu tempo livre para se divertir com as fêmeas do seu grupo, e não tendo o que fazer, deita-se na grama e contempla o mundo de papo para o ar. A felicidade de um chimpanzé está em ter o que precisa para satisfazer suas necessidades!
       
O trabalho merece um lugar de destaque na lista dos fatores de alienação social e psicológica toda vez que consome mais tempo do que o estritamente necessário para o sustento. Torna-se fator de alienação moral na medida em que dificulta ou até mesmo impede o contato com outras pessoas e a comunhão interpessoal!

Não é o trabalho em si que aliena as pessoas, mas o fato de induzi-las a se esquecerem do sentido último da vida humana. O ser humano não foi feito para trabalhar. Foi feito para muito mais do que gastar a parcela mais nobre da sua vida preocupado “com o que comer e com que vestir-se” (Lc 12,22).
       
Há entre as atividades humanas um leque bem grande de alternativas. Meditar é melhor do que lavrar o chão, diz o monge budista. Rezar é melhor do que fabricar metralhadoras, diz o monge católico. Escutar a Palavra de Deus e meditá-la é melhor do que servir a Deus, diz Jesus. Maria foi mais inteligente que Marta, pois escolheu a parte melhor. Quem o disse foi o próprio Mestre Divino.
       
Muitas e contraditórias são as necessidades do homem. Infeliz é aquele que corre da cozinha à sala de visitas sem saber como sair da confusão.
       
Maria nos ensina que sentar-se os pés de Jesus e escutá-Lo é mais importante que correr atrás do relógio!
       
“Ama e faze o que quiseres”, dizia Santo Agostinho, dando a entender que até o mais bem elaborado código de moral é incapaz de suprir a falta de amor!
       
Destruir o universo todo seria fácil se fosse possível destruir o Amor, pois “a natureza suprema do universo é uma energia de amor” (David Bohm).
       
Quem quisesse destruir o universo teria que destruir primeiro o seu Criador, pois “Deus é Amor”, diz o apóstolo João (I Jo 4,16).
       
O amor é a energia mais potente e poderosa do universo (Gandhi), pois sua fonte primordial é o próprio Deus! É da natureza do amor ser eterno! É indestrutível por natureza! Quando um casal se divorcia alegando que o amor morreu, não está constatando um fracasso, mas confessando uma mentira.

Padre Marcos Bach


COMO SAIR DO IMPÉRIO DA SUPERFICIALIDADE
        
Poucos de nós sabem o que é amor. Contentamo-nos com muito pouco! Agimos como o garimpeiro: ciscamos a superfície na ilusão de que abaixo dela não existe mais ouro que valha a pena trazer à tona.

Mais ricas do que as reservas de ouro do nosso planeta são as reservas de amor ocultas na alma de cada ser humano, pobre ou rico, bom ou mau, religioso ou não. Na verdade, não passamos de “faiscadores” e de escaravelhos empenhados mais em explorar a superfície de nossas vidas e a casca de nossas personalidades!
        
Nossa civilização é recente e sempre se esmerou em cultivar de preferência valores de superfície. A fachada externa dos templos do progresso era vista e tratada com um carinho que o seu interior não podia contar! Superficial e de fachada: é isto o que é a nossa civilização, da qual tanto nos orgulhamos. Ela nasceu decadente e já teria desaparecido não fosse o alento adicional que o cristianismo lhe veio trazer.

A nossa é uma civilização caduca, além de condenada à extinção! E por quê? Porque se fixou na matéria, em vez de priorizar os valores do espírito. Porque priorizou a ânsia de ter, em lugar do ser! Porque ofereceu aos homens uma falsa segurança. “Deem-nos a sua liberdade e o seu tempo, e nós cuidamos da sua segurança!”.  “Desconfiem sempre de si mesmos e ponham toda a sua confiança em nós! Somos os acólitos do Grande Inquisidor! Conhecemos a natureza do homem melhor do que Cristo. Os homens não sabem o que fazer com a sua liberdade! Por isso nós tomamos conta dela! Ao privar os homens de sua liberdade, colocamo-los no único caminho capaz de levá-los a um futuro melhor!”.
        
É com discursos deste tipo que movimentos religiosos de impronta fundamentalista estão bombardeando as consciências de seus “fiéis”. A realização plena de cada indivíduo humano é o resultado de um ato interno de submissão a um poder externo. É esta a tese fundamental de todo sistema totalitário.
        
A tomada de distância em relação a todas as instituições que impedem as pessoas  que entrem em seu interior, que confiem em si mesmas e que se amem a si próprias, é pré-requisito e conditio sine qua non para todo aquele que deseja participar da grande aventura espiritual que está tendo início.
        
Uma boa hora de introspecção séria e crítica é suficiente para mostrar a alguém o quanto ele é um galé amarrado. Amarrado como o galé a bordo de um navio. Só pode movimentar-se dentro de um pequeno espaço determinado pelas necessidades da embarcação. Se esta “embarcação” se chama Estado, Partido ou Igreja, pouco importa. O importante é impedir que a tripulação assuma o comando do “navio”.

Padre Marcos Bach


TRANSFIGURAÇÃO DA FÉ INFANTIL EM ADULTA

Quem tem amor à vida, ama o movimento, o intercâmbio e a novidade. A vida só se realiza onde acontecem a reprodução e a mutação. É exatamente isto que estou propondo ao benévolo e paciente leitor deste escrito: “Não renegue o passado”! Não abandone a tradição, mas aprenda a fazer dela ponto de partida e não termo de chegada! O futuro da Igreja depende da capacidade do povo cristão de transfigurar um tipo mais infantil de fé em outro, mais adulto. Toda vez que um católico transfere a solução dos seus problemas de fé ou de moral a outros, está traindo a si próprio. Até certo ponto é lícito afirmar que cada cristão é seu próprio papa.
        
É evidente que com gente que vive em cadeiras de rodas e que só sabe movimentar-se quando movido por outros, não será possível construir outra Igreja diferente daquelas que temos. Precisamos de outro tipo de cristão (pois o problema não é exclusivo da Igreja católica). A maioria deles é composta de pessoas que se dizem cristãos, mas na realidade não o são. A culpa é menos deles do que dos que se contentaram com uma Igreja povoada por este tipo de cristão “mal batizado e mal convertido”.
        
O primeiro passo a ser dado por quem deseja participar da gênese de um novo modelo de Igreja consiste em sair à procura de companheiros e comprometer-se juntamente com eles num projeto comum, cujo objeto é a constituição de uma comunidade de irmãos solidários uns com os outros, isto é, uma família de irmãos e irmãs em Cristo da qual se possa dizer o que se dizia das primeiras comunidades cristãs: “Vede como eles se amam”!
        
Só um amor tão solidário e tão generoso como o de Jesus é capaz de manter coesa e unida uma família espiritual cristã. Uma vez constituído este grupo, seus membros passam a viver menos em função da sua salvação pessoal do que nos aspectos comunitários do processo de salvação cristã, do qual não se consideram mais apenas beneficiários, mas agentes ativos, cada qual tão responsável pelo todo quanto os demais.
        
O que caracterizará este novo corpo eclesial (“igreja”, no sentido paulino) é seu caráter apostólico, sua tendência a gerar novas “igrejas”, bem de acordo com a tática dos primeiros apóstolos. A preocupação central de uma comunidade assim constituída está voltada menos para o bem particular dos membros desta comunidade do que para a missão que lhe cabe cumprir. Em outros termos: é da essência de toda genuína comunidade cristã ser missionária!
        
Assim como as células de um corpo são diferentes e não possuem funções iguais, do mesmo modo há lugar na Igreja universal para tipos variados de igrejas e de comunidades locais. Esta diferenciação é tão essencial quanto a unidade. Sem ela a unidade se transformaria rapidamente em uniformidade. Não há, portanto, na Igreja lugar para um único modelo de microcomunidade eclesial. Consequentemente é insensato pensar a Igreja em seu todo como um macroorganismo social pronto e acabado.
        
O Concílio Vaticano II já não apresenta mais a Igreja como sociedade perfeita nos termos aprovados no Concílio Vaticano I, um século antes. Hoje já falamos da Igreja como federação de igrejas, de pequenas comunidades locais. É neste sentido e nesta direção que se dará no futuro a Renovação da Mãe Igreja.

Padre Marcos Bach 


A PERFEIÇÃO COMO META

Saúde e doença são apenas o resultado de um modo infeliz de organizar o campo das relações humanas. Freud achava que saudável é o indivíduo que “está em dia com as exigências do ambiente sociocultural em que vive”. Jung era de opinião que saudável é o indivíduo que “está de bem consigo mesmo”. São João da Cruz, antes deles, deixou claro que só merece ser considerada saudável a pessoa que descobriu o “Deus que vive em seu íntimo mais íntimo”. O homem é um ser espiritual destinado a compartilhar com o seu Criador a mesma vida e o mesmo grau de intimidade com que um filho participa da vida de seu pai.

O cristão autêntico não representa a última palavra. Seu cristianismo ainda carece de um complemento, que é a perfeição. “Sede perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5,48). O cristão perfeito só pode ser definido como tal com base nos mesmos critérios usados para definir a perfeição de Deus. Como em Deus tudo é indescritível, também a perfeição cristã se furta a qualquer tentativa de descrição. A ideia de que um monge ou uma freira encarnam o ideal da perfeição cristã resulta de um equívoco. Quem o cometeu não foram teólogos, mas juristas. O “estado de perfeição” não pode ser identificado com um determinado modo de viver a sua fé em Cristo. Não pode ser associado a regras ou a um modo peculiar de se vestir.

O mundo criado por Deus é perfeito, mas esta perfeição permanece oculta e só se manifesta sob a roupagem da imperfeição. O místico cristão possui a capacidade de perceber o lado perfeito da realidade, mesmo quando este lado coexiste com o lado imperfeito das coisas. Para o perfeccionista a imperfeição é um mal. Não sabe como enquadrá-la em sua “Weltanschaung”, em sua cosmovisão.

Um místico cristão, como Teilhard de Chardin, não se escandaliza com a presença de tanta imperfeição no mundo. Para ele a imperfeição faz parte de um esboço de um mundo a caminho de se tornar perfeito. A perfeição representa um ponto final absoluto, além do qual não é possível ir. O que ainda pode ser mais perfeito é porque é imperfeito. O cristão perfeito não é alguém que não pode ser mais perfeito do que já é. Uma larva é perfeita quando possui todas as qualidades necessárias à sua condição de boa larva. Mas falta-lhe muito para chegar a ser, um dia, a borboleta que traz dentro de si. Assim como a larva já traz em si a borboleta que irá ser um dia, do mesmo modo cada ser humano traz em seu íntimo mais íntimo uma “centelha divina”, como a denomina o filósofo Platão.
Padre Marcos Bach


A INSATISFAÇÃO DA HUMANIDADE

Cresce com assustadora rapidez a insatisfação com o modo como os homens organizaram e ordenaram a sua vida sobre a face deste nosso planeta. Não é apenas a desordem que preocupa, mas a própria ordem passou a ser motivo de ansiedade, quando não de revolta explícita.
          
Está em vias de se esboroar por completo a crença de que o mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis. A fé na capacidade humana de agir sempre e em tudo conforme imperativos de ordem racional só consegue sobreviver à custa de mentiras.
          
O Iluminismo gerou a Revolução Francesa, cujo símbolo mais visível foi a guilhotina. O Comunismo gerou mais cadáveres, escravos e gulags do que cidadãos verdadeiramente felizes e livres.
          
Nietzsche sentiu e percebeu com antecedência a falsidade da Europa do seu tempo. O ateísmo nada mais foi do que o despertar da consciência social de uns poucos pioneiros para a forma espúria como a imagem de Deus era usada.

Marx não atacou Deus, atacou a religião e o tipo de consciência social por ela inspirado.

Nietzsche atacou o cristianismo, e não a Deus. Rejeitou um tipo de fé religiosa que se nutre da fraqueza humana em benefício de uns poucos, sempre prontos à familiaridade com o poder e com os poderosos. Tratou com desdém todas as tentativas de racionalização da fé. Viu no teólogo uma pessoa comprometida com uma atitude fundamentalmente falsa. Um teólogo sempre tem que tomar o cuidado de não sair do meio da estrada.
          
Marx, Nietzsche, Camus eram ateus, mas não eram inimigos de Deus. Não eram cínicos, não zombavam de Deus. O ateísmo de um Camus é bem diferente do de um Sartre, por exemplo. Sartre só via desespero onde Camus via o alvorecer de um novo dia.
          
Nemo gratis mendax”, dizia um provérbio romano. Ninguém mente só pelo prazer de enganar outro. O mesmo se pode afirmar em relação ao ateísmo de nossos dias: nenhuma pessoa séria nega a Deus sem que tenha motivo sério e razões de peso para fazê-lo.

Todos eles, de Feuerbach a Camus, estavam pouco interessados em provar que Deus não existe. O objeto e o alvo de suas críticas era o tipo de imagem de Deus apresentada pelos setores religiosos.

O que os indispunha contra a religião era o tipo de poder que as religiões lhe atribuíam: um poder arbitrário e isento de qualquer compromisso com a humanidade. Sua condição de Senhor e Soberano absoluto isentava-o da obrigação de justificar-se. Em torno do trono deste Deus juntou-se uma constelação de representantes seus, dados mais em apanhar uma fatia do poder divino do que em tomar sobre seus ombros uma parcela da Cruz de Cristo e do sofrimento da humanidade.
          
Os que mais contribuíram para o descrédito que pesa sobre o mundo religioso foram os próprios representantes das religiões. Ofuscaram a imagem do Deus de Amor para realçar a de um Deus Senhor, realçando deste modo o seu status de representantes da autoridade divina.
          
Ao longo de séculos a Igreja de Roma forjou um arsenal de instrumentos jurídicos destinados a reforçar o princípio da autoridade. A obediência veio substituir a caridade fraterna no papel de âncora da vida de Fé em Cristo.


Padre Marcos Bach


AMAR COMO JESUS AMA

O êxtase resultante da visão antecipada da glória de Deus, do gozo antecipado da união amorosa da alma com seu Deus, representa a marca registrada da autêntica vida cristã. O cristão é por vocação e por opção pessoal uma pessoa que sabe amar e alegrar-se como ninguém.
        
Uma comunidade cristã é formada por pessoas que sabem amar como Jesus ama e que sabem explorar as grandes e pequenas alegrias que a vida oferece tão generosamente. A autêntica comunidade cristã é formada por pessoas que vivem com os pés no chão, mas com a cabeça bem erguida. Um cristão não foge deste mundo e não abandona este vale de misérias e de lágrimas. Chora com os que choram, mas sabe que lágrimas brotadas do desespero e da comiseração podem ser tão estéreis (e até mesmo hipócritas) quanto o sofrimento que as provoca. A maior parte do sofrimento é produzida pelos próprios homens. Há os que sentem prazer em infligir sofrimento a outros. São os sádicos e torturadores profissionais. Bem mais numeroso é o time dos que se fazem sofrer a si próprios. Todo viciado é especialista na autopunição.
        
Quanto tempo e boa fé são gastos com o propósito de recuperar viciados em droga! Um viciado em droga ou sexo nunca mais poderá voltar a ser o mesmo que já foi. A palavra recuperação é pobre demais para expressar tudo o que é necessário para que um dependente volte a ser novamente uma pessoa normal. Só uma verdadeira conversão é capaz de operar este milagre.
        
A exploração plena de todas as potencialidades da natureza espiritual do homem é empreitada que excede por completo a capacidade ou competência natural do homem. É necessário que alguém o tome pela mão e o conduza. Que alguém o tome nos braços e o leve aonde com suas próprias forças não consegue chegar. A genuína conversão no sentido em que Cristo emprega o termo (Mt 18,3) é obra de Deus e dom divino. Representa uma reviravolta total: “O velho homem”, diria Paulo, “terá que morrer para que o novo homem possa nascer”.
        
Todo parto é doloroso. Também este que dá origem ao “Novo Homem”, idealizado por Cristo, é acompanhado de sofrimento. Que o digam os profetas e os místicos!
        
Se a Igreja quiser recuperar a credibilidade perdida, não basta reconhecer que pecou e que errou. Em outras palavras: uma simples conversão moral, por mais sincera que venha a ser, não basta. É preciso pensar numa outra Igreja, mais parecida com a dos Apóstolos de Cristo. Uma Igreja radicada na alma do povo. Uma Igreja tão pobre que possa permitir-se o luxo de dispensar toda e qualquer segurança que não seja a do pobre.
        
O homem, em virtude da sua condição espiritual, transcende os estreitos limites da biosfera, que é a esfera da vida. Sua natureza racional e seu destino último fazem dele um ser de outro mundo ao qual Teilhard de Chardin dá o nome de noosfera, a esfera do pensamento, da racionalidade e do espírito.
        
É uma outra forma de vida, a do homem, de outra ordem de ser e de categoria superior. É a esta vida que Jesus se refere quando disse: “Eu vim trazer a vida e quero que todos a possuam plenamente” (Jo10,10). Ela é graça do Cristo Redentor e inclui o acesso à imortalidade e à Vida Eterna. Não é subordinada a limites. É vida sem fim. É a vida que Jesus prometeu aos que por meio da fé aderirem a seu Projeto de Salvação. Está fora do alcance do mais heroico e bem intencionado esforço puramente humano. “Sem mim nada podeis fazer”. “Não tendes vida em vós mesmos”.

Padre Marcos Bach


PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO INTERIOR
           
Parte nobre da nossa vocação cristã consiste em trazer Jesus Cristo para mais perto dos homens, dos seus problemas, das suas angústias e sofrimentos.
           
Como pode, porém, trazer a Cristo de volta ao centro dos acontecimentos historicamente relevantes, alguém que não traz a Cristo no centro de sua própria vida de fé?
           
Erram todos os que depositam no homem a  fé que negam a Deus. 
        
Cristo foi muito além: para Ele a sociedade humana perfeita é a que se organiza de acordo com a Lei do Amor e os princípios da Liberdade dos Filhos de Deus.
           
É difícil imaginar dois mundos mais antagônicos do que o mundo sonhado por Freud e Marx e o mundo prometido por Jesus. Não são poucos os cristãos para quem crer em Cristo é o mesmo que não mexer na tradição. Para eles o passado é sagrado por conter o essencial da História da Salvação. É pequeno o número de cristãos que se preocupam mais com o futuro do cristianismo do que com o seu lugar no mundo atual.
           
No processo de transformação interior a que nos estamos referindo, acontece que ao longo do seu desenrolar a pessoa começa a distinguir cada vez melhor o que é verdadeiramente importante do que não o é. Descobre paulatinamente e para grande pesar seu que perdeu boa parte, senão o melhor do seu tempo, por não saber distinguir o verdadeiramente significativo e precioso do que é de valor fictício. Melhorando seu poder de discernimento passa a aproveitar melhor o seu tempo.

João Batista passou sua curta vida de precursor do Messias pregando no deserto. Os que o iam procurar lá eram pessoas dispostas a ouvi-lo, pois ninguém se mete num deserto só para matar a curiosidade.
           
Ainda hoje é assim: quem quer converter-se precisa, antes de tudo, reconhecer que necessita de conversão, isto é, de uma mudança radical em seu modo de viver. Num momento posterior deve desligar rádio, TV, e fechar o jornal da sua predileção. Deve deixar de escutar toda e qualquer voz que não seja a da sua própria consciência. Escutar a si próprio em silêncio respeitoso e com muito amor é pré-condição indispensável. 

O processo todo, para ser correto e positivo, não pode parecer-se com um julgamento. É de natureza psicológica e não moral. Visa a compreensão mais correta de uma realidade subjetiva. Seu objeto último é a verdade, porque só a partir do encontro com a verdade a libertação se tornará possível. 

Máscaras, véus e tudo o que obscurece a verdade interior deve ser arrancado. Tudo o que Jung definiu como sombra, isto é, o lado negativo da psique não reconhecido nem admitido, deve ser despido de sua fantasia. Em poucas palavras: é preciso parar de se culpar e de se desculpar. Nem falsa humildade ajuda neste caso, nem hipocrisia.
           
A destruição da culpa real só se alcança assim: admitindo-a, arrependendo-se dela e reparando o mal praticado.

Tudo isso não se consegue numa confissão de meia hora. O processo todo pode levar anos ou meses, dependendo do esforço e da vontade da pessoa.
Padre Marcos Bach



HARMONIA MORAL E ESPIRITUAL NO CASAMENTO       

A tendência que nos leva a considerar o casamento assunto privado, abrigado no silêncio discreto do lar, é responsável por uma série de equívocos funestos. Esta concepção privativa e hermetista do casamento o toma por uma espécie de “arca de Noé”, a flutuar segura e tranquila por sobre as águas do dilúvio, amparada pela mão poderosa e complacente de Deus. Desta forma Deus é feito cúmplice de “arranjos matrimoniais” muito piores do que a própria promiscuidade sexual.

Parece que o tempo, que vale ouro na atividade profissional, já não tem mais o mesmo valor na intimidade do lar. O casamento só pode ser aquilo que a vida é. Quantas vezes ouve-se dizer: “Aquele sujeito não vale nada. Mas tem uma esposa maravilhosa”. Uma mulher virtuosa mais (+) um homem sem verticalidade moral alguma, podem formar uma dupla aceitável. Jamais formarão um casal humano. Além de não respeitar o princípio da totalidade existencial, tais concepções não tomam em conta o princípio da reciprocidade. O tempo conjugal é um e recíproco.
        
Ao falar do tempo conjugal facilmente se incide no erro de tomá-lo como a soma de dois tempos pessoais paralelos. O problema da sincronização (ou falta de sincronização) geralmente é escamoteado, falsamente identificado como incompatibilidade de gênios. Se o casamento é uma “jornada a-dois”, o problema essencial não se relaciona com a presença física (embora seja da máxima importância), mas com o ritmo que ambos imprimem ao seu progresso espiritual. De nada vale a presença física, o convívio no mesmo espaço físico, quando a distância que separa o casal é tanta que na realidade seria mais honesto dizer que vivem em mundos diferentes e separados. O leito conjugal perde nestes casos completamente seu significado como símbolo de união.

O problema criado pela falta ou excesso de tempo conjugal é devido à falta de sincronia espiritual. A adaptação sexual não se limita ao ajustamento genital. O orgasmo simultâneo ou sincronizado é fator irrelevante para a harmonia conjugal, se o compararmos com a importância decisiva da harmonia espiritual. Importante é, pois, que marido e mulher se sintam perfeitamente à vontade em seus papéis sexuais, para que se possa falar em harmonia psíquica. É preciso que saiam de cada encontro amoroso com a consciência de terem construído juntos mais um degrau em direção ao infinito e definitivo. Caso contrário, não se pode falar em harmonia moral. Deus ficou mais ao alcance da ternura: é o sinal de que o encontro representou um momento religioso, que nada no mundo pode substituir, nem tem o direito de suprimir.
Padre Marcos Bach


SOMOS FORMADOS POR MAIS QUE UM CORPO

O que chama a atenção na carta de São Paulo aos Coríntios é a insistência com que ele atribui o fenômeno da ressurreição ao corpo. São três os corpos a que ele se refere: o corpo material, o corpo psíquico e o corpo espiritual. Sempre haverá um corpo fazendo parte da dimensão espiritual da natureza humana. Esta não subsiste separada do espírito como este não faz parte de um mundo superior. Os sábios do Antigo Oriente admitiam como comprovada a existência de vários corpos, além do corpo físico. À semelhança das várias camadas sobrepostas que formam uma “cebola”, o homem é formado por mais que um corpo.
           
Parece que Paulo tinha conhecimento destas teorias, todas elas muito antigas e bem mais dignas de fé do que nossa maneira simplória de dividir o homem em duas metades que não se harmonizam entre si, o espírito e a matéria. Possuímos atualmente conhecimento científico bastante para saber que os átomos e elétrons do nosso corpo não desaparecem com a morte. Todos eles continuam existindo e temos razões de peso para supor que continuem levando em sua consciência a memória de cada uma das experiências por que passaram.
           
Um elétron ou um fóton que já fez parte de uma célula viva do meu corpo deve guardar uma grata lembrança do tempo em que tivera o privilégio de fazer parte não só do meu corpo físico, mas da minha pessoa toda. “Dois elétrons que estiveram alguma vez juntos, fazendo parte de um todo comum, guardam a lembrança do fato e mesmo que se encontrem anos-luz distantes um do outro, continuam se comunicando entre si”. É o que nos afirmam cientistas de respeito.
           
Se é assim, podemos imaginar a ressurreição dos corpos como o reencontro entre si de todas as partículas que já fizeram alguma vez parte da nossa pessoa.

 A ressurreição não consiste no retorno à vida de um corpo morto. Deve ser interpretada como a passagem de um corpo vivo a uma outra forma de viver a vida, uma forma de vida essencialmente superior.
           
Esta superioridade a expressamos dizendo que o corpo ressuscitado é espiritual, como faz o apóstolo Paulo. Melhor seria defini-lo como corpo energético. É perfeitamente admissível imaginar um corpo de luz. Muitos dos sobreviventes a uma experiência de morte clínica definem como “seres de luz” as pessoas com as quais se encontraram no além.
           
Os Evangelhos descrevem a Transfiguração de Jesus no Monte Tabor como uma espécie de manifestação luminosa: “Sua face se alterou e sua veste tornou-se refulgente” (Lc 9,29). Transfigurando-se, Jesus deu uma demonstração antecipada do que iria acontecer com Ele dentro em breve!
           
A ressurreição é também uma forma de transfiguração, um fenômeno luminoso, acima de tudo. Não é um morto que ressuscita, como não é um cadáver que é transformado. É um corpo vivo que passa por este processo de transformação. A palavra transformação diz tudo, pois ela significa que se mudanças houve, elas atingem tão somente a forma e que no terreno do ser não houve nem mudança nem troca de identidade.
           
Se fôssemos perguntar à borboleta se ela é ainda o mesmo ser que fora antes, ela com certeza diria que sim. “Apenas mudei de roupagem”, diria, “mas continuo sendo essencialmente o mesmo ser que sempre fui”. O mesmo se pode afirmar do ser humano. O ser que sobrevive à morte é a mesma pessoa cujo corpo acabou de ser enterrado. O fato de agora poder dispor de um corpo mais sutil, não significa que ela não possui mais nenhuma vinculação com o mundo material. A energia que leva dois átomos a se atraírem mutuamente também é material.
           
A Física moderna não nos permite mais tratar energia e matéria como entidades separadas. O físico americano (já falecido) David Bohm chegou à conclusão de que todo o universo poderia ser reduzido a uma “única forma de energia”, que ele definiu como “energia de amor”.
           
Depois que Einstein chegou à conclusão de que “a essência da matéria é espiritual”, não podemos mais pensar espírito e matéria como realidades excludentes, ou até como inimigas. Fugir da matéria é o mesmo que renegar o espírito. Se penetrarmos mais a fundo no interior da matéria vamos encontrar o seu espírito, um mundo do qual o nosso espírito faz parte.
Padre Marcos Bach



A NOSSA RESSURREIÇÃO

O apóstolo Paulo, que tanto se orgulhava da sua condição gloriosa de ressuscitado em Cristo e com Cristo, mencionou a ressurreição, a nossa ressurreição, como fato já consumado: a “ressurreição já se realizou” (2 Tim 2,18). Já nos podemos considerar ressuscitados dos mortos. A morte já não tem mais poder algum sobre os que depositaram toda a sua fé em Cristo. “A morte não tem domínio sobre ele” (Rm 6,9).

1) O Apocalipse menciona repetidas vezes a existência de uma “segunda morte” (Ap 21,8), dando com esta afirmação a entender que a morte faz parte de um processo que se estende para além do tempo histórico.

A egolatria é um vício do qual só poucos conseguem livrar-se completamente antes de morrer. No terreno do desenvolvimento espiritual não há lugar para respostas automáticas. A morte não nos vai levar a um mundo povoado de painéis, cada painel repleto de chaves e teclas, bastando apertar a tecla certa para obter a resposta correta. Quem em dias de sua vida terrena sempre procurou estar do lado certo, vai continuar a procura do lado certo. Se em vida sempre identificou como lado certo aquele em que se encontra a maior parte das pessoas, vai fazer o mesmo. Quando muito vai se decidir pelo lado em que se encontra uma quantidade maior de pessoas importantes. Um católico romano optará pelo lado em que se encontra a maior parte de papas e de bispos. De monges e de freiras.

2) A fé que salva não é aquela que nos oferece certezas, mas aquela que nos joga no torvelinho de um mar de dúvidas com a tarefa de criar uma certeza nova. Quem navega no oceano da fé não vai de uma certeza para outra, mas, ao contrário, deixa para trás uma incerteza e a troca por uma nova certeza. Mas esta mesma certeza não tem vida longa. A fé não resulta do acúmulo de certezas. Ela não cresce nem se desenvolve gerando segurança. Pelo contrário. O apóstolo Paulo se queixava no fim da sua vida de “não saber se era digno de elogio ou não” (I Cor 15,9).
           
A fé em Cristo nos dá apenas uma certeza, a de que o amor de Deus é absoluto, mas ela mesma não se alimenta de certezas. A fé em Cristo não cresce em nós porque nos podemos apoiar em razões sempre mais convincentes. É, portanto, falha e completamente equivocada uma catequese destinada a provar, seja lá o que for. A fé cristã não se alimenta de provas.
           
A razão não foi dada ao homem para completar a fé. Em certa medida pode-se dizer que a razão é a grande inimiga da fé.

3) O objeto da fé é o mistério. A fé, mesmo a fé em Cristo, não se destina a fornecer explicações. Apenas diz o que é, mas não diz porque é assim. A única verdade com relação à morte é esta: ela não ocorre no termo final da vida, mas representa apenas o início e o momento inaugural de uma nova fase da mesma vida que aparentemente chegou ao fim. Está na hora de pensar seriamente em substituir a concepção terminal da morte por outra mais condizente com a realidade. Esta outra concepção podemos defini-la como inaugural.
           
Se alguém dissesse que a vida das pessoas só começa a se tornar real a partir do momento em que ela morreu, poderíamos concordar com ela, desde que atribua não à morte, mas à ressurreição o destino ulterior da sua vida. Devemos ao apóstolo Paulo esta preciosidade teológica: “Assim como uma estrela difere das outras, do mesmo modo os corpos ressuscitados diferem uns dos outros” (I Cor 15,15).
           
A destinação inicial dos que morrem é determinada pelo modo como cada pessoa viveu a sua vida. Quem viveu sua vida servindo à corrupção, não deve esperar outra coisa após a morte, a não ser um prolongamento da forma como viveu sua vida até então. Quem quer participar da gloriosa ressurreição de Cristo tem que ter vivido como Cristo viveu e ser tão livre como Ele foi.
Padre Marcos Bach


VIDA NOTURNA NO SUBSOLO CULTURAL

Como explicar o que está acontecendo no subsolo cultural definido em má hora com o pomposo título de vida noturna? Por que nossa juventude parece estar mais empenhada em se autodestruir do que em descobrir formas mais ricas de viver a sua juventude? Por que não descobriram que acumular experiências agradáveis é imprescindível quando se tem o propósito de viver um dia “relibando” o gosto agridoce da saudade? É que eles são aos 20 anos tão velhos como nós. Somos nós, seus pais e educadores que os impedimos de serem jovens, porque nós mesmos já não sabemos mais o que significa ser jovem. O que, então, significa ser jovem? E o que significa ser adulto?
           
Para um bando de chimpanzés sexo é, acima de tudo, festa, diversão e prazer. Na vida deles predomina o interesse pelos aspectos lúdicos do intercurso sexual. Num bando de brotos humanos acontece o mesmo. Sob este aspecto e neste terreno ainda continuamos tão parecidos com nossos “irmãos bonobos” que estes poderiam pensar que somos, nós e eles, membros da mesma família, não fossem a fumaça e o álcool sem os quais nós e nossos jovens não conseguimos imaginar sequer como organizar uma festa.
           
Orangotangos, gorilas e chimpanzés sabem como se divertir. Nós é que não sabemos como fazê-lo sem comprometer a saúde e o futuro da própria espécie. A maior parte dos animais aproveita a noite para dormir. Seus encontros “amorosos” acontecem durante o dia. Só as espécies que trocaram o dia pela noite é que não obedecem a esta regra. Não é apenas o gambá e o graxaim que só saem de noite. Também nós transformamos a atividade sexual em fenômeno escuso e a reservamos às horas caladas da noite. Por que isso? Por que dedicamos as horas do dia, o espaço nobre de nossas vidas ao trabalho, à luta inglória pelo pão de cada dia, reservando às horas “perdidas” da noite algo de tão essencial quanto é nossa vida afetiva?
           
É a este tipo de pergunta que devemos resposta se queremos escapar com vida das teias e armadilhas em que nos encontramos. O jovem que associa liberdade com maconha e álcool é tão retrógrado e inimigo da liberdade quanto o fundamentalista religioso que associa e confunde Fé em Deus com fanatismo e imobilismo social.
           
Há ingênuos que imaginam o caminho do progresso humano como estrada pavimentada por deuses. A estrada está pronta, é só aproveitá-la, lhe dirão... A ideia de que a evolução futura da espécie humana já se encontra inscrita e registrada em seu potencial genético pode muito bem ser mais falsa do que verdadeira. É preciso não esquecer que o ser humano é sempre muito mais do que o que está registrado em seu DNA.
           
Não será de um processo de manipulação genética que vai depender o futuro da humanidade. Será uma opção, resultado de uma vontade política, que fará a diferença entre os que, sentados à margem, assistem passivamente à passagem da caravana e os que descem à estrada e passam a fazer parte da caravana.
           
O futuro da humanidade não é tranquilo. O experimento homem se encontra apenas em sua fase inicial. A natureza dinâmica deste projeto não permite atitudes muito conservadoras já que num corpo em crescimento o número do sapatinho de ontem já não serve mais no dia de hoje.
           
Ser jovem significa crescer. O que caracteriza a juventude é a pujança impetuosa de sua natureza que a impele a “crescer” em todas as direções e em todos os sentidos.

Uma planta é jovem enquanto cresce. No dia em que para de crescer tem início um processo de decadência a que damos o nome de morte. Morrer é o mesmo que não poder crescer mais. Envelhecer significa aceitar esta realidade. Não envelhecem os que não se conformam com a ideia de que o homem é apenas um corpo, igual a tantos outros e que a vida humana se encontra submetida à lei da entropia, como qualquer outro representante da biosfera.
           
O princípio que regula a vida de uma planta ou de um animal não é o mesmo que regula e decide o valor de uma vida humana. Uma pedra não cresce e um animal só cresce num sentido e numa só direção. O ser humano, ao contrário, pode crescer em muitas direções. O tempo de vida de um homem não é o mesmo do de um animal.
           
A fé cristã nos ensina que o homem não morre juntamente com a desintegração do seu corpo físico. Existe uma dimensão póstuma da existência humana com a qual é preciso contar se queremos entender algo a respeito do sentido real da presença do homem sobre a face deste nosso maravilhoso planeta, tão pequeno e contudo tão generoso em suas demonstrações de afeto. É só passar em revista a coleção de frutas que coloca em nossas mesas.
           
Nossa civilização é velha porque só velhos têm o direito de dizer aos jovens o que significa ser jovem. Os santos que a Igreja católica apresenta como exemplos de vida cristã são todos velhos e pouco se parecem com o perfil do herói que o mundo jovem prefere como ídolo.
           
Se o homem é realmente um ser adorador por natureza, como queria o poeta francês Verlaine, então o jovem é o mais humano de todos, pois ele, mais que ninguém, precisa encontrar pela frente alguém que possa adorar.
Padre Marcos Bach



EXIGÊNCIAS DA VIDA ESPIRITUAL
A espiritualidade cristã tem por objetivo acordar e mobilizar as energias ocultas e adormecidas no interior da alma humana. As exigências da vida espiritual são maximalistas. Deus não se contenta com menos do que com a totalidade do nosso amor! Aqui vale o dilema: ou tudo ou nada! Quem se dá todo a Deus, “torna-se Deus”, como afirma São João da Cruz. Quem participa da natureza divina a ponto de se tornar um com Ele, adquire um poder semelhante ao de Deus. Torna-se uma potência espiritual dotado de energias inesgotáveis. O próprio Espírito de Deus o impele a irradiar essas energias no ambiente em que vive. A diferença entre um santo e um cristão medíocre é tão desproporcional que São João da Cruz lamentava a falta de um SANTO mais do que a de milhares de cristãos de fé superficial e distraída.
Ter fé ativa e atuante significa concentrar-se cada vez mais no essencial, desprendendo-se sempre mais do que é secundário. Quem se concentra totalmente em Deus consegue isso sem precisar pensar em fazer uma lista de coisas importantes e não-importantes. A espiritualidade cristã, como qualquer outra, sempre partiu do princípio de que o número dos eleitos é e será sempre bem menor do que o dos chamados. Segundo a mitologia grega cabia a Atlas carregar sozinho o mundo nas costas. No mundo cristão essa tarefa cabe a um pequeno punhado de eleitos. Eleitos por Deus. Nem eles se escolheram para essa missão, nem foram escolhidos pela sua Igreja.
O caminho da perfeição cristã não é uma estrada larga que se possa percorrer sozinho. Não existe em sentido rigoroso uma espiritualidade individual. Toda ela é comunitária. Sem o apoio de uma comunidade não há como progredir no caminho da perfeição. Quem quer ser santo precisa da companhia de alguém que também quer sê-lo. Não se alcança o céu caminhando em fila indiana ou em formação militar. Só onde existe uma verdadeira comunhão de almas a santidade é possível. Ninguém salva a sua alma sozinho. Não só da graça de Deus que temos necessidade, mas também precisamos da companhia e do apoio de pessoas que alimentam o mesmo propósito.
Padre Marcos Bach


O AMOR, UM SENTIMENTO NOBRE
O amor é um sentimento nobre, é como a princesinha dos contos de fada: só acorda quando despertada por outro amor. Só aprende a amar quem se sabe e se sente amado por alguém. De nada adiantam receitas, doutrinas, instruções. A princesinha adormecida no coração de cada ser humano merece respeito. Acordá-la com gritos e pauladas é o mesmo que tentar matá-la. O príncipe que tiver a intenção de despertá-la só dispõe de um meio verdadeiramente eficaz: o beijo!
É da natureza do ser humano: só amar a quem for capaz de cativá-lo. Em toda relação de amor está presente um jogo de sedução.
Será que não é possível substituir uma moral que afugenta precisamente os mais audaciosos por outra mais atraente e mais sedutora? Qual o futuro de uma religião e de um sistema moral que não atrai nem desperta entusiasmo? O que os jovens querem é saber o caminho que conduz à felicidade! Um sistema ético deveria ser exatamente isso: um roteiro que aponta o caminho para a FELICIDADE!
Saber o que se deve fazer é uma coisa. Estar em condições de realizá-lo, é outra bem diferente.
Os documentos da Igreja insistem em sublinhar as obrigações e responsabilidades de um casal católico. Aos casais que encontram dificuldade em praticar o que a Igreja prescreve, recomenda-se a oração e a frequência dos sacramentos. É o mesmo que receitar churrasco gordo a um subnutrido. É remédio demais para a maioria dos casais atormentados por problemas familiares.
A oração é um santo remédio, não há dúvida, mas não é porrete, remédio capaz de curar tudo. Apelar para a fé também pouco adianta, pois a fé serve para iluminar o caminho, mas não tem o poder de resolver qualquer espécie de problema.
Um dos grandes defeitos do discurso moral da Igreja está na falta de uma base psicológica adequada ao nível em que ela coloca as exigências do sistema moral que apresenta. Sem o apoio de um substrato psicológico e material satisfatório, o dever conjugal se transforma bem depressa em fonte de frustrações e de conflitos. Para fazer do ato conjugal um ato de amor, um casal necessita de muito mais do que uma cama e um pouco de paciência. Uma cama limpa, um ambiente tranquilo, uma disposição festiva e uma vontade de sair da rotina do dia para mergulhar no mundo encantado e místico, que é o mundo do amor: tudo isso é, no mínimo, tão importante quanto qualquer prescrição moral.
Ignorar o substrato psicofisiológico é grave. Ninguém constrói uma casa sem examinar bem o solo do lugar em que pretende construí-la. Os Papas da Igreja católica se preocupam até por demais com a solidez do edifício, isto é, do sistema doutrinário a que chamam de Sagrada Doutrina da Fé. Pouca atenção prestam às condições do solo a que este edifício se destina.  As estruturas sociais e familiares existentes e as condições psicológicas dos candidatos ao casamento não recebem a mesma atenção.
Pior do que ignorar e menosprezar as condições de natureza infraestrutural é supor que o matrimônio perfeito é aquele que em tudo responde às exigências da lei moral. Também aqui vale a palavra de Jesus: “Depois que tiverdes feito tudo o que vos foi prescrito, dizei: somos servos inúteis”. No Reino de Deus não há lugar para os que só fazem o que é da sua obrigação. Para ser um bom cristão não basta cumprir a lei. Por defender e sustentar esta tese é que São Paulo entrou em choque com os representantes do judaísmo oficial do seu tempo.
A moral representa tão somente uma etapa na caminhada do homem. Para ele só há um termo final de chegada: a perfeita união com Deus! O comportamento moral não produz a união com Deus, mas é condição  indispensável para que ela aconteça. O homem só tem o direito de propor aliança com Deus depois que tiver tomado posse plena de si mesmo.
Quem quer conhecer a Deus tem que conhecer primeiro a si mesmo, dizia Santo Agostinho. Antes de se tornar um pressuposto moral, o conhecimento de si mesmo é o fruto de um esforço pré-moral, que é o esforço psicológico.
Padre Marcos Bach 


FÉ E POLÍTICA SE COMPLETAM

Toda civilização tem seus dias contados. Cedo ou tarde se verá forçada a encarar a morte não apenas como fatalidade ou mera necessidade, mas como imperativo histórico e moral. Não só os indivíduos, mas também as instituições devem aprender a arte de morrer com dignidade. O sentido e o valor da morte lhe vem do que vem depois dela.
           
Quem pretende entender a história dos homens sem ter uma ideia do que acontece com a alma após a morte é como aquele crítico que julga uma novela sem saber como termina. “Finis coronat opus”, diz um sábio ditado latino.
           
Com a morte a vida não termina. Tanto cientistas como crentes religiosos estão se pondo de acordo neste assunto. Os teólogos cristãos dão o nome de escatologia ao estudo das realidades que fazem parte do quadro da história póstuma da humanidade.
           
História e pós-história se completam. A primeira está para a segunda como a semente está para a planta adulta. O essencial só vai acontecer num outro capítulo que não este da História Universal. A crença na continuação da vida humana após a morte está se generalizando, atingindo setores do pensamento que até pouco tempo atrás se mantinham céticos em relação ao tema.
           
A fé na imortalidade da alma é inseparável do pensamento religioso. É tão antiga quanto a fé em Deus. E por que não incluir nesta fé também o destino dos nossos “irmãos” do reino animal, e até vegetal? Se o Criador é tão poderoso e se o universo é tão imenso, por que apressar-se tanto em fixar limites à generosidade criadora de Deus? Qual o artista que destrói suas obras, o poeta que rasga seus poemas ou o pintor que joga no lixo seus quadros? Por que o Criador do Universo iria fazer o que nenhum artista sensato iria fazer?
           
Quem perde de vista a fé na continuação da vida após a morte não está em condições de vislumbrar o sentido último da existência humana. Não deveria meter-se a fazer política por falta de competência.
           
Pôr ordem no convívio humano significa muito mais do que impedir que os indivíduos se devorem uns aos outros. Não é a vida em sociedade que deve ser colocada em ordem. Basta humanizá-la, já que cada ser humano normal e adulto traz em si uma espécie de instinto superior que lhe diz o que fazer e como proceder em relação a si e ao mundo exterior. É isto que queremos afirmar quando dizemos que o homem é um Ens Morale, um ser moral. A reta ordem social é tributária de uma correta relação do homem com seu Criador. É do interesse do Criador que os homens tenham sucesso em suas tentativas de construir já aqui o essencial daquilo que um dia fará parte definitiva da pós-história.
           
Ateus e materialistas não merecem o voto de quem quer que seja. Votar neles é o mesmo que embarcar num avião cujo piloto não sabe aonde ir e onde pousar. Mas há também cristãos e pessoas tidas como religiosas que não merecem o voto de um cidadão consciente. São os profissionais da atividade política.
           
Aristóteles teria se arrepiado todo se alguém tentasse convencê-lo de que a política é uma profissão como qualquer outra. Se voltasse aos dias de hoje ficaria triste ao ver que a mais nobre das atividades humanas passou a ser uma das mais bem remuneradas.
           
Empregamos a palavra estadista para definir um político fora de série, dotado da capacidade de ver mais longe que os outros. Se fôssemos coerentes com o que a fé cristã nos ensina, diríamos que estadista é aquele que vê com os olhos de Deus e enxerga tão longe quanto Ele.
Padre Marcos Bach


O SENTIDO PRIMEIRO E ÚLTIMO DA VIDA

O amor se manifesta nos seres humanos sob as mais variadas formas. O amor é a base de todo e qualquer relacionamento do homem com o universo em que vive. O amor é uma forma de tomar consciência tanto de si mesmo como do universo que nos cerca. É amando que descobrimos a distância que no campo evolutivo nos separa do nosso primo mais próximo que é o chimpanzé bonobo! É amando que descobrimos a nossa verdadeira natureza! Quem não aprende a arte de amar jamais saberá quem ele é! E o que é pior: jamais saberá o que fazer com a vida que traz em si!
           
Confrontado com uma galáxia, sentir-se-á esmagado por ela!

Confrontado com a fugacidade do tempo de vida com que pode contar, sente-se ludibriado e traído, pois em seu íntimo mais profundo sente-se chamado à imortalidade!
           
Todo o seu ser resiste com tenacidade indomável à ideia de morte! É comovente assistir à luta de um doente em fase terminal por uns poucos dias a mais de uma vida que já não merece este nome.

O trabalho merece um lugar de destaque na lista dos fatores de alienação social e psicológica toda vez que consome mais tempo do que o estritamente necessário para o sustento. Torna-se fator de alienação moral na medida em que dificulta ou até mesmo impede o contato com outras pessoas e a comunhão interpessoal!
           
Não é o trabalho em si que aliena as pessoas, mas o fato de induzi-las a se esquecerem do sentido último da vida humana. O ser humano não foi feito para trabalhar. Foi feito para muito mais do que gastar a parcela mais nobre da sua vida preocupado “com o que comer e com que vestir-se” (Lc 12,22).
             
Há entre as atividades humanas um leque bem grande de alternativas. Meditar é melhor do que lavrar o chão, diz o monge budista. Rezar é melhor do que fabricar metralhadoras, diz o monge católico. Escutar a Palavra de Deus e meditá-la é melhor do que servir a Deus, diz Jesus.

Maria foi mais inteligente que Marta, pois escolheu a parte melhor. Quem o disse foi o próprio Mestre Divino.
           
Muitas e contraditórias são as necessidades do homem. Infeliz é aquele que corre da cozinha à sala de visitas sem saber como sair da confusão.
           
O papa Pio XII queixou-se certa ocasião do excesso de ativismo reinante no mundo moderno! Até no seio da Igreja católica é mais fácil encontrar Martas e Teresas de Calcutá do que Marias de Betânia.
           
Maria nos ensina que sentar-se aos pés de Jesus e escutá-Lo é mais importante que correr atrás do relógio!

“Ama e faze o que quiseres”, dizia Santo Agostinho, dando a entender que até o mais bem elaborado código de moral é incapaz de suprir a falta de amor!
Padre Marcos Bach


A LEI DA ATRAÇÃO

No plano espiritual a lei da atração toma o lugar da obrigação. Lá “igual atrai igual”. Esta lei vale tanto para o bem como para o mal. Quem deseja a companhia de pessoas amigas tem que ser amigo. Deve ter um mínimo de amabilidade seguindo o campo de atração que melhor combina com o seu.  O indivíduo, ou é levado até Deus, ou é arrastado para o inferno que ele mesmo criou para si. Lá o crime não é punido, mas desmascarado e forçado a revelar a sua verdadeira face.
           
O bem possui esplendor próprio e compensa por si. O crime não compensa, mas o bem e a virtude representam sempre conquistas definitivas do espírito humano.
           
Um mosteiro povoado tão somente por pessoas do mais elevado nível moral seria um lugar pobre se nele a preocupação máxima consistisse em permanecer fiel a regras preestabelecidas. Uma coisa é percorrer um terreno avançando por trilhas já conhecidas e outra bem mais perigosa é avançar em terreno desconhecido. Viver a vida em liberdade é de todas as aventuras a mais arriscada. O inferno está cheio de gente que não soube viver em liberdade. E o purgatório está repleto de pessoas que ainda não aprenderam a lição.
           
Toda lei que não conduz a uma liberdade cada vez maior é imoral. A lei não possui justificativa em si. Esta lhe vem toda do grau de liberdade que traz em seu bojo.

Padre Marcos Bach 


REENCARNAÇÃO: SIM OU NÃO?

A reencarnação está se tornando assunto polêmico. A discussão não envolve representantes de correntes científicas divergentes, mas membros do setor religioso. Dum lado estão os que a rejeitam, amparados em razões teológicas. Do outro lado se encontra a multidão dos que a adotam por razões de conveniência e de ordem prática.
           
A teoria da reencarnação oferece explicações que não exigem muita inteligência. Se podemos voltar após a morte para consertar estragos feitos em vidas anteriores, viva a reencarnação! Se Deus é tão bom como diz a Bíblia, por que não nos daria tantas oportunidades quantas forem necessárias para corrigirmos erros cometidos? Se Deus é longânime e de misericórdia inesgotável, não é admissível que em seu projeto de salvação não haja lugar para os que erraram, mas estão à procura de uma oportunidade de endireitar o rumo de suas vidas e de aprender o que deveriam e poderiam ter aprendido. Quem errou tem o direito a uma chance de corrigir o seu erro e de reparar o mal que este erro engendrou. Um reencarnacionista está convicto de que a reencarnação é o único modo de alcançar este objetivo.
           
O padre católico que se lhe opõe e o condena como herético é alguém que contrapõe à crença na reencarnação a fé no purgatório e no inferno. Para ele a morte é um divisor de águas. De acordo com esta sua visão, a vida continua após a morte, é verdade, mas o tempo em que transcorre não é o mesmo. Teólogos precipitados falam logo em eternidade. Reencarnacionistas apressados falam logo em reencarnação, isto é, em retorno ao tempo histórico, muito antes de se darem ao trabalho de refletir seriamente sobre o assunto. Do outro lado, a pressa em passar do diálogo para o ataque, é uma discussão de baixo nível, indigna de pessoas cultas, mais parecida com briga de foice no escuro.
           
É necessário civilizar o debate. É possível levar um pouco mais de luz para o meio do assunto. Quantos são os defensores da reencarnação que realmente sabem do que estão falando? E os que condenam a teoria da reencarnação, que conhecimento têm eles da escatologia cristã? Não é minha intenção rebaixar pessoas ou transferir o debate para o terreno moral. Gostaria que a discussão fosse conduzida por gente que sabe respeitar pessoas com opiniões divergentes. Nada mais que isso!
           
A intenção que me levou a escrever sobre o assunto não é a de tomar partido a favor de Alan Kardec, ou da decisão do Concílio de Constantinopla que condenou a teoria da reencarnação. Não se pode dizer que a teoria da reencarnação é um fato cientificamente comprovado, pois ela se encontra fora do campo da observação direta. Também não se pode condená-la como se fosse contrária ao núcleo das verdades essenciais do ensinamento cristão. O essencial da fé em Cristo não está em jogo. A fé na liberdade de mercado ameaça a fé cristã muito mais do que a crença na reencarnação.
Basta analisar mais de perto a questão que estamos focando para perceber que a raiz das divergências que separam entre si os defensores e os adversários da teoria da reencarnação tem mais a ver com ignorância e preconceito do que com o desejo de colaborar para o triunfo da verdade.

O que a mim me interessa não é a doutrina em si, mas o fruto que ela é capaz de produzir na vida, não de uns poucos eruditos, mas na dos que se sentem mais comprometidos com a vida do que com doutrinas e artigos de fé. Os que se declaram adeptos da teoria da reencarnação partem da premissa de que o ser humano precisa de muitas oportunidades até encontrar o caminho certo. Já que é um ser falível, tem também o direito a uma oportunidade de corrigir o erro e de reparar as suas consequências.

Reencarnacionistas e antirreencarnacionistas têm em comum a crença de que é aqui e agora, isto é, no decurso de um tempo essencialmente diverso do tempo escatológico que cada ser humano terá que dar a resposta definitiva a respeito do rumo que decidiu imprimir à sua vida.  A pergunta seria esta: a favor de quê e de quem você decidiu colocar-se? Qual o futuro que você escolheu para si? É o tempo existencial e histórico um tempo fechado, conclusivo e irreversível, ou não? A teoria da reencarnação diz que sim, pois obriga a quem quer progredir, voltar a repetir experiências que já teve. O que nossos escatologistas cristãos não perceberam é a distância que separa a noção de tempo que distingue a noção de tempo cíclico, própria da noção reencarnacionista.
           
O que tenciono deixar bem claro é o seguinte: na raiz de toda a discussão envolvendo defensores e adversários da teoria da reencarnação está a crença comum na continuação da vida após a morte. E que nenhum progresso espiritual é possível enquanto erros e pecados da vida não tiverem sido reconhecidos, corrigidos e reparados. Sobre esta base comum é possível desenvolver um amplo e fraterno diálogo.

Padre Marcos Bach 


ESPÍRITO LIBERTO

O pecado coletivo existe, mas a culpa é sempre individual. A chamada culpa coletiva é uma ficção jurídica. O inferno está cheio de indivíduos. Ninguém foi parar lá por ter sido apanhado num arrastão da justiça divina. O pecado não é fruto de uma herança maldita pela qual o único responsável último é o primeiro pai da humanidade. A teoria do Pecado Original tem contribuído decididamente para enfraquecer a consciência moral dos que nele creem. Foi provavelmente este aspecto negativo que Nietzsche tinha em mente quando definiu a Moral Cristã como sistema de sustentação para pessoas sem fibra própria. A luta contra o pecado representa um dos capítulos mais inglórios e desastrados da História do cristianismo. O fato de tratar até mesmo as ovelhas mais dóceis como se fossem viciados em drogas, em nada contribuiu para melhorá-las. Pelo contrário: forneceu-lhes a desculpa de que necessitavam! “É quase impossível viver sem pecado”, é o que dão a entender os ministros do perdão. Por isso enchem suas igrejas de confessionários. É fácil livrar-se da culpa e das consequências de pecados cometidos: basta uma confissãozinha de cinco minutos e tudo volta a ser como era antes.
           
A Igreja católica oferece, a quem quiser lavar a sua alma, uma bacia cheia de água bem maior do que aquela em que Pilatos lavou suas mãos tintas do sangue de Jesus. As outras Igrejas cristãs ou pseudocristãs facilitam o acesso ao perdão ainda mais. Facilitar o perdão é o mesmo que convidar à reincidência. Deus é infinitamente misericordioso: não há dúvida. O que a Igreja faz ao administrar o sacramento da penitência é tornar manifesto e palpável o amor misericordioso de Deus, sempre pronto a perdoar. É possível que a intenção seja esta. Mas também aqui é possível que os resultados não concordem em tudo com o que se pretende. A prática do Sacramento do Perdão (Confissão) ou é o momento culminante de um processo de conversão, ou, então, é uma brincadeira. A palavra conversão significa aqui, neste contexto, muito mais do que um simples arrependimento. Metanóia, que costumamos traduzir como conversão, significa muito mais do que o abandono de uma vida de pecado. Implica o início de uma nova vida, de um novo modo de ser, de pensar e de agir. Marca a passagem de um tipo de relacionamento com Deus para outro, essencialmente diferente. Seu significado mais profundo é religioso. Encarna a transição de uma religiosidade do medo para outra, pautada e inspirada pelo princípio da confiança absoluta. Uma confiança (= fé) que é recíproca. Convertido, no sentido cristão (ou crístico) do termo, é o pecador que volta a depositar no Amor de Jesus a sua mais absoluta confiança (= fé).
           
Vista sob este prisma, a conversão, a vida nova a que Jesus se refere, o perdão do qual o sacramento da penitência é sinal manifestativo, e não causa, é um momento religioso de repercussão cósmica, pois é na vida de uma pessoa aquele momento que no Reino de Deus foi capaz de provocar um clima festivo todo especial: “Há mais júbilo entre os anjos do céu por um pecador convertido...” (Jo 15,10).
           
Há pecados que têm o poder de despertar o espírito do homem para valores e fontes de felicidade que de outra forma permaneceriam ocultos e inaproveitados. Exemplo típico são os pecados de Maria Magdalena. O pecado não é necessário, mas pode ser útil, como o é o estrume num jardim. A confissão frequente é um hábito malsão e nasce de um duplo equívoco: o de que o pecado é uma fatalidade à qual até um santo não consegue escapar. E o que é pior: o de que o pecado e seus efeitos podem ser reparados e neutralizados dentro do espaço escuro, abafado e estreito e constrangedor de um confessionário. O confessionário é o lugar onde a Igreja católica pretende concentrar a sua luta contra o pecado. O confessionário, localizado no canto mais escuro de uma igreja, veio substituir o patíbulo e as fogueiras do tempo da Santa Inquisição. No confessionário o ministro do perdão divino é um sacerdote. Só sacerdotes podem perdoar pecados e pecadores em nome de Deus. O penitente participa do ato sacramental na dupla condição de vilão e de agraciado. Quem o absolveu dos seus pecados foi o padre confessor.
           
É assim que funciona a prática do Sacramento do Perdão. Não é de admirar, por isso, que tantos católicos (e cristãos) não tenham mais consciência da real gravidade do pecado e o reduzam a um momento de fraqueza. É o mesmo que dizer que os milhões de vítimas dos campos de extermínio nazistas e comunistas devem a sua triste sina a um ataque ou momento de fraqueza dos seus carrascos.
           
É esta mentira que é preciso desmascarar.

Padre Marcos Bach


COMO ACONTECEM AS GRANDES TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS

A Igreja católica tem tudo para se transformar em ponta de lança do cristianismo no mundo. Faz bem quando faz da santidade sinal identificador do autêntico cristianismo.
           
Para isto não basta, porém, canonizar o maior número possível de pessoas já falecidas. É preciso pensar no futuro, no perfil do “santo” de que a humanidade e seu destino vão depender, mais do que nunca, do que no passado.
           
Mais do que no passado a humanidade vai depender destes “rari nantes in gurgite vasto” a que se refere o poeta romano Virgílio em sua Eneida.
           
Multidões e massas humanas não fazem história. Prestam-se, quando muito, ao papel de “caudatários”. Precisam da mão firme de um chefe poderoso. São incapazes de possuir vontade própria. O máximo que deles se pode esperar é obediência, obediência cega, de preferência.
           
As grandes transformações históricas sempre foram patrocinadas por uns poucos como Jesus, como Francisco de Assis.
           
Quando alguém se lembrou de perguntar a Jung se achava possível a eclosão de uma hecatombe nuclear, a resposta dele foi esta: “vai depender do número de pessoas dispostas a passar do domínio do seu Ego ao do seu Self”. Isto é: um pequeno número de pessoas altamente conscientizadas, com ou sem poder político, dispõe do poder de impedir a destruição da humanidade. É Jung quem o afirma.
           
Se um por cento da humanidade fosse composta de pessoas dedicadas à meditação e à oração contemplativa, poderíamos pensar tranquilamente em desativar boa parte dos nossos dispositivos de segurança social. É o que constataram sociólogos americanos, interessados em pesquisar o poder da oração. A oração a que se referem não é a que se realiza com a boca, movendo os lábios. Refere-se à chamada meditação transcendental, a qual implica um movimento interno, tendo como palco a consciência. Chama-se transcendental esta forma de oração, porque transfere o campo da atenção consciente do domínio do Ego para o dos planos mais sutis da consciência. É no campo da percepção que acontecem as mudanças essenciais. Discernimento e vigilância mental são atitudes que marcam a diferença entre um contemplativo e um católico praticante.
           
Um julga que pode com suas obras e práticas piedosas satisfazer todas as exigências da sua fé e cumprir deste modo o essencial dos seus deveres de bom cristão. O contemplativo, ao contrário, não se contenta com ser apenas um bom cristão. Sua fé em Cristo o impele a desenvolver os planos superiores de sua consciência com o intuito de encontrar-se com Deus no interior da sua própria consciência. O bom cristão reza, ao passo que o contemplativo medita. É na qualidade da oração que está a diferença.

Há, entretanto, outro fator que determina a diferença essencial entre o cristão que se julga tal por estar em dia com suas obrigações e o pequeno contingente dos que aspiram à santidade e à plena união com Deus. É deste último que irá compor-se a Comunidade Cristã típica do futuro.

Padre Marcos Bach





APÓS A RESSURREIÇÃO DE JESUS A VINDA DO ESPÍRITO SANTO

O acontecimento central da História da Salvação é a Ressurreição de Cristo. Se Ele não ressuscitou, também nós não ressuscitaremos.
           
Eliminando da consciência dos homens a esperança de uma Ressurreição futura, não prestamos à Humanidade nenhum serviço. Pelo contrário: reduzimos a história humana toda a uma farsa gigantesca. Nela a morte terminará sempre por triunfar sobre a vida! Crer em Jesus é acreditar na vida e não na morte.
           
“Eu sou a Vida” (Jo 11,25).
           
“Minha vida é Cristo” (Gl 2,20).
           
Ninguém compreendeu a Cristo tão bem como o apóstolo Paulo: “Nenhum de nós vive para si mesmo” (Rm 14,7).
           
Um mundo em que cada qual vive mais para si do que para os outros, não é cristão!
           
Um dos grandes fracos do cristianismo atual é o cunho individualista do seu conceito de Salvação. No outro extremo encontra-se um conceito massificado de Salvação tão parcial e unilateral quanto o anterior. O espaço intermediário que poderíamos definir como pessoal-comunitário encontra-se à espera de quem o ocupe.
           
Uma pessoa não é número nem indivíduo. É alguém, anjo ou homem, que não vive mais em função de si mesmo. Vive para alguém. Na vida de um cristão este Alguém é Jesus personificado e representado na pessoa do mais humilde e pequenino dos seus irmãos.
           
Ser irmão em Cristo é um título e uma responsabilidade que devemos a Jesus. Quem tem a Deus como Pai e a Jesus como Irmão, que mais pode querer da vida?

O resultado da Primeira Vinda de Jesus só pode ser considerado modesto:
- Os donos do grande poder não diferem em nada dos do tempo de Cristo.
- O cristianismo se encontra dividido em Igrejas que não se entendem entre si.
- A distribuição de renda continua tão desigual e injusta como sempre.
- A guerra continua sendo a arma preferida dos poderosos.
- A devastação da natureza nunca foi tão grande como hoje.
- O sofrimento, a miséria, a fome e a doença continuam fazendo vítimas em proporção crescente.
- A exploração do homem pelo homem, do fraco pelo forte, do pobre pelo rico, continua como se Cristo jamais tivesse existido.
           
Seria, sem dúvida, injusto atribuir todas estas mazelas sociais ao cristianismo. Não foi o cristianismo que introduziu a escravidão, a prostituição e a guerra. Tudo isto já existia antes. A culpa dos cristãos e do cristianismo não reside no que fizeram, mas no que deixaram de fazer. Pecaram por omissão.
           
Foram demasiadamente coniventes com os malefícios de estruturas sociais notoriamente injustas. Um exemplo: a escravidão perdurou no mundo “cristão” até o limiar do século XX. No Brasil, país católico cem por cento, ela só foi abolida em 1888 e sem a ajuda da Igreja oficial. E foi abolida não por razões humanitárias, mas porque já se tornara antieconômica.
           
Outro exemplo: a democracia jamais foi vista com bons olhos pelas Igrejas cristãs. Todas elas são regidas por pastores. De todos o menos democrático é o regime de governo da Igreja católica. Lá quem manda e decide em nome de todos e sem procuração é um punhado de clérigos. Nela só homens, e de preferência celibatários, podem desempenhar as funções de representantes de Cristo na terra.
           
Olhando de perto e sem falso respeito para a realidade, dá para perceber que nos encontramos às vésperas de um Novo Tempo.
           
Um Novo Tempo pressupõe o fim do anterior. A palavra fim dos tempos ocorre com frequência nos Evangelhos. Será acompanhada de um julgamento, mas não será o fim do mundo ou o fim da história.

Se os líderes das diversas Igrejas cristãs tivessem alguma forma de acesso às luzes da razão e da fé, tomariam consciência do triste espetáculo que oferecem à Humanidade.
           
Deus quer que todos sejam um. A atual divisão do cristianismo em igrejas e seitas é o exato oposto do que Jesus, em sua Oração Sacerdotal, pediu ao Pai: “Que todos sejam Um” (Jo 17,11).
           
Como posso chamar de amigo ou de irmão alguém que não só não mora comigo na mesma casa, mas faz questão de não frequentar a mesma igreja que eu frequento? A Igreja católica fica em muitas cidades do outro lado da rua, a mesma em que os protestantes vão aclamar a Deus como Pai comum de todos. A distância física que separa as duas igrejas é mínima. Poucos passos seriam suficientes para quem quisesse ir de uma das igrejas à outra. Mas é praticamente incomensurável a distância ecumênica que separa as almas dos que rezam ao Pai Celeste, separadas entre si por uma verdadeira muralha de preconceitos baseados em dogmas enferrujados.
           
O grande espetáculo de fé que o cristianismo ainda está devendo à humanidade pode ser definido de maneira muito lapidar e convincente com estes termos: “Vede como eles se amam”!
Padre Marcos Bach



VIDA NOTURNA NO SUBSOLO CULTURAL

Como explicar o que está acontecendo no subsolo cultural definido em má hora com o pomposo título de vida noturna? Por que nossa juventude parece estar mais empenhada em se autodestruir do que em descobrir formas mais ricas de viver a sua juventude? Por que não descobriram que acumular experiências agradáveis é imprescindível quando se tem o propósito de viver um dia “relibando” o gosto agridoce da saudade? É que eles são aos 20 anos tão velhos como nós. Somos nós, seus pais e educadores que os impedimos de serem jovens, porque nós mesmos já não sabemos mais o que significa ser jovem. O que, então, significa ser jovem? E o que significa ser adulto?
           
Para um bando de chimpanzés sexo é, acima de tudo, festa, diversão e prazer. Na vida deles predomina o interesse pelos aspectos lúdicos do intercurso sexual. Num bando de brotos humanos acontece o mesmo. Sob este aspecto e neste terreno ainda continuamos tão parecidos com nossos “irmãos bonobos” que estes poderiam pensar que somos, nós e eles, membros da mesma família, não fossem a fumaça e o álcool sem os quais nós e nossos jovens não conseguimos imaginar sequer como organizar uma festa.
           
Orangotangos, gorilas e chimpanzés sabem como se divertir. Nós é que não sabemos como fazê-lo sem comprometer a saúde e o futuro da própria espécie. A maior parte dos animais aproveita a noite para dormir. Seus encontros “amorosos” acontecem durante o dia. Só as espécies que trocaram o dia pela noite é que não obedecem a esta regra. Não é apenas o gambá e o graxaim que só saem de noite. Também nós transformamos a atividade sexual em fenômeno escuso e a reservamos às horas caladas da noite. Por que isso? Por que dedicamos as horas do dia, o espaço nobre de nossas vidas ao trabalho, à luta inglória pelo pão de cada dia, reservando às horas “perdidas” da noite algo de tão essencial quanto é nossa vida afetiva?
           
É a este tipo de pergunta que devemos resposta se queremos escapar com vida das teias e armadilhas em que nos encontramos. O jovem que associa liberdade com maconha e álcool é tão retrógrado e inimigo da liberdade quanto o fundamentalista religioso que associa e confunde Fé em Deus com fanatismo e imobilismo social.
           
Há ingênuos que imaginam o caminho do progresso humano como estrada pavimentada por deuses. A estrada está pronta, é só aproveitá-la, lhe dirão... A ideia de que a evolução futura da espécie humana já se encontra inscrita e registrada em seu potencial genético pode muito bem ser mais falsa do que verdadeira. É preciso não esquecer que o ser humano é sempre muito mais do que o que está registrado em seu DNA.
           
Não será de um processo de manipulação genética que vai depender o futuro da humanidade. Será uma opção, resultado de uma vontade política, que fará a diferença entre os que, sentados à margem, assistem passivamente à passagem da caravana e os que descem à estrada e passam a fazer parte da caravana.
           
O futuro da humanidade não é tranquilo. O experimento homem se encontra apenas em sua fase inicial. A natureza dinâmica deste projeto não permite atitudes muito conservadoras já que num corpo em crescimento o número do sapatinho de ontem já não serve mais no dia de hoje.
           
Ser jovem significa crescer. O que caracteriza a juventude é a pujança impetuosa de sua natureza que a impele a “crescer” em todas as direções e em todos os sentidos.

Uma planta é jovem enquanto cresce. No dia em que para de crescer tem início um processo de decadência a que damos o nome de morte. Morrer é o mesmo que não poder crescer mais. Envelhecer significa aceitar esta realidade. Não envelhecem os que não se conformam com a ideia de que o homem é apenas um corpo, igual a tantos outros e que a vida humana se encontra submetida à lei da entropia, como qualquer outro representante da biosfera.
           
O princípio que regula a vida de uma planta ou de um animal não é o mesmo que regula e decide o valor de uma vida humana. Uma pedra não cresce e um animal só cresce num sentido e numa só direção. O ser humano, ao contrário, pode crescer em muitas direções. O tempo de vida de um homem não é o mesmo do de um animal.
           
A fé cristã nos ensina que o homem não morre juntamente com a desintegração do seu corpo físico. Existe uma dimensão póstuma da existência humana com a qual é preciso contar se queremos entender algo a respeito do sentido real da presença do homem sobre a face deste nosso maravilhoso planeta, tão pequeno e contudo tão generoso em suas demonstrações de afeto. É só passar em revista a coleção de frutas que coloca em nossas mesas.
           
Nossa civilização é velha porque só velhos têm o direito de dizer aos jovens o que significa ser jovem. Os santos que a Igreja católica apresenta como exemplos de vida cristã são todos velhos e pouco se parecem com o perfil do herói que o mundo jovem prefere como ídolo.
           
Se o homem é realmente um ser adorador por natureza, como queria o poeta francês Verlaine, então o jovem é o mais humano de todos, pois ele, mais que ninguém, precisa encontrar pela frente alguém que possa adorar.

Padre Marcos Bach


A LEVEZA DO AMOR

Não há dúvida: o Pai do Céu nos ama! Mas não alardeia este fato aos quatro ventos! Obriga-nos a procurá-lo e a descobri-lo! Como todo bom cavalheiro, Deus é discreto: seu Amor não pesa, não fere e não machuca ninguém. É leve como a luz!
           
É esta leveza que o devasso profana! Jamais deveríamos aceitar como sendo cristão um sistema moral que acrescenta mais peso ao que já é pesado por natureza.
           
Vida é leveza! É por isso que as plantas crescem para cima! Não fosse a sua leveza, astro algum conseguiria flutuar no espaço com a elegância que lhe é própria.
           
Sabemos (ou poderíamos saber) que o amor torna leve o que sem ele seria simplesmente insuportável! O amor pode tornar leve e feliz até a vida de um escravo!

Se em nada o diminuiu, o que Cristo veio acrescentar ao amor humano? Primeiro transformou-o em moeda corrente, igualando em dignidade o amor do pobre ao do rico, o amor da faxineira ao do sacerdote. Mais do que supor e exigir igualdade, o amor a cria.
           
Lá onde existem diferenças de ordem hierárquica, o amor ainda não teve tempo ou oportunidade de manifestar-se em toda a sua pujante plenitude!
           
Jesus se parecia tanto com os seus discípulos que Judas teve que dar um sinal aos soldados que o vinham prender.
           
O pedaço de pão dado a um faminto tem o mesmo valor que o pão eucarístico, pois em ambos o que determina o valor aos olhos de Deus é o amor com que é praticado e não o gesto em si. “Se tiveres alguma diferença com teu irmão, deixa o sacrifício e reconcilia-te primeiro com ele” (Mt 5,24).
           
Jesus popularizou o mandamento do amor. Há, no entanto, quem acha que Ele foi longe demais e que acabou vulgarizando o amor, despojando-o de certa aura de sacralidade ligada a formas de vida consagrada ao culto divino.
           
No pensamento de Jesus todo amor dignifica, eleva e enobrece! Não são as pessoas que degradam o amor ou o tornam nobre. O amor possui o poder de enaltecer aos olhos de Deus tanto aquele que ama quanto aquele que é amado! O desejo de ser amado faz parte de uma boa saúde psico-moral e mental! A necessidade de amar é a mesma que a de respirar!
           
O que Cristo veio trazer-nos é um amor novo, uma faculdade qualitativamente superior de amar. Fez o que o pomicultor faz quando enxerta uma das suas macieiras silvestres. Pode-se comparar a contribuição de Cristo à economia da evolução humana com a atividade de um perito em horticultura. Jesus chama a Deus de agricultor (Jo 15,1).
           
O vigor e a vitalidade de um bom enxerto depende de dois fatores básicos:
1) O chamado “cavalo” ou “hospedeiro” será tanto mais apropriado à tarefa quanto mais selvagem e rústico for. Pode ter espinhos e não produzir mais que frutos inaproveitáveis, mas deve ser resistente a pestes e pragas. Mais que tudo deve ser perito na arte de deitar raízes, raízes abundantes, fortes e profundas! Deve ser especialista na arte de tirar do solo e da atmosfera o máximo de nutrientes aproveitáveis!
           
Sua contribuição para a produção de belos frutos é indireta, mas absolutamente indispensável. É ele que aproveita o adubo colocado em seu raizame. É ele, o humilde “cavalo”, que transforma umidade em seiva e a canaliza para o alto da planta. Os frutos, quem os produz são os ramos, mas o mérito principal por tudo não lhes pertence!
           
2) O “hóspede” que veio morar na mesma planta juntamente com o “hospedeiro” formando com ele um todo indissolúvel, é de estirpe mais nobre! É representado sob a forma de uma “gema” ou de um ramo extraído de um galho ou ramo produtivo de uma planta adulta. Numa planta bem enxertada só a gema tem o direito de brotar e de se expandir. É extremamente importante impedir o aparecimento de “ladrões”, de rebentos parasitários, tão vorazes quanto uma célula cancerosa! O erro do tumor cancerígeno e maligno não reside no fato de andar sempre com fome, mas no fato de se esquecer de que pertence a um Todo Maior e que outros conjuntos orgânicos também andam com fome.
           
O amor próprio passa a se tornar cancerígeno e maligno a partir do momento em que nos esquecemos de reparti-lo! Quem casa com a intenção de acrescentar algumas vantagens a mais à sua liberdade de solteiro, está redigindo o primeiro parágrafo do seu futuro pedido de divórcio!

Padre Marcos Bach


A VERDADE COM CORAGEM DE OUSAR

A verdade, à qual todos os espíritos lúcidos terminam por declarar a guerra, é aquilo que o ministro religioso, o representante do povo, o cientista apresentam como verdade. É a verdade oficial.

-É aquela interpretação da realidade imposta à fé incondicional do povo.

-É uma verdade que põe fim à dúvida e torna desnecessária e até mesmo ilegítima qualquer procura ulterior.

-É aquela verdade que exclui toda e qualquer interpretação divergente.

-É a verdade que sempre coincide com os interesses do poder, sejam eles quais forem.

-É a verdade que se dá muito bem com o dólar.

-É a verdade que coabita mais facilmente com o medo e a ignorância do que com a coragem de quem ousa pensar por conta própria.

-Ela é, enfim, o único pensamento com direito de circular, depois que todos os outros foram reduzidos ao silêncio.

-É aquela visão que se tem quando se olha a realidade de cima, do alto de uma cátedra, do alto de um trono e do alto de uma tribuna. 

Cátedras, tronos e tribunas são símbolos. São lugares onde se exercita, se faz e se prega exatamente o oposto de tudo aquilo que Cristo encarnou em sua Pessoa, em sua Vida e em sua Palavra.

O medo de ideias novas é generalizado. O povo aprendeu a suspeitar de tudo o que é novo, diferente. Acostumou-se a ver em toda mudança um gesto de infidelidade, uma traição à verdade. O povo é lerdo, mais lerdo e vagaroso que mil juntas de bois de arado. Mas isso é bom para a manutenção do status quo. Isto é, convém aos de cima que o povo seja assim tão fiel, tão crente e tão devoto.
           
Cristo foi um homem lúcido e extremamente corajoso, honesto e coerente consigo mesmo. Nele se pode observar uma coisa muito rara: a coerência absoluta entre pensamento, palavra e ação. Por isso é que foi morto. E quem o levou à morte foram os donos da verdade política e religiosa do seu povo, todos eles campeões da impostura e de um cinismo ético absolutamente brutal.

Um cristão que insistisse em viver a sua fé de acordo com o mesmo espírito de autenticidade integral teria ainda hoje o destino que teve um Nietzsche, um Teilhard de Chardin, os irmãos Boff aqui no Brasil. Só quem tem vocação para mártir ousa ser cristão integral. A absoluta maioria estagna e para a meio caminho entre a fé cristã radical e suas imitações domesticadas. Os inquisidores, grandes e pequenos, costumam acorrer pressurosamente com suas tesouras e instrumentos de poda toda a vez que alguém vai “longe demais” na interpretação da fé.

E como é fácil ir longe demais!

-Basta dar um pequeno passo para fora e para além da fase oral de uma fé passiva e meramente receptiva.

-Basta assumir a sua fé como um dom divino pessoal e não como concessão de uma Igreja.

-Basta sair da atitude receptiva de ovelha para atrair sobre si os anátemas dos inquisidores e de seus patronos.

-Basta encarar a fé como responsabilidade pessoal de procurar e criar.

-Basta reivindicar para si um pouco daquela autonomia soberana que é apanágio da fé cristã.

-Basta chegar à conclusão de que o alambrado que fecha o espaço do redil não tem como finalidade impedir as ovelhas de ir além, mas de impedir os lobos de chacinar as ovelhas. 

O que Nietzsche viu como ninguém é aquela parte da realidade que todo lobo matreiro quer esconder. A saber: há mais lobos dentro do redil travestidos de pastores do que lobos vestidos com a pele da ovelha.
           
Vivemos num mundo necessitado de reformas. A nossa realidade sociocultural, religiosa, econômica e política não passa de um escoadouro imenso de mentiras. 

O faz-de-conta, a aparência tomou por completo o lugar da realidade. Transferimos para a área do pensamento pragmático o núcleo de toda e qualquer verdade objetiva. A técnica orienta a pesquisa científica.

O Vaticano tornou-se centro e o critério último de verdade para os católicos. O que é bom para os Estados Unidos é bom para o resto do mundo. O que é bom para a União Soviética é bom para um terço da humanidade.

A realidade do homem já não é mais critério moral, político ou religioso. A verdade passou a ser uma ferramenta. Há muito que ela já não está mais a serviço da liberdade. A coisa que os autocratas religiosos, os ditadores e os banqueiros internacionais temem mais que o diabo é a verdade posta a serviço da liberdade. “Veritas liberabit vos”.

A verdade que liberta é substituída com o recurso de todos os meios de comunicação de massa pela liberdade de consumir sem freios nem restrições. Não se eleva o salário do operário a não ser com a intenção de aumentar sua capacidade de consumo. A isto até a Igreja dá o nome de justiça social. Não é preciso penetrar mais a fundo na realidade social e cultural, política e religiosa de nossos dias para ter uma ideia da quantidade de mentiras que se escondem no bojo deste “Cavalo de Tróia” chamado “Verdade”.

Padre Marcos Bach


A NOSSA RESSURREIÇÃO

O apóstolo Paulo, que tanto se orgulhava da sua condição gloriosa de ressuscitado em Cristo e com Cristo, mencionou a ressurreição, a nossa ressurreição, como fato já consumado: a “ressurreição já se realizou” (2 Tim 2,18). Já nos podemos considerar ressuscitados dos mortos. A morte já não tem mais poder algum sobre os que depositaram toda a sua fé em Cristo. “A morte não tem domínio sobre ele” (Rm 6,9).

1) O Apocalipse menciona repetidas vezes a existência de uma “segunda morte” (Ap 21,8), dando com esta afirmação a entender que a morte faz parte de um processo que se estende para além do tempo histórico.

A egolatria é um vício do qual só poucos conseguem livrar-se completamente antes de morrer. No terreno do desenvolvimento espiritual não há lugar para respostas automáticas. A morte não nos vai levar a um mundo povoado de painéis, cada painel repleto de chaves e teclas, bastando apertar a tecla certa para obter a resposta correta. Quem em dias de sua vida terrena sempre procurou estar do lado certo, vai continuar a procura do lado certo. Se em vida sempre identificou como lado certo aquele em que se encontra a maior parte das pessoas, vai fazer o mesmo. Quando muito vai se decidir pelo lado em que se encontra uma quantidade maior de pessoas importantes. Um católico romano optará pelo lado em que se encontra a maior parte de papas e de bispos. De monges e de freiras.

2) A fé que salva não é aquela que nos oferece certezas, mas aquela que nos joga no torvelinho de um mar de dúvidas com a tarefa de criar uma certeza nova. Quem navega no oceano da fé não vai de uma certeza para outra, mas, ao contrário, deixa para trás uma incerteza e a troca por uma nova certeza. Mas esta mesma certeza não tem vida longa. A fé não resulta do acúmulo de certezas. Ela não cresce nem se desenvolve gerando segurança. Pelo contrário. O apóstolo Paulo se queixava no fim da sua vida de “não saber se era digno de elogio ou não” (I Cor 15,9).
           
A fé em Cristo nos dá apenas uma certeza, a de que o amor de Deus é absoluto, mas ela mesma não se alimenta de certezas. A fé em Cristo não cresce em nós porque nos podemos apoiar em razões sempre mais convincentes. É, portanto, falha e completamente equivocada uma catequese destinada a provar, seja lá o que for. A fé cristã não se alimenta de provas.
           
A razão não foi dada ao homem para completar a fé. Em certa medida pode-se dizer que a razão é a grande inimiga da fé.

3) O objeto da fé é o mistério. A fé, mesmo a fé em Cristo, não se destina a fornecer explicações. Apenas diz o que é, mas não diz porque é assim. A única verdade com relação à morte é esta: ela não ocorre no termo final da vida, mas representa apenas o início e o momento inaugural de uma nova fase da mesma vida que aparentemente chegou ao fim. Está na hora de pensar seriamente em substituir a concepção terminal da morte por outra mais condizente com a realidade. Esta outra concepção podemos defini-la como inaugural.
           
Se alguém dissesse que a vida das pessoas só começa a se tornar real a partir do momento em que ela morreu, poderíamos concordar com ela, desde que atribua não à morte, mas à ressurreição o destino ulterior da sua vida. Devemos ao apóstolo Paulo esta preciosidade teológica: “Assim como uma estrela difere das outras, do mesmo modo os corpos ressuscitados diferem uns dos outros” (I Cor 15,15).
           
A destinação inicial dos que morrem é determinada pelo modo como cada pessoa viveu a sua vida. Quem viveu sua vida servindo à corrupção, não deve esperar outra coisa após a morte, a não ser um prolongamento da forma como viveu sua vida até então. Quem quer participar da gloriosa ressurreição de Cristo tem que ter vivido como Cristo viveu e ser tão livre como Ele foi.

Padre Marcos Bach


A LOUCURA DA CRUZ DE JESUS CRISTO

O que distingue o projeto messiânico de Jesus dos de outros salvadores da história anteriores e posteriores a Ele é o fato de ter encontrado nele um lugar e um papel positivo para o sofrimento. Quem contempla Jesus pregado numa cruz, o instrumento de morte mais cruel inventado pelo homem, contempla um fato inédito na história. Nem Buda nem Maomé permitiram que seus inimigos os prendessem e condenassem à morte. O que foi possível ver e assistir naquela memorável “Sexta-feira Santa” em que o Filho de Deus foi executado como se fosse um criminoso qualquer e na companhia de dois ladrões, isto é, de dois “homens-bomba” pilhados antes de terem tido tempo de pôr em prática o seu intento, só pode ser classificado adequadamente como manifestação de loucura.

Loucos eram os que mataram a Jesus Cristo, uivando de júbilo por terem conseguido livrar-se dele. Mais louco do que eles, seus assassinos, era o Homem que escolhera livremente esta forma de se despedir da vida.
           
Quando o apóstolo Paulo sintetiza a essência da fé cristã com a palavra loucura da cruz (I Cor 1,18) como a essência da sua pregação, tomou o cuidado de distinguir o que entende por loucura de Deus do que entende por loucura do mundo. A “loucura de Deus é sabedoria” (I Cor 1,25), enquanto a loucura deste mundo é insanidade mesmo! Até “a sabedoria deste mundo é loucura”, diz Paulo (I Cor 3,19).
           
Quando os carrascos puseram fogo à pilha de lenha em que Joana d’Arc iria morrer, apareceu um representante da Santa Inquisição e lhe apresentou um crucifixo para que ela o beijasse em sinal de arrependimento, tornou-se visível que a Igreja do século de Joana d’Arc já não era mais a mesma do tempo dos mártires!
           
Tudo o que lembra cruzada destoa por completo do espírito de Cristo, pois a cruz de Cristo é símbolo de redenção e não de perseguição. Aquele que mata para não ser morto não pode fazê-lo em nome de Cristo que deu a sua vida, mas não tirou a de ninguém (cf. Mt 20,28).
           
“Eu vim para que tenham vida” (Jo 10,10). As cruzadas, como a jihad islâmica, não brotaram da lei do amor nem do espírito de Jesus.
           
Jesus era manso e humilde, mas não era pusilânime ou covarde. Dispunha de tamanha energia e força que podia permitir-se o luxo de ser manso e de responder com um sorriso indulgente às artimanhas de seus inimigos. A cruz de Cristo coloca a humanidade toda, e a cada alma em particular, acima do sofrimento e fora de seu alcance. Enquanto o corpo e a alma sofriam, seu espírito continuava unido a Deus.
           
O masoquista é um doente mental que encontra prazer no sofrimento. O místico cristão, ao contrário, não sofre por amor ao sofrimento. Não ama porque sofre, nem é a cruz que abraça, mas Jesus Cristo pregado nela. Não vê a Cristo como companheiro de sofrimento com o olhar com que num hospital um doente olha para outro. A “Cruz de Cristo” nos ensina que não é o sofrimento que nos santifica nem o amor com que o abraçamos. O que nos santifica, em verdade, é o amor com que respondemos ao amor infinito de Deus.
           
A cruz, instrumento de morte, Jesus a transformou em altar e em sacramento de salvação. A “Cruz de Cristo” não é apenas aquele madeiro em que foi pregado perto de dois mil anos atrás. A “Cruz de Cristo” é o sofrimento da humanidade toda desde que foi expulsa do Paraíso até o último minuto de sua história.
           
Jesus morto foi tirado da cruz, mas o Cristo Ressuscitado continua comprometido com o sofrimento humano mais do que nunca. O fato de ter subido ao céu e de ter ocupado o seu lugar na “Glória do Pai” não significa que, além do pecado e da morte, deixou de compartilhar com os homens também o sofrimento.
           
Diz a lenda que quando escavadores encontraram no alto do Gólgota a cruz em que Jesus morrera, o Imperador Constantino tomou a si a tarefa de carregá-la até a basílica onde seria exposta à veneração pública. Com o fito de conferir à cerimônia um brilho maior, ele mesmo se vestiu com o máximo de pompa. Mas no momento em que ia colocar a cruz às costas notou que ela era pesada demais para seus ombros. Alguém então lhe sugeriu que fosse trocar de roupa, substituindo o manto de púrpura e a coroa imperial por um traje mais condizente com o simbolismo da cruz. Foi o que Constantino fez e quando a tomou de novo em suas mãos percebeu que ela era leve e fácil de ser carregada!
           
O que torna a vida humana pesada é o sofrimento absurdo que as pessoas se infligem a si próprias e a seus semelhantes.
           
A morte de Jesus não é o remate de uma vida fracassada nem o capítulo final de uma tragédia. A Paixão de Cristo forneceu a Johan Sebastian Bach a inspiração para uma bela composição musical. O que Katharina Emmerich descreve em suas “visões” pode ser descartado em boa parte como obra de uma mente “seriamente perturbada”.
           
Jesus sofreu, é verdade, mas não passou a vida sofrendo. Se tomou parte em festas é porque sabia divertir-se. Se compartilhou um copo de vinho com seus amigos certamente não o fez chorando. A morte na cruz é apenas um pequeno capítulo na vida de Jesus, extremamente importante, é verdade, mas pouco significativo no conjunto total de sua vida terrena. Não foi o único a morrer na cruz naquela sexta-feira.
           
A Paixão de Cristo foi isolada do contexto geral de sua vida e sofreu um tratamento político-ideológico que fez dela um acontecimento único na história e totalmente fora do comum, quando na realidade não passou de episódio corriqueiro na época e na Palestina de Jesus.
           
O fato de ter morrido na cruz não contribui para fazer de Jesus um herói digno de veneração. O fato de ter morrido na cruz não significa que derramou, para nos salvar, todo o seu sangue. É sabido que a morte na cruz não acarreta grande perda de sangue. Por que o cristianismo descambou para uma forma tão sadomasoquista e esquizofrênica visão da Paixão de Jesus?
           
Jesus desceu do madeiro da cruz há muito tempo e nada indica que volte a repetir a mesma dose. Mas a humanidade continua tão crucificada como nos tempos de Jesus. Crucificada a leis iníquas, a uma ordem social visceralmente injusta. Metade da humanidade passa fome! O povo norte-americano representa seis por cento (6%) da população mundial, mas consome e desperdiça quarenta por cento (40%) do que é produzido no mundo. Não há Igreja cristã que não necessite de uma corajosa vassourada!
           
Jesus gostaria que a Sexta-feira Santa durasse o ano todo e todas as Comunidades Cristãs a chorar com os que choram, em vez de carpir e lamentar a morte de Jesus. Jesus não pede que tenham pena dele, mas aceita com prazer e carinho toda e qualquer demonstração sincera de amor! E foi explícito num pormenor: a medida do genuíno amor a Deus é o amor ao próximo! “Filhinhos, amai-vos uns aos outros”, recomendava o apóstolo São João a seus ouvintes. Estes se queixaram a ele, dizendo: “Mestre, por que pregas sempre a mesma coisa?” “Porque é mandamento do Senhor. E se for cumprido, tudo o mais deixa de ser importante” (cf. I Jo 4,7).
           
Todo aquele que se reveste de um máximo de autoridade e poder é mau pastor, porque se esquece de que no seio de uma Comunidade Cristã não há espaço para senhores. Nela só há lugar para irmãos, onde todos podem tomar o seu prato e servir-se no mesmo “buffet”.

Padre Marcos Bach


COMO DESCOBRIR O NOSSO INTERIOR

Quanto mais uma pessoa se afasta do mundo que a cerca e penetra em seu interior, tanto mais ela se descobre como sujeito dos seus atos, e tanto menos se vê como objeto.

Todo diálogo interior se realiza em três níveis diferentes. Tem-se a impressão de que são três os interlocutores que se defrontam.

1) O primeiro fala em nome do que a pessoa já foi. É o porta-voz do passado. Carrega em seu bojo o conhecimento e a lembrança de tudo o que a pessoa já experimentou ao longo da trajetória evolutiva. Esta trajetória teve início muito antes do início dos tempos no pensamento criador de Deus tanto como em sua vontade. Cada ser humano ainda traz em seu interior um órgão psíquico que lhe permite tomar contato com este seu passado: é o Eu Superior, como alguns estudiosos da psique humana o chamam. Outros lhe dão o nome de Self. Outros o chamam de Quem Sou Realmente, opondo-o aos muitos “eus” fragmentados dos quais nos investimos ao longo de um dia de vida. Creio que ninguém chegou mais perto da verdade do que Khalil Gibran e que lhe deu o nome de Eu Divino. É este o lugar onde Deus está à espera dos que desejam “adorá-lo em Espírito e Verdade” (Jo 4,24).

2) A única maneira de reviver episódios do passado é concentrar toda a sua atenção no momento presente, no agora. O passado não deve ser visto como tempo morto. Posso trazê-lo de volta à vida, pois ele se encontra apenas adormecido.

Tem razão Khalil Gibran aos que afirmam ser bem pequeno o número de pessoas despertas, pois a maioria vive a sua vida em função de desafios que o tempo lhes oferece. Poucos são os que como o Santo Jesuíta Luis de Gonzaga a viveu em resposta à pergunta: “Quid hoc ad aeternitatem?”. “O que ainda vai ter valor quando o tempo tiver esgotado o seu arsenal de desafios?” Esta é a única chave de interpretação quando se quer saber qual o sentido último da nossa passagem por este planeta.
           
Passado e futuro na realidade só existem como abstrações, como criaturas de mente humana. Quem passa a sua vida perdido em preocupações cuja finalidade é impedir que o passado morra, perde o seu tempo, pois tempo que não desemboca na eternidade é tempo perdido.
           
Se passado e futuro não existem a não ser como abstrações da mente humana, então real é só o que é eterno. A morte equivale a uma transposição, a uma mudança de curso. As águas da vida já não fluem mais, como antes, de um impermanente para outro, mas do se põe a fluir em sentido contrário: do um permanente para outro, mais permanente.

 3) A pessoa, homem ou mulher, culta ou analfabeta, dotada de senso prático, quer saber como efetuar esta transposição, esta mudança de curso, já em vida, “hic et nunc”. Ou será que deve esperar pela morte física para dar início à vida eterna?
           
Ascetas e místicos sempre usaram a palavra mortificação para definir o caráter destrutivo desta mudança de rumo. Perde a sua vida quem não se anima a perdê-la. “Quem quer salvar a sua vida, perdê-la-á” (Mt 16,25), ensina Jesus.
           
Quem não souber morrer em vida não saberá como enfrentar a morte. A morte não é uma fatalidade, uma desgraça inevitável, que em nada contribui para melhorar a qualidade de vida dos que se negam a ver nela mais que um “finale” inglório, uma indecência desnecessária.
           
Tudo está a nos dizer que o dia de nossa morte será o mais belo da nossa vida! Quem se nega a morrer não é a alma, mas o ego, a instância usurpadora da nossa psique. Usurpadora porque ocupa um lugar que não é o seu. Pior que isto: condenou à marginalidade o Eu Superior, o único agente psíquico capaz de desempenhar o papel de centro criador da personalidade humana.

Padre Marcos Bach


O PODER DA ORAÇÃO

O poder da oração é real por duas razões:
1º - É vibração energética espiritual de altíssima intensidade.
2° - É atividade em que a participação de Deus e decisiva.

Logo, a oração é um modo de concentrar quantidade formidável de energias superiores extremamente poderosas. O uso que se faz destas energias é, no mínimo, tão decisivo quanto o próprio potencial energético disponível. Aí, me parece, é que entra o abuso.

Desviar as energias espirituais, mobilizadas por meio da oração, de seu objetivo primordial, só pode ser tomado como abuso. Qual é, porém, esta finalidade principal da oração? É a união com Deus. É a santificação, a identificação cada vez maior com a pessoa de Jesus Cristo.

A finalidade da oração é colocar o ritmo do nosso amor em sintonia com o Amor Divino. Pois a oração faz com que sejamos assimilados de forma crescente ao ambiente divino em que “vivemos, somos e nos movemos” (At 17,28).

Todos os grandes artistas, estadistas e santos de todos os tempos foram pessoas que meditavam e refletiam intensamente. Encontravam-se, por isso, mas próximos da realidade do universo paralelo, onde o contato com a verdade dispensa a mediação dos sentidos e da razão.

O místico sempre acreditou que no interior da consciência humana é o local onde a criação atinge os mais elevados patamares de desenvolvimento e perfeição. O retorno à sua origem espiritual o universo não o fará “explodindo”, mas “implodindo”, tornando-se consciência reflexa. A fuga das galáxias e a fuga do homem moderno para a atividade exterior não representam mais que um momento secundário no conjunto da evolução da matéria. No momento essencial segue em sentido oposto, de recolhimento e de interiorização. Não ocorre, no tempo existencial de cada ser humano, nada verdadeiramente mais digno de sua condição espiritual que o encontro face a face consigo mesmo. Pois é este o objetivo do encontro face a face consigo mesmo. E é este o objetivo da meditação.

É certo, para poder assumir pessoalmente a responsabilidade plena por sua vida, é necessário um grau relativamente elevado de maturidade psicomoral. A pessoa deve ser capaz de elevar-se acima da inércia paralisante do ambiente social em que vive. Mais, deve querer sair da mediocridade de uma existência asfixiada e asfixiante se este for o caso. Tudo o que vier pela frente depois desta opção decisiva terá que ser levado “no osso do peito”. Aquele que nesta jornada tiver a sorte de encontrar um companheiro de aventuras está com a metade das chances de sucesso garantidas.

Padre Marcos Bach


COMUNHÃO DE FÉ ENTRE TODOS OS CRISTÃOS

Cristo continua presente na história da humanidade? Seus mais graduados representantes na terra dizem que não. Ao menos se comportam como se assim fosse. O papa se intitula “Vigário de Cristo” e “lugar-tenente” (locus tenens) de Deus na terra. Nas Igrejas cristãs tudo está organizado como se Cristo não estivesse presente, como se o Espírito Santo tivesse tomado férias.
           
A Igreja não só representa a Cristo, mas ocupou o seu lugar. Quem quer ser cristão e pleitear o direito a um lugar no Reino de Deus tem que ser membro de uma das muitas Igrejas que se dizem cristãs e atribuem a sua origem a Cristo ou a uma inspiração do Divino Espírito Santo.
           
Qual a Igreja cristã que trata os membros de outras Igrejas verdadeiramente como irmãos? Qual o católico que é convidado a praticar a sua fé em comunhão de fé com a de membros de outra confissão, como protestantes ou ortodoxos?
           
Nos Livros Sagrados está escrito que “Jesus subiu ao céu quarenta dias depois da sua ressurreição” (At 1,11). Porém, lá também está: “Não vos deixarei órfãos” (Jo 14,18). E Mateus conclui o seu Evangelho com estas palavras de Jesus: “E eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28,20).
           
Jesus não se retirou da vida dos homens. Não subiu ao céu porque nunca o abandonara. Nunca abandonou a vida nem a perdeu. O fato de tê-la entregue e de permitir que o crucificassem não foi uma perda, mas um ganho. Quem quer participar com Jesus da sua gloriosa ressurreição tem que morrer primeiro (Lc 24,26).
           
Existem duas maneiras de liberar a energia contida num átomo. Uma consiste em levar dois átomos a se fundir e a unir desta forma seus núcleos. No campo do relacionamento humano isto se dá quando duas pessoas se amam. Da qualidade e da intensidade deste amor depende o volume de energia liberada. A outra maneira de produzir energia atômica consiste em levar um átomo a se desintegrar. A fissão atômica é um processo mais rudimentar, mais primitivo e mais sujo do que o método da fusão. No terreno político-social é mais fácil dividir do que somar. Por muito tempo prevaleceu no campo da pesquisa científica o método analítico que consistia em separar um objeto dos demais e dividi-lo depois em suas partes. Hoje sabemos que esta não é a melhor maneira de adquirir conhecimento científico. Não se pode separar uma planta ou um animal do seu ambiente e do nicho ecológico em que se encontra sem torná-lo irreconhecível.
           
Uma planta é um ser vivo em permanente comunicação com todos os demais seres vivos, desde o homem até a bactéria.

A ideia de que tudo é composto de partes que se juntam para formar um todo está sendo substituída por outra, a de que real é apenas o todo e que o que classificamos como parte é apenas uma versão miniaturizada do todo.

Padre Marcos Bach


AMOR À VIDA QUE RENASCE NO BELO

Quando se fala em amor à vida não se podem escamotear estes dois aspectos fundamentais da existência humana: o psicológico e o ético.

Creio que a maioria dos defensores da dignidade da pessoa humana esqueceu um pouco demais estes aspectos mencionados acima. A pessoa humana tem o direito de viver a vida de tal modo que se possa sentir a qualquer momento satisfeita com a parte de vida que lhe toca.

Quem vive a sua condição humana em estado permanente de insatisfação e frustração continua vivo, mas não vive de acordo com a dignidade inerente à sua vocação humana. A pessoa humana é um ser a quem foi dirigido um apelo: o apelo-convite que o chama para a tarefa histórica de se gerar a si próprio.

É, portanto, um ser que não se pertence. Se quiser um dia pertencer-se a si próprio terá pela frente mais trabalhos do que Hércules; terá que operar mais e maiores milagres do que Cristo realizou. Terá que libertar-se. Terá que passar da liberdade-dependência para a liberdade-autonomia. Terá que sair do casulo protetor, como o faz a borboleta. Terá que nascer de novo. Mas sem retornar ao útero materno. Do mundo seguro das certezas abonadas pelo beneplácito da maioria ou pelo bafejo benevolente das autoridades, terá que saltar para um mundo totalmente alheio a tudo que a sociedade oferece. Terá que romper com o princípio da autoridade. Terá que enfrentar a “Traição”, como diria Nietzsche. Terá que aprender que não existe fidelidade nem Fé sem uma dose maciça de “Traição”. O mais dramático paradoxo da vida está em que devemos matar em nós aquilo que queremos que viva. Devemos matar a “criança” em nós para que a “Criança” possa viver e crescer. O grão deve morrer para que a espiga possa nascer.

Sem rebeldia não poderá haver libertação. Todo o acréscimo de liberdade é o fruto de uma ruptura. O germe rompe a casca protetora da semente. Pregar uma ideia nova é entrar num campo de batalha. Vista do alto, uma paisagem campestre parece um oásis de paz. Mas a vida que se oculta por detrás desta aparência, nada tem de pacífico. A vida não descansa nunca. Não tem nem sábado, nem domingo. Se a vida não descansa, por que o homem tem que ter um dia cada semana para descansar? É porque o homem é mais que vida, é espírito. O homem pode atrelar-se ao trabalho de modo tão servil que acaba perdendo o contato consigo mesmo, precisamente com sua parte melhor, aquela que o trabalho jamais poderá satisfazer.
           
Quando postulamos como Nietzsche a primazia da vida sobre a verdade, estamos pensando a vida em termos humanos e não meramente biológicos. Pensamos na sua dimensão psicológica, no seu aspecto ético, e também em tudo aquilo que torna a vida bela e encantadora. Não temos a intenção de regredir aos tempos de Virgílio. O encanto bucólico de uma vida no campo está fora do alcance da esmagadora maioria dos que moram nas metrópoles modernas. Isto, porém, não muda em nada a necessidade que todo o homem tem de viver uma vida bela. O aspecto estético é para o homem tão essencial quanto o ético, o psicológico e o social. Para sentir-se bem e para elevar-se, o espírito humano precisa de beleza. Onde falta beleza não pode haver lugar para o homem. O acesso à beleza só se dá pelo caminho da liberdade. Onde não há liberdade não pode haver arte, leveza e encanto. É inútil ornamentar e embelezar uma prisão.

Quantas instituições, desde o Estado até a Igreja, mais se parecem com prisões do que outra coisa tantas são as leis e tamanho é o controle que exercem sobre o pensamento e a consciência dos indivíduos! A própria verdade é usada como meio de circunscrever dentro de espaços, diligentemente vigiados, a liberdade e a criatividade do pensamento político, ético, religioso e até mesmo artístico. Tem-se a sensação de que as religiões estão sempre mais interessadas em combater o erro do que em promover o progresso da Fé. O Vaticano não tem o hábito de estimular a pesquisa teológica.

Cristo foi um homem lúcido e extremamente corajoso, honesto e coerente consigo mesmo. Nele se pode observar uma coisa muito rara: a coerência absoluta entre pensamento, palavra e ação.

Padre Marcos Bach


O TEMPO ESCATOLÓGICO   

Uma das características do tempo escatológico é sua natureza incoativa. A palavra incoativo vem do verbo latino inchoare e significa começar. A conclusão de tudo o que de verdadeiramente válido tivermos iniciado nesta existência poderemos concluí-lo. Falta de tempo, como de oportunidades, não será problema. O único problema será causado pelo baixo nível de consciência com que tivermos partido da terra ao morrer. Preguiça, covardia e insensatez irão dificultar o nosso desenvolvimento espiritual, como já o fizeram aqui, já que nossos vícios irão nos acompanhar na hora de morrer.
           
Quem acha que a continuação da vida nos mundos invisíveis vai ser uma excursão turística e que lá tudo lhe será dado de graça, pode preparar-se para surpresas, algumas bem incômodas.
           
O espaço que corresponde ao tempo escatológico não é mais o familiar espaço tridimensional. Uma nova dimensão irá juntar-se às três coordenadas do espaço tridimensional. Uma “Quarta Dimensão”, a da interioridade, passará a constituir a coordenada principal. Todas as coisas possuem um dentro que determina as diferenças entre elas. É no interior do homem que acontece o verdadeiramente significativo.
           
Este espaço-tempo novo inaugurado por Ele, Jesus o define como “Reino de Deus”. E foi taxativo ao afirmar: “O Reino de Deus se encontra dentro de vós” (Lc 17,21). É neste espaço privilegiado que se realiza o encontro da alma humana com seu Criador.
           
Uma das descobertas da moderna biologia afirma que cada célula do corpo humano se encontra envolta numa espécie de bolsa energética a que o biólogo alemão Detlevsen dá o nome de “bem-aventurança”. Ela é, segundo ele, responsável pelo bem-estar e pela felicidade de cada célula, em particular. Sendo assim, pode-se afirmar que a grande felicidade e o bem-estar geral de cada pessoa humana depende da colaboração de trilhões de pequeníssimos “diabinhos” (diria Rutherford). A palavra grega para felicidade é eudaimonia, dando a entender que ela é obra de forças misteriosas sobre as quais a pessoa humana não possui o controle.
           
Não é por mero diletantismo verbal que Jesus define o Reino de Deus como mistério (Mt 13,11): “Nem a todos é dado conhecer os mistérios do Reino de Deus”.
           
Mistério em sentido estrito é toda realidade ou aspecto dela que é impossível entender. Einstein gastou boa parte do seu tempo de vida procurando entender a composição da matéria. A primeira conclusão a que chegou foi que “a essência da matéria é espiritual”, e não material. Perto do fim dos seus dias desistiu da ideia de tentar compreender o universo, contentando-se com admirá-lo. “O universo é um mistério”, dizia, “e um mistério não cabe em conceitos lógicos ou em equações matemáticas”.
           
O universo em que vivemos atualmente não é mais o mesmo que Moisés encontrou pela frente. Moisés tentou civilizar este universo formulando leis, leis sábias e, acima de tudo, suficientemente numerosas para cobrir todo o espaço social. Suficientemente meticulosas para impedir que a falta de clareza tornasse difícil a sua aplicação prática. A este universo Cristo veio pôr um fim. O universo em que vivemos é um universo redimido e liberto. Em lugar de promulgar mais leis e leis mais sábias, reduziu-as todas a uma única grande lei: a lei do amor e da liberdade. “Quem ama pode fazer o que quer”, dizia Santo Agostinho. “Ao fazer o que Deus quer faço sempre e em tudo a minha vontade”, dizia Santa Teresinha de Lisieux.

Padre Marcos Bach


COMO DESCOBRIR QUE DEUS É AMOR

Do Pai divino do qual Jesus fala com tanto carinho, Ele mesmo diz: “O Pai vos ama” (Jo 16,27).

Não é no terreno do saber e do poder que devemos procurar a novidade contida na mensagem de Jesus, mas no terreno do amor! Até o dia em que Jesus veio para nos falar de Deus não havia religião que não apresentasse Deus como Senhor exigente e distante! São de Jesus estas palavras: “Se alguém me ama, Eu e o Pai viremos a ele e nele faremos morada” (Jo 14,23).
           
“O Criador do universo veio morar entre nós”! Não só no meio de nós como transeunte em nossos caminhos, mas como inquilino de nossas almas!
           
O que Jesus nos veio revelar é tão incrivelmente absurdo que ainda hoje, passados dois mil anos, são muito poucos os que “têm ouvidos para ouvir” (Mt 11,15). Absurda é a vida dos que passam por ela sem ver nem ouvir o essencial. São surdos e cegos por culpa própria.
           
Para descobrir que Deus é Amor não é preciso abrir a Bíblia. Esta é uma verdade inscrita em tudo o que nos cerca! O Amor do Pai Celeste é tão simples e cristalino quanto o riso de uma criança! Para descobri-lo é indispensável voltar a ser criança. “Se não vos tornardes como as crianças de modo algum entrareis no Reino de Deus” (Mt 18,3).
           
O que o amor de amizade tem em comum com o Amor de Deus e o amor de uma criança é que não é necessário merecê-lo. Ele surge quando menos se espera. É discreto, pois não é dado a efusões românticas, nem é do seu feitio fazer discursos. O Amor de Deus é tão simples e humilde, tão desataviado e sem floreios porque é extremamente parecido com o de uma criança.
           
São as crianças que mais perto se encontram da fonte originária de todo o amor humano que é o Amor do Pai Celeste. Seu amor não é regulado por leis, nem impõe limites. É amor puro porque é totalmente gratuito! Não necessita do prazer como condimento, nem da felicidade como recompensa!  Tanto na vida de uma criança como na de Deus, amor e felicidade são inseparáveis. Em ambos os casos o Amor traz em si a sua razão de ser.
           
É no amor de amizade que estas prerrogativas do amor se manifestam num grau de pureza que as demais formas de amor não possuem!
           
Será que não é o amor materno o que mais se parece com o Amor de Deus?  Não são as mães as que melhor encarnam o amor em toda a sua pureza? Se amigo é aquele que não hesita em dar a sua vida em benefício da do amigo, por que não atribuímos ao amor materno as virtudes que acabei de conferir ao amor infantil? Não é o amor da mãe por seus filhos muito mais generoso e adulto que o de uma criança?
           
Não vale no terreno do amor o princípio da generosidade segundo o qual “ama mais aquele que dá mais”. Neste terreno a medida é a confiança e não a generosidade.
           
A criança confia cegamente na sinceridade dos adultos porque ela mesma é totalmente sincera. Por isso seu amor é total. Total e radical! Quando ama empenha neste seu gesto a totalidade da sua capacidade de amar! Seu amor é sempre grande a seus olhos, enquanto o amor das pessoas grandes não costuma ter em suas vidas a importância que uma criança costuma atribuir a suas pequenas conquistas amorosas!
           
Quando o papa Pio XI canonizou a Teresinha de Lisieux não faltou quem exclamasse: “mas o que ela fez para merecer a honra dos altares”?
           
O papa João Paulo II completou o “escândalo” quando proclamou Teresinha de Lisieux, uma freirinha que nunca pusera pé numa Universidade, Doutora da Igreja.
           
No Reino de Deus a lei é esta: “Quem quer ser o maior faça-se o menor de todos” (Lc 22,26). São as crianças que carregam em seus ombros o futuro do Reino de Deus. Logo são elas as responsáveis pelo futuro da Igreja de Cristo!
           
Ser criança no sentido que Jesus atribui à metáfora, significa não trair a sua origem divina, esquecendo a sua filiação divina! Verdadeiramente adulto é o filho grande que ainda aceita o convite de sentar-se no colo do pai! Já se viu: um marmanjão sentado no colo do Pai? “Se não vos tornardes como as crianças, de modo nenhum entrareis no Reino de Deus” (Mt 18,3).

Padre Marcos Bach


A AUTÊNTICA COMUNIDADE CRISTÃ

A tentação de transformar uma Comunidade Cristã num “terreiro” e num centro de curas é por demais insistente para que alguém permaneça imune a ela. Igualmente grande é a tentação de usar a Comunidade Cristã como palco destinado a tirar a fé cristã da obscuridade: o assim chamado marketing religioso está se tornando moda em grande número de Igrejas “cristãs”.
           
Quem mais sofre com este tipo de “apostolado” é a verdade. Numa celebração destinada a empolgar multidões só pode haver espaço para aplausos e slogans. Nelas a dimensão crítica da fé cristã é sistematicamente excluída. Lá tudo é motivo de exaltação emocional, como se o essencial da fé cristã consistisse em louvar a Deus e em entoar aleluias em sua honra.
           
Jesus não era frequentador assíduo do Templo, um lugar santo onde era proibido contestar e criticar. Mas podia ser visto em Sinagogas. Nelas era permitido questionar, discordar. Havia nelas lugar para a voz do profeta. Por onde ia, Paulo incluía a Sinagoga em seu roteiro apostólico.
           
A Sinagoga judaica é o espaço religioso mais próximo do que o apóstolo Paulo entendia por Igreja ou Comunidade Cristã. Era e continua sendo até hoje um centro aglutinador de um povo disperso e sem pátria. A perseguição e o ostracismo social sempre fizeram parte da sua vida de povo “errante”. A Sinagoga era o lugar onde a comunidade judaica reacendia sempre de novo a sua esperança messiânica e sua fé nas promessas feitas por seu Deus.
           
Uma Igreja ou Comunidade Cristã é, no entanto, um espaço religioso diferente. No centro da religiosidade cristã a esperança deixou de ser expectativa e passou a ser sinônimo de posse e certeza. A palavra grega pleroma, isto é, plenitude, tão frequente nas cartas de Paulo, caracteriza a diferença que existe entre uma Comunidade Judaica e uma Comunidade Cristã. Entre uma Sinagoga e uma Igreja. O grande mérito de Paulo consiste em ter sabido somar o que podia ser somado, em sintetizar o que podia ser sintetizado. E em excluir e deixar de fora o que não se ajustava ao Espírito da Nova Ordem inaugurada por Cristo.
           
O que para um judeu é motivo de saudade e de expectativa, passou a ser no seio de uma Comunidade Cristã motivo de júbilo e de gratidão. Para um judeu o essencial da História da Salvação ainda está por acontecer. Embora admita que o essencial já tenha acontecido, o cristão “progressista” sabe que sua fé não lhe garante um futuro tranquilo e sem conflitos. Tem a consciência de que até a mais idílica das Comunidades Cristãs não será um lugar apropriado para quem gosta de estar de bem com Deus e todo o mundo.

A fé cristã não oferece soluções mágicas ou definitivas. Numa Comunidade Cristã tudo é tão provisório, imperfeito e inacabado quanto numa Sinagoga judaica.
           
No Concílio Vaticano I (1869-70) a Igreja católica insistiu em se autodefinir como “Societas Perfecta”. Quase um século mais tarde o Concílio Vaticano II (1962-65) já fez questão de salientar o caráter transitório das instituições eclesiásticas.

Grande parte do que é considerado definitivo e eterno por canonistas e burocratas apressados, na realidade é tão relativo e transitório quanto o é qualquer meio em relação ao fim. O fim é a instauração do Reino de Deus na Terra dos Homens. Igrejas e instituições eclesiásticas nada mais são do que meios. É do fim que os meios recebem a sua legitimidade.
           
Missão essencial de toda Comunidade Cristã é tornar visível a presença do Amor Divino na vida dos homens. Pregar a Cristo no conceito de Paulo é anunciar à humanidade o advento de uma Nova Era nas relações do homem com Deus e dos homens entre si. Por isso não merece ser considerada cristã uma comunidade que se comporta como se o mundo ao redor dos seus templos não fizesse parte das responsabilidades de sua missão apostólica.

Padre Marcos Bach


A VIDA EM PLANO SUPERIOR       

Como alguém pode saber que sua vida começou a se desenvolver num plano superior?
           
Critério básico é a satisfação que ela lhe proporciona. Uma felicidade crescente e até certo ponto desconhecida até então, torna-se companheira constante do seu dia a dia. Amar a todos, suportar os seus defeitos, perdoar e compreendê-los, já não é mais um fardo, mas fonte e motivo de alegria. Tudo o que antes era suportado como sacrifício, agora é visto como bênção e graça de Deus. A pessoa sente a verdade da promessa de Jesus: “Vinde a mim todos os que andais sobrecarregados e Eu vos aliviarei”(Mt 11,28).

Aquele que se orienta em obediência aos planos mais elevados da sua consciência encontra pela frente facilidades e apoios secretos com que o escravo do vício não consegue sequer sonhar. É um preconceito dos mais nefastos supor que Cristo veio para tornar a prática do bem e a vida humana mais difíceis do que já são por si. Não foi o peso da cruz de Cristo que fez dele o Salvador da humanidade, mas o amor com que a abraçou. Sofrer por sofrer é masoquismo. O próprio sofrimento pode ser fonte de alegria espiritual. O será na medida em que contribuir para libertar a pessoa do apego aos pequenos e por vezes ridículos prazeres do corpo.

O sofrimento, quando aceito com amor, é libertador e abre na alma espaço para o gozo de prazeres mais nobres. O aprimoramento da consciência espiritual que acompanha a ascensão a planos mais elevados de consciência não elimina o sofrimento, mas confere-lhe um sentido, um valor e uma dignidade que o distingue em tudo do sofrimento de um animal.

Outro sinal de que se está a caminho de um novo modo de conduzir a vida é a simplicidade interior. Esta, por sua vez, é fruto da descoberta de que tudo o que acontece dentro e fora do homem forma um todo, onde cada “parte” nada mais é do que o todo em escala menor. Esta concepção, chamada de “holística” pelos físicos atuais, representa um passo decisivo no campo da antropologia. Ela veio tomar o lugar da anterior, segundo a qual o homem tanto quanto o universo é feito de fragmentos que se juntam para formar um todo (= holos, em grego).
           
A concepção holística afirma o contrário. Vê o homem e o universo como totalidades inteiras e não como pedaços de totalidades ainda maiores e mais completas.

“A Igreja é uma sociedade perfeita”, dizia-se ainda cem anos atrás. Imperfeitos são os seus membros, especialmente aqueles que constituem a base da pirâmide eclesial. A unidade à qual me refiro é de natureza psicológica.
           
É no interior da consciência individual que as muitas e variadas experiências da vida vão se arrumando em torno de um novo centro. A situação anterior se parecia com a de uma casa abarrotada de coisas que nada tinham em comum. Coisas que nada tinham a ver umas com as outras.
           
Quando falta um centro organizador da vida interior, o indivíduo fica com a impressão de que sua vida não lhe pertence. De que sua liberdade é uma piada de mau gosto. Sente-se perdido. Sai à procura de ajuda. Consulta um diretor espiritual. Ou, então, vai à procura de um psiquiatra, procurando fora o que poderia encontrar dentro de si mesmo.

O Jesus que curava doentes e expulsava demônios já não vive mais na Palestina, mas encontra-se nos planos superiores da consciência de cada ser humano. É preciso salientar com toda a ênfase que Cristo é o Salvador da humanidade toda e que toda pessoa de boa fé pode encontrar-se com Ele no íntimo da sua consciência.

Padre Marcos Bach


DIREITO À LIBERDADE        

O que torna a prática da caridade cristã tão difícil é que ela exige uma disposição para o perdão e uma paciência que só poucos se dispõem a abraçar. O processo de autolibertação começa no interior da consciência individual e envolve primeiramente o relacionamento da pessoa consigo mesma.
           
Num segundo tempo esta mudança se estende também ao campo do relacionamento social. No princípio constituem áreas aparentemente separadas e antagônicas, mas aos poucos o processo gera não só um novo tipo de relacionamento social, mas dá origem a um novo círculo de amizades, onde o traço mais em evidência é o respeito pela liberdade de cada um.
           
Só uma pessoa muito livre está em condições de respeitar a liberdade do seu irmão na fé como Cristo o fez. “Não julgueis”! (Lc 3,37).

Julgar e criticar não são a mesma coisa. Criticar é passar ideias e comportamentos pelo crivo da verdade. Julgar é atitude que tem por alvo pessoas. Quem é livre como Cristo o foi não sente a necessidade doentia de se arvorar em juiz e em “palmatória” moral.
           
A liberdade da qual estamos falando brota no interior da pessoa e de lá se estende para o ambiente social. Não pode ser imposta, nem pode ser usada como bandeira. Não há forma de escravidão que não tenha sido implantada em nome da liberdade.
           
Todos nós, que como eu falamos em nome da liberdade, corremos o risco de expor o leitor ao perigo de trocar uma modalidade de escravidão fora de moda, por outra, mais moderna. Grande parte da nossa tão badalada modernidade é constituída de vícios transfigurados em virtudes. Comer e beber além da medida era vício até pouco tempo atrás. Hoje é sinal de prosperidade. O limite que separa a prodigalidade do desperdício tornou-se tão impreciso e vago que só um pobre é capaz de lhe perceber a diferença.
           
Quando alguém se levanta e diz que todo ser humano tem o direito à sua liberdade, imediatamente lhe surge pela frente alguém revestido da aura do Grande Inquisidor.
           
Os homens, isto é, a grande massa de crentes, não está em condições de arcar com as responsabilidades todas inerentes ao exercício da liberdade plena. Na opinião do Grande Inquisidor de Dostoievski o maior erro que Cristo cometeu foi o de propor um ideal de liberdade a massas populares mais familiarizadas com o papel de escravos do que com o de homens livres. Este ponto de vista continua sendo até hoje o mesmo dos que se sentem responsáveis pelo destino religioso da humanidade.
           
Cristo concedeu a seus seguidores o direito a uma liberdade que até hoje é vista como exagerada e excessiva. “É preciso pôr diques à ânsia de liberdade”! É este o papel que as Igrejas cristãs reservaram a seus burocratas e pastores.

Padre Marcos Bach


VIDA ESPIRITUAL SEM PEIAS

A desprogramação e reprogramação da consciência como o entendemos aqui, afeta em primeiríssima instância a vida cotidiana. Não começa com a implantação de uma nova filosofia de vida, embora acarrete também mudanças radicais neste terreno. Como a palavra desprogramação dá a entender, tudo começa com um abandono gradual de hábitos e práticas, crenças e valores tidos até então como indispensáveis à vida cristã. Pensamentos caros são abandonados. O resultado é um vazio, um caos interior e uma dolorosa perda de identidade, pois o processo é arquetípico, diria Jung. Mexe com estratos profundos e arcaicos da psique humana. Assemelha-se à passagem do povo de Israel pelo deserto após a saída do Egito. É doloroso porque priva a pessoa da segurança e do apoio de um tipo de fé religiosa que já não consegue mais satisfazer as crescentes necessidades espirituais da alma. Todos os místicos falam dele comparando-o a uma noite, a Noite Escura de São João da Cruz. Poder-se-ia compará-lo a um terremoto violento que não deixa em pé quase nada.

A noite só é escura na aparência e o aparente vazio está repleto de promessas de vida nova. Até os físicos já não tratam mais o espaço que medeia entre os diversos corpos como vácuo, mas como plenum. O que, em nossa ignorância tratávamos como vazio, é na realidade tão repleto de vida quanto o mais poderoso dos astros.
           
Existem duas categorias de luz: a numênica e a fenomênica. A primeira é invisível aos olhos do corpo e só pode ser percebida por aqueles que aprenderam a ver mais longe, para além do alcance dos grandes telescópios espaciais. Quem sofre de miopia e de cataratas só enxerga o que anda por perto. Felizmente já existe hoje em dia a possibilidade de restaurar o poder de visão de uma pessoa de forma rápida e indolor. O raio laser facilitou a vida dos cirurgiões. O que falta ainda é um raio laser capaz de facilitar a vida dos formadores de consciência.
           
Deformadores da consciência humana não faltam. Deformador é todo aquele que se sente na obrigação de impor limites à liberdade da consciência individual em nome de uma autoridade supostamente superior.
           
Uma das áreas que sofre mais que outras as consequências do processo de desprogramação é a das relações com as autoridades. A obediência de submissão cede lugar a uma forma de “obediência” mais adulta de colaboração.
           
Num contexto comunitário a presença de superiores torna-se não só desnecessária, mas contraproducente. Onde todos sabem o que querem e agem de acordo com a sua consciência, a figura do superior não faz falta. É antes um estorvo do que outra coisa. Não é por acaso que a Mensa Communis é considerado como o símbolo máximo da vida monástica.
           
Numa comunidade todos são iguais. Não há nela lugar para diferenças hierárquicas. Numa Comunidade Cristã todos são irmãos, filhos do mesmo Pai Celestial. Nela não há lugar para pais e mães, pois o Pai de todos é um só, o Pai que está nos céus! “A ninguém chameis de pai, pois um só é o vosso Pai” (Mt 23,9).
           
Para muitos religiosos pode ser esta a prova mais difícil em seu processo de autolibertação espiritual. Mas tem que ser enfrentado para o bem do indivíduo, como para o bem das próprias instituições religiosas.
           
Os Institutos Religiosos que mais se opõem a que seus membros assumam a sua vida espiritual por conta própria, são os primeiros a desaparecer na voragem do tempo.

Padre Marcos Bach


LIBERTAR-SE DO DESNECESSÁRIO

Os filósofos do “absurdo” não eram pobretões e, no entanto, foram eles que elevaram o fracasso e o absurdo à condição de valor existencial. Nenhum deles, nem Camus, nem Sartre tomou a iniciativa de dar um passo em direção a uma existência menos absurda. Fizeram da consciência do absurdo a “droga” que os mantinha “vivos”.
           
A lista dos “escravos do ego” e cultores do absurdo é muito maior hoje do que nos anos sessenta. Seu slogan é o velho refrão em vigor no tempo do dilúvio: “Comamos, bebamos e nos inebriemos enquanto tivermos tempo, porque amanhã morreremos!”.

Dum lado da procissão de vítimas da “síndrome do absurdo” institucionalizada está a turma do “sabe com quem está falando?” e  no extremo oposto a legião incontável dos miseráveis que a nossa gloriosa civilização “cristã” excluiu da prosperidade e do acesso à fartura.
           
“É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico converter-se”. A dificuldade é dupla, pois é de natureza material e psicológica. Abrir mão das propriedades adquiridas implica em perda de segurança numa área em que ela é extremamente precária. É pouco convidativa a perspectiva de um futuro em que é preciso contentar-se com o “pão nosso de cada dia”. “Não vos preocupeis com o dia de amanhã: com o que ireis vestir. Olhai os lírios do campo: eles não tecem nem fiam e, no entanto, nem Salomão se vestiu com tamanho esplendor” (Lc 12,17).
           
Parece insensato ao extremo entregar-se ao “Deus dará” da forma como Jesus sugere. Robert Happé, no entanto, recomenda a seus leitores e ouvintes atitude idêntica.
           
A preocupação neurótica pelo dia de amanhã em nada contribui para torná-lo mais seguro. “Carpe diem”, diziam os romanos: desfrute cada dia como se fosse o único da sua vida! Cada dia bem vivido e cada oportunidade bem aproveitada aumenta a capacidade de extrair de cada momento de vida o máximo que ele oferece. O dia de ontem passou e o de amanhã ainda não chegou. O único espaço de tempo verdadeiramente aproveitável é o presente. Pois é justamente este que as preocupações e remorsos não nos permitem explorar a fundo e em toda a sua amplitude!
           
Um dos exercícios recomendados pelos mestres espirituais consiste em libertar-se de cuidados desnecessários e inúteis. Isto não se consegue através do confronto direto. As preocupações neuróticas são o resultado de uma forma de medo profundamente incrustado no subconsciente. É a espécie de “inimigo” bem entocado que não se consegue atingir por via de agressão direta. Pensamentos obsessivos, cuidados exagerados e atitudes compulsivas são frutos do medo.


Se quisermos livrar-nos deles temos que ir até a sua raiz que é o medo. Não adianta grande coisa descobrir a sua causa psicológica. Passar horas num divã tentando descobrir em que momento da infância ou em que vida passada fomos vítimas de rejeição e falta de amor. O que verdadeiramente importa e conta para efeito de cura é tomar consciência de que só o amor é capaz de desalojar do nosso inconsciente toda espécie de medos atávicos ali inculcados. Só há um modo de eliminar o medo de nossas vidas: entregando-nos ao Amor e deixando-nos dominar e conduzir por ele. Nenhum perigo há em amar: é o único terreno em que é impossível exagerar.
           
Boa parte da felicidade consiste em poder fazer o que agrada e encontrar prazer em tudo o que se faz. Ora, um grande Amor nos oferece esta oportunidade de ser feliz. Este Amor (com maiúscula) não virá a nós partindo de fora. Ele já é nosso, pois existe no íntimo de nossa alma como o fogo que se encontra no fundo de um vulcão. É só estabelecer contato com ele e abandonar-se a seu irresistível poder de atração.

Padre Marcos Bach


A LIBERDADE NÃO RIVALIZA COM DEUS
           
A liberdade não faz do ser humano um rival de Deus.

São duas as maneiras de abusar da liberdade e de usá-la em sentido contrário às intenções do Criador. O primeiro consiste em se adonar da sua liberdade como se ela fosse propriedade exclusivamente sua. Não é aquele que se nega a servir a Deus, como Lúcifer, que comete este exagero, mas aquele que nega a sua condição de criatura e com ela nega o laço indissolúvel que o liga a tudo o que existe no Universo.

Mas existe um abuso mais sutil que consiste em devolver a Deus a sua liberdade. Não há em sociedade alguma quem não considere ofensivo e desairoso o gesto de quem devolve um presente. Se a liberdade é um dom de Deus, o melhor que alguém pode fazer é usá-la e descobrir o que o Criador tinha em mente quando brindou o homem com o maravilhoso, porém incômodo atributo!

A liberdade torna o homem responsável por si mesmo numa medida que assusta a maioria das pessoas. Tanto o indivíduo quanto os que o preferem submisso e dócil às suas ordens, criaram o mito de que o homem foi criado por Deus para servi-lo e que o uso da liberdade deve ser rigorosamente monitorado e controlado, recorrendo, se for preciso, até ao emprego da violência.

O que levou Inácio de Loyola a compor a oração: “Suscipe Domine accipe omnem meam libertatem”, não foi o medo da liberdade, mas o desejo de reforçá-la, unindo a frágil liberdade humana à Soberana Liberdade de Deus! Da liberdade humana vale o que Cristo afirma em relação à Vida: “quem quer salvar a sua vida tem que saber como perdê-la” (Mt 10, 39).

A vida se “perde” dando-a, e a liberdade se “perde” amando a alguém “como a si mesmo”.

O amor que uma pessoa sente e nutre por si mesma não a impede de amar ao próximo, mas lhe fornece a base de sustentação psicológica que lhe permite amar tão “perdidamente” quanto alguns o fazem.

Só teme a morte e tem medo dela os que não sabem que ela é o Portal de entrada para a Vida! Amar “perdidamente” e com todas as fibras da sua alma constitui o melhor uso que podemos fazer da nossa liberdade.

Padre Marcos Bach


TRANSFIGURAÇÃO DA FÉ INFANTIL EM ADULTA

Quem tem amor à vida, ama o movimento, o intercâmbio e a novidade. A vida só se realiza onde acontecem a reprodução e a mutação. É exatamente isto que estou propondo ao benévolo e paciente leitor deste escrito: “Não renegue o passado”! Não abandone a tradição, mas aprenda a fazer dela ponto de partida e não termo de chegada! O futuro da Igreja depende da capacidade do povo cristão de transfigurar um tipo mais infantil de fé em outro, mais adulto. Toda vez que um católico transfere a solução dos seus problemas de fé ou de moral a outros, está traindo a si próprio. Até certo ponto é lícito afirmar que cada cristão é seu próprio papa.
           
É evidente que com gente que vive em cadeiras de rodas e que só sabe movimentar-se quando movido por outros, não será possível construir outra Igreja diferente daquelas que temos. Precisamos de outro tipo de cristão (pois o problema não é exclusivo da Igreja católica). A maioria deles é composta de pessoas que se dizem cristãos, mas na realidade não o são. A culpa é menos deles do que dos que se contentaram com uma Igreja povoada por este tipo de cristão “mal batizado e mal convertido”.
           
O primeiro passo a ser dado por quem deseja participar da gênese de um novo modelo de Igreja consiste em sair à procura de companheiros e comprometer-se juntamente com eles num projeto comum, cujo objeto é a constituição de uma comunidade de irmãos solidários uns com os outros, isto é, uma família de irmãos e irmãs em Cristo da qual se possa dizer o que se dizia das primeiras comunidades cristãs: “Vede como eles se amam”!
           
Só um amor tão solidário e tão generoso como o de Jesus é capaz de manter coesa e unida uma família espiritual cristã. Uma vez constituído este grupo, seus membros passam a viver menos em função da sua salvação pessoal do que nos aspectos comunitários do processo de salvação cristã, do qual não se consideram mais apenas beneficiários, mas agentes ativos, cada qual tão responsável pelo todo quanto os demais.
           
O que caracterizará este novo corpo eclesial (“igreja”, no sentido paulino) é seu caráter apostólico, sua tendência a gerar novas “igrejas”, bem de acordo com a tática dos primeiros apóstolos. A preocupação central de uma comunidade assim constituída está voltada menos para o bem particular dos membros desta comunidade do que para a missão que lhe cabe cumprir. Em outros termos: é da essência de toda genuína comunidade cristã ser missionária!
           
Assim como as células de um corpo são diferentes e não possuem funções iguais, do mesmo modo há lugar na Igreja universal para tipos variados de igrejas e de comunidades locais. Esta diferenciação é tão essencial quanto a unidade. Sem ela a unidade se transformaria rapidamente em uniformidade. Não há, portanto, na Igreja lugar para um único modelo de microcomunidade eclesial. Consequentemente é insensato pensar a Igreja em seu todo como um macroorganismo social pronto e acabado.
           
O Concílio Vaticano II já não apresenta mais a Igreja como sociedade perfeita nos termos aprovados no Concílio Vaticano I, um século antes. Hoje já falamos da Igreja como federação de igrejas, de pequenas comunidades locais. É neste sentido e nesta direção que se dará no futuro a Renovação da Mãe Igreja.

Padre Marcos Bach 


JESUS CRISTO E O DEUS DA VIDA

Um cristão familiarizado com o pensamento de Jesus vê em Deus o Deus da Vida e não um melancólico pregoeiro da morte. “Vim trazer vida e nada desejo tanto quanto vê-la alastrar-se” (Jo 10,10). A morte não é uma criatura de Deus e não foi Ele, o Criador e Senhor da Vida, que a inventou. A morte não se destina a pôr fim a uma vida, mas lhe dá a oportunidade de se transformar. Exemplo é a larva que acaba por se transformar em crisálida, mas apenas adormece aguardando o momento em que poderá sair dali para iniciar uma nova etapa de sua curta existência. A morte só é motivo de tristeza para quem a interpreta mal. Não fosse a “morte” da larva, jamais teríamos o prazer de contemplar uma revoada de borboletas em torno de um arbusto em flor.

Saiu da mente de Einstein a ideia de associar entre si o infinito e o campo energético vibratório que é o cosmos em sua essência última.

Tudo o que vibra pode vibrar ainda mais, tanto em frequência maior quanto em intensidade. O que torna o ser humano tão parecido com seu Criador é o fato de ter sido dotado por Ele de um potencial energético simplesmente inesgotável.

O terreno em que o homem pode continuar a evoluir sem precisar-se preocupar com limites e fronteiras é o terreno do Amor! Lá, neste campo, acontece o contrário do que costuma acontecer no mundo dos negócios onde o crescimento de um costuma diminuir as chances de crescimento de outro.

O terreno do Amor é o único em que não pode haver espaço para a competição. Lá o mais de cada um é sempre acrescentado ao mais de todos os demais. Quem ama e cresce na arte de amar eleva consigo a humanidade inteira. É da mística francesa Isabel Leseur a frase: “Quem se eleva, eleva consigo o universo todo”!

Em vez de definir a oração como elevação da alma a Deus, melhor seria reservar esta definição ao Amor. É ele a única energia propulsora capaz de colocar a alma humana em sua verdadeira órbita que é o convívio íntimo com seu Deus. Quem ama não deve preocupar-se com outra coisa do que preservar intacta a sua maravilhosa liberdade de amar como Deus ama. O apóstolo Paulo tem razão quando alerta os gálatas contra “os que espreitam a nossa liberdade que temos em Cristo” (Gl 2,4).

Padre Marcos Bach


A ORAÇÃO CRISTÃ

A oração cristã sempre se dirige a Jesus Cristo presente e vivo no íntimo de cada cristão verdadeiro. O objetivo de todo esforço espiritual é a morte do eu individual e a identificação da pessoa do cristão com a Pessoa Humano-Divina de Jesus Cristo.

O objetivo primeiro da meditação cristã é o encontro com Jesus Cristo no íntimo da consciência. O objetivo não é tanto a sua personalidade histórica, com os seus ensinamentos, seus gestos e suas obras, embora possam constituir matéria para muita reflexão proveitosa. A meditação da sua vida histórica é imprescindível como fonte de conhecimento de sua pessoa, sem constituir, no entanto, objeto e objetivo imediato da oração cristã.

A finalidade do estudo refletido e meditado dos Evangelhos é o conhecimento da personalidade de Jesus Cristo, das suas intenções a respeito do homem e do seu modo peculiar de viver a vida humana. Nesta primeira fase da meditação, Jesus Cristo, a figura dele, se apresenta mais como exemplar e modelo de existência humana. A vontade de segui-lo e o desejo de imitá-lo são os sentimentos dominantes.

A meditação dos sofrimentos de Jesus Cristo é muito útil e proveitosa na fase de purificação espiritual. A passagem dolorosa pela escuridão da noite espiritual tem muita semelhança com o que Cristo deve ter experimentado no alto da cruz (“Pai, por que me abandonaste?”). Mas o Cristo real e vivo não é mais o do Gólgota. É o Cristo da Páscoa. Vivo e real, acima de tudo, no íntimo dos que nele creem e o amam (Jo 14,23).

Este Cristo vivo e ressuscitado escolheu para moradia e centro de sua presença no mundo o recanto mais íntimo e secreto da consciência de cada pessoa humana que nele põe a sua fé, a sua esperança e o seu amor.

O objetivo da contemplação cristã é, portanto, a presença pessoal, ativa e transfigurante de Cristo. Inserido na pessoa de Jesus Cristo o homem passa para o centro da evolução e para o ápice da história universal. O que acontecer aqui neste pequeno planeta no íntimo do homem cristão terá repercussão ampla e insubstituível na mais longínqua galáxia, tanto quanto no interior de qualquer átomo.

Aquele que aceitar esta visão chegará a atinar com o mistério da história e com a essência do cristianismo. Entrará num processo de cristificação que visa estreitar na consciência os laços de união transfigurante com ressonância libertadora no campo históricossocial.

Padre Marcos Bach


ENERGIA DE ATRAÇÃO         

Este nosso mundo material e tridimensional é denso demais e por isso não se presta para grandes voos do espírito. Qual é, então, o sentido desta nossa passagem por este planeta?

Conhecê-lo e chegar por este meio ao conhecimento do Criador. Aprender a amar é a tarefa principal. Amar como Deus ama. É também de todas a mais difícil.

Aceitar as pessoas como elas são, em lugar de querer moldá-las de acordo com exigências que lhes são alheias; saber compartilhar, repartir, perdoar, dar de graça o que de graça se recebeu, ter paciência com suas fraquezas, amar até os inimigos: tudo isso são desafios que a vida nos oferece a cada instante.
           
Cada oportunidade perdida significa uma grande perda, não só para o indivíduo, como para a humanidade toda. Os místicos vão mais longe: incluem o cosmos todo na lista dos beneficiários do amor humano.
           
O amor é em sua essência uma energia de atração, “a mais potente e ao mesmo tempo a mais humilde do universo”, na opinião de Gandhi. O amor é tudo e onde não há amor nada mais resta que mereça um segundo de atenção. Quanta energia perdida numa única aventura sexual! Quanta energia malbaratada durante uma guerra! Tudo isso é criminoso! Os grandes criminosos e inimigos da humanidade não são apenas os que decretam o extermínio de um povo. São, acima de tudo, os que se servem do poder para impor a outros a sua vontade em lugar de renunciar ao poder e substituir o seu exercício pela prática generosa de um amor sem limites, como fez Jesus.

Padre Marcos Bach


ESPIRITUALIDADE AUTÊNTICA     

O conhecimento que atualmente temos da matéria nos permite acreditar que existe nela espaço para formas de Vida Eterna.

No universo material nada é destruído, mas apenas muda de forma e de estado. Não é a matéria que prende o espírito do homem e o agrilhoa. Sem o concurso do cérebro a mente humana não estaria em condições de operar. Este fato pode ser visto como limitação. Mas é perfeitamente admissível vê-lo como chance e oportunidade de progresso. A imperfeição faz parte da condição humana em seu estágio atual. O perfeccionismo, a preocupação exagerada com a perfeição é um dos vícios capitais da ascese cristã tradicional. Uma ascese libertadora não visa a eliminação pura e simples da imperfeição própria de toda a obra inacabada. O objetivo de uma boa espiritualidade cristã é ensinar-nos como servirmo-nos de nossas imperfeições de forma construtiva.

O que chamamos de imperfeição é um espaço subjetivo que a graça redentora de Cristo e o amor incondicional ainda não tiveram tempo e oportunidade de ocupar. Constitui o espaço-tempo ainda não redimido da psique humana.
        
O fariseu perfeccionista rejeita suas imperfeições e lamenta ter que conviver com elas em si e nos outros. Chega ao extremo de transformá-las em virtudes. O que em outros seria autoritarismo e manifestação de orgulho, nele passa a ser zelo pela causa de Deus. Substitui o conteúdo pela forma. É extremamente meticuloso na observação da forma correta e ortodoxa de cumprir a lei. Finge ser o que não é. Um fariseu lava as mão a cada momento.
        
Há no catálogo da Igreja católica “santos” que se confessavam diariamente. Do ponto de vista psicológico a diferença entre ambos não terá sido muito grande.
        
O burocrata é outro membro da poderosa confraria dos que “coam as moscas, mas engolem camelos” (Mt 23,24). A própria história que se ensina por aí nada mais é do que uma sucessão de fatos ideologicamente filtrados e depurados, distorcidos e destilados. Até a história do cristianismo tal como é contada em ambientes eclesiásticos é uma colcha de retalhos tecida de mentiras e de fatos devidamente “interpretados”. Que valor e qual o grau de confiabilidade que pode merecer um passado que só consegue chegar até nós revestido com o manto da mentira?
        
Há uma fase na vida do indivíduo em que é impulsionado por uma força interior a se desfazer do seu falso eu e a despir o fantasioso manto tecido de mentiras, atrás do qual se tinha refugiado na época da adolescência. É lá pelos quarenta anos, “in mezzo al camin della vita”, diria Dante, que todo indivíduo humano normal e suficientemente desperto para perceber a diferença entre o que é fato real e o que é “notícia”, entre o que em seu interior nasce da Verdade e o que brota do medo da Verdade.
        
Função primordial da Verdade é libertar a mente e o espírito do homem. É basicamente falso todo complexo de “verdades” que não conseguem impor-se por si e precisam de quem as imponha e as torne obrigatórias. A Verdade é como a Beleza: possui encanto e charme suficientes para se impor por si mesma.

Padre Marcos Bach


A VIDA HUMANA EM ESFERAS DISTINTAS

A vida humana se realiza concretamente em duas esferas bem distintas: a esfera material e a esfera espiritual. As duas esferas são convergentes e se complementam. Toda vez que uma pessoa passa a viver sua vida atendendo as necessidades e exigências de apenas uma das duas esferas, esta pessoa se torna problemática e entra em conflito consigo mesma.
        
A doença física é a resposta que o corpo dá aos que rompem o equilíbrio entre o material e o espiritual.

Sem certa dose de vida espiritual e interior, o corpo adoece. Com razão consideramos como doente uma sociedade em que as pessoas não têm tempo para pensar em cultivar aspectos essenciais da vida interior. Também aqui vale o ditado: “Nem tanto para o mar nem tanto para a terra”! Não podemos passar o tempo todo prestando atenção ao que se passa em nosso interior, mas também não se pode considerar normal, equilibrada e saudável uma pessoa que nunca presta atenção ao que se passa em seu interior.
        
Os antigos sábios da Índia espalharam pelo país uma fabulosa quantidade de mosteiros, ashrams e centros de meditação. Não estavam interessados em saber quem é o homem, mas queriam ser dirigidos e governados por pessoas que tivessem um elevado nível de autoconhecimento.

O mestre mais sábio que alguém pode ter é aquele que mora em seu próprio interior. Negligenciar os conhecimentos que lá estão guardados só não é visto como crime de lesa-humanidade e como pecado mortal ou até mesmo como pecado original de nossa civilização por pessoas que ignoram que o ser humano é em sua essência um ser espiritual. Se tem razão o físico Einstein quando constata que “a essência da matéria é espiritual”, então a fortiori temos que definir o ser humano como sendo essencialmente espiritual.

Padre Marcos Bach 


SILÊNCIO VERSUS BARULHO

O melhor motor não é aquele que faz mais barulho, mas aquele que prefere trabalhar em silêncio. O mesmo se pode afirmar em relação à consciência humana. O barulho que faz um motor não é proporcional ao trabalho que realiza.

Tudo o que os seres humanos realizam impulsionados por informações que lhes fornecem a razão e os sentidos não merece ser contabilizado como o que de mais nobre a consciência humana está em condições de produzir.

Os sábios da antiga Índia e China descobriram e cultivaram um método de penetrar até a fonte interior em que estão registradas e estocadas informações a que os sentidos e a razão não têm acesso. A palavra meditação, samadhi, em sânscrito, a língua sagrada da antiga Índia, passou a sintetizar as bem variadas formas de introspecção que ultrapassam as fronteiras da simples reflexão intelectual.

Autores há que fazem distinção entre meditação e contemplação. 

A meditação não leva a pessoa a sair de si, mas a leva a penetrar em si até atingir o seu centro interior. 

O contemplativo sabe que todo ser humano tem que ir além de si se quiser descobrir quem realmente é. 

A fé representa o primeiro estágio numa jornada que vai levar a pessoa do fiel a se afastar cada vez mais de si mesmo. Teresa d’Ávila tinha na conta de grande privilégio o fato de não se sentir apegada a si mesma. Contemplava-se a si mesma com o mesmo olhar com que contemplava os outros. Nela o mandamento de Jesus recomendando a seus discípulos que amem o seu próximo como a si mesmo deixou de ser teoria para se tornar realidade existencial.


A fé está para a visão beatífica como a aurora está para o novo dia que está nascendo. Jesus veio para nos anunciar o nascimento de um Novo Dia. Assim como nos picos nevados das montanhas mais altas o novo dia amanhece mais cedo do que nos vales, assim ou de modo parecido o Novo Capítulo da história humana já se encontra em fase de implantação. Por ora é pequeno o contingente das pessoas que despertaram para este Novo Dia. Das comunidades cristãs de hoje se pode dizer o mesmo que o apóstolo Paulo afirmou de suas comunidades: os verdadeiramente despertos são poucos, a maioria continua dormindo. “Já é hora de vos despertardes” Rm 13,11 e Ef 5,14: “Desperta, ó tu, que dormes”. 
Padre Marcos Bach


A COMUNHÃO DOS SANTOS

A punição é o instrumento preferido pelos juristas. Ela não só compensa o crime, mas serve também para repará-lo. O castigo tem como efeito anular o crime e devolver ao criminoso a inocência perdida. “Se vossa justiça não for maior que a dos fariseus, de jeito nenhum entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20). A justiça dos fariseus era equitativa. “Dente por dente e olho por olho” (Mt 5,38). A justiça de Deus dispensa cálculos sistemáticos. Perdoar no sentido que Cristo conferiu à palavra perdão. O termo donare vem de dom, ser gratuito. Ninguém pode ser obrigado a perdoar.

O perdão dignifica e engrandece a quem o pratica e oferece do que lhe é próprio aos que o recebem. O fariseu tanto o do tempo de Jesus quanto o dos dias de hoje faz questão de atribuir a si o mérito de tudo o que possui. Suas virtudes todas (e não são poucas)  deve-as a si mesmo e a mais ninguém. Quem necessita da misericórdia de Deus não é ele, mas o publicano postado no fundo da sinagoga.

Em vez de insistir na realização de um juízo, nossos teólogos e pregadores quaresmais fariam coisa melhor se definissem como encontro amistoso o que teimam em definir como julgamento. “Eu não julgo ninguém”, diz Jesus (Jo 8,15). “O Pai a ninguém julga” (Jo 5,22). Neste jogo de empurra fica-se sem saber quem é que vai julgar. Se não há ninguém para fazer e presidir um julgamento, quem sabe, não há quem precisa dele. Quem já conhece a sua vida pretérita e sabe quem realmente é, irá, sem demora, procurar a companhia de pessoas dotadas do mesmo nível de consciência.

Nenhum julgamento é necessário para quem já assumiu a sua casa por conta própria. Seria, no entanto, motivo de grande frustração se nenhuma espécie de reencontro viesse a unir novamente os que a morte tinha separado. São as mães que mais anelam por rever seus filhos.

Sem o dogma da Comunhão dos Santos a fé na ressurreição dos mortos seria incompleta. Fala-se muito na lei do carma e nas consequências desastrosas de uma existência dedicada à prática do mal, mas pouco se fala neste outro carma positivo e consolador ao extremo que consiste na possibilidade de repartir com outros o resultado de uma existência dedicada à prática do bem.

Não há quem não se sinta incomodado com a ideia de que os corpos dos ressuscitados serão todos iguais. Não há quem não se sinta mais orgulhoso das diferenças que o distinguem dos demais do que das semelhanças que possui em comum com outros. Ninguém está interessado em perder seu Eu, trocando-o por outro Eu. Há gente que não simpatiza com a teoria da reencarnação porque esta teoria o leva a suspeitar de que cada nova reencarnação implica na a perda do Eu anterior.

A crença de que a morte iguala a todos não fazia parte das opiniões teológicas do apóstolo Paulo, pois na Primeira Carta aos Coríntios instrui seus leitores, dizendo: “As estrelas diferem umas das outras tanto em tamanho quanto em brilho, assim também acontecerá na ressurreição dos corpos” (I Cor 15,42). Com esta comparação Paulo desfaz a crença de que na vida eterna seremos todos reduzidos a um denominador comum, perdendo assim grande parte das diferenças estabelecidas em vida e com elas também boa parte da identidade e do Eu.

Aprendendo a conviver pacífica e construtivamente com pessoas diferentes de nós é que nos estamos preparando para a vida eterna e para ricas perspectivas de uma vida vivida em comunhão com os representantes mais belos que o gênero humano conseguiu produzir.

Padre Marcos Bach


UM MÍSTICO ADMIRA E CONTEMPLA

Um cientista não procura confinar o fruto de suas descobertas em fórmulas. Contenta-se com apresentar hipóteses. Na melhor das hipóteses formula uma teoria. Feito isto, dá por encerrada a sua contribuição para o progresso das ciências.

Um místico procede do mesmo modo: fala de Deus como quem não sabe o que está dizendo. Um mestre Eckhart sabia que todo discurso teológico não merece mais fé do que o balbuciar de uma criança.

“Quem quer compreender o Reino de Deus deve tornar-se como uma criança” (Mc 10,15). Quem quer ter uma ideia da grandiosidade do universo tem que ser capaz de contemplá-lo posto de joelhos. O universo se revela a quem sabe admirá-lo. Espanto e admiração representam atitudes típicas de todo místico autêntico.

Os melhores cientistas modernos mais se parecem com místicos contemplativos do que com ratos de gabinete. Já descobriram que para entender o universo material não basta retaliá-lo e transformá-lo em fragmentos.

No campo religioso sempre existiu a figura do mestre da fé encarregado da tarefa de esmiuçar os conteúdos da fé com o intuito de transformar o ato de fé numa forma superior de compreensão dos seus conteúdos.

Todo teólogo parte da premissa de que é preciso entender o mais que for possível o que constitui o objeto da fé. O místico, ao contrário, prefere prestar ao mistério a homenagem silenciosa do respeito e da veneração. Crer não significa entender uma verdade. Significa aceitá-la sem restrições. Até um Stephen Hawking não exclui Deus. Apenas o colocou momentaneamente de lado, como ele mesmo afirma.

In: Manuscrito.


A CONDIÇÃO ESPIRITUAL DA PESSOA HUMANA

O cérebro é o centro coordenador do corpo. Mas não é o centro da pessoa humana. O cérebro é um instrumento a serviço da mente humana. Não é o cérebro que é sábio, inteligente e perspicaz. É a mente que possui estes predicados. O cérebro é uma invenção da mente. Não é um fenômeno biológico. Pertence a uma categoria de intenções. Há os que afirmam que a evolução das espécies cedo ou tarde iria culminar no aparecimento do homem. “Ao sabor e por obra do acaso”, diria Monod.

O homem, em virtude da sua condição espiritual, transcende os estreitos limites da biosfera, que é a esfera da vida. Sua natureza racional e seu destino último fazem dele um ser de outro mundo ao qual Teilhard de Chardin dá o nome de noosfera, a esfera do pensamento, da racionalidade e do espírito.

É uma outra forma de vida, a do homem, de outra ordem de ser e de categoria superior. É a esta vida que Jesus se refere quando disse: “Eu vim trazer a vida e quero que todos a possuam plenamente” (Jo10,10). Ela é graça do Cristo Redentor e inclui o acesso à imortalidade e à Vida Eterna. Não é subordinada a limites. É vida sem fim. É a vida que Jesus prometeu aos que por meio da fé aderirem a seu Projeto de Salvação. Está fora do alcance do mais heroico e bem intencionado esforço puramente humano. “Sem mim nada podeis fazer”. “Não tendes vida em vós mesmos”.

O Evangelho de São João está repleto de palavras em que Jesus insiste em definir o seu Projeto como a aurora de um novo tempo e como momento inicial de um novo capítulo da história humana.

Não é por acaso que adotamos o Nascimento de Jesus como data inicial desta nova maneira de interpretar a história. Jesus é o Primogênito de uma nova Raça humana. Jesus não veio acrescentar mais um capítulo à história dos homens. A história que teve início com o nascimento de Cristo é uma Outra História. Uma História da qual Deus participa como Parceiro. Como Parceiro Maior, pois são dele as iniciativas principais deste novo modo de fazer História.

O modo como Deus dirigirá daqui para frente a humanidade será muito parecido com a maneira com a qual Javé dirigiu o povo de Israel ao longo de sua história. Em vez do chicote e do recurso a decretos, emprega meios pedagógicos mais discretos. “Sois o meu povo, a esposa eleita do meu coração”. Os profetas não se cansaram de proclamar a fidelidade do Deus de Israel, tentando, por este meio, persuadir o povo a lhe permanecer fiel da sua parte.

“O Espírito Santo vos ensinará tudo o que for necessário à vossa Salvação” (Lc 12,12). O meio predileto do Divino Mestre é a inspiração, a sugestão, o conselho. Toda verdade necessária à Salvação vem de Cristo através da ação inspiradora do seu Espírito e traz em si mesma o poder de se impor. Toda alma unida a Cristo pelo laço da fé e do amor não necessita mais de outros mestres. “Não chameis a ninguém de mestre, pois um só é o vosso Mestre” (Mt 23,7-8). O homem que pode contar com a parceria de Deus é o indivíduo. É o indivíduo que através da fé assumiu um compromisso de parceria com Cristo.

Jesus não teve a intenção de coletivizar a sociedade humana. Jesus sempre demonstrou pouca simpatia por demonstrações de massa. A individualização é uma parte do processo de socialização, tão importante e fundamental quanto o da coletivização. Não admira que Marx não tenha entendido esta relação íntima entre indivíduo e sociedade, pois as próprias instituições religiosas não a levam em conta. O fundamento ontogenético de toda relação entre homens será para sempre o amor com que Deus ama. O Amor de Deus, do qual Jesus é a fonte sagrada, não é apenas um ideal distante e inacessível, mas é a essência de toda e qualquer outra forma de amor.

In: “A Igreja que eu Amo” – Livro de Pe. Marcos Bach, sj – Ed. própria.


SOMOS SERES DE LUZ

Jesus se definiu a si próprio como “Ser de Luz”: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). A palavra Luz representa um conceito chave no pensamento de Cristo. Em Lucas capítulo 11,33 Jesus define também o cristão como um “Ser de Luz”: faz parte da vocação de um cristão ser “luz para os outros”! “Ninguém acende uma luz para colocá-la no fundo de um porão. Lugar destinado a uma lâmpada é o alto de um candelabro” (Lc 11,33). Hoje Jesus provavelmente proporia a mesma verdade em outras palavras. Diria, quem sabe: “Lugar de cristão não é na sacristia nem no átrio silencioso de um convento ou mosteiro". Nem é mais o deserto como nos tempos de São Pafúncio ou o abrigo de uma montanha como nos tempos de São Bento. A vocação de um cristão é ser luz para os outros. É impressionante a frequência com que pessoas que passaram pela “Experiência de Quase Morte” (EQM) se referem a um encontro com “Seres de Luz”, destacando o encontro que tiveram com um Ser de Luz especial, que alguns deles identificaram como Jesus. A luz que os recebeu no além e que os envolveu era uma luz extremamente brilhante e extraordinariamente intensa, sem que seu brilho viesse a ferir o olhar. Era uma luminosidade amiga e dava a impressão de que a alma humana fora feita para ela. Ou, para ser mais exato: “a alma humana parecia ser feita da mesma luz".

Se é verdade que Jesus é a Luz do mundo e o cristão é chamado a ser um “alter Christus”,  então dá para entender porque tão poucos dentre os que passaram por uma (EQM) se conformaram com a ideia de ter que retornar ao corpo que tinham acabado de abandonar. Entende-se também um pouco melhor as palavras com que Jesus define a vocação fundamental do homem cristão como fonte portadora de luz.

“Ninguém acende uma lâmpada e a põe num canto escondido nem debaixo de uma lata, mas sobre um candelabro para os que entram verem a luz. O olho é a lâmpada do corpo. Se o olho for são, todo o corpo estará iluminado, se for doente, também o corpo estará nas trevas. Cuida, pois, que a luz que está em ti não seja trevas, porque se todo o corpo for luminoso e não tiver parte escura, todo ele resplandecerá como uma lâmpada quando se ilumina de vivo esplendor” (Lc 11,33-36).

A luz com a qual Jesus se identifica a si e a seus discípulos não é uma luz que vem de fora, mas uma luz que ilumina a partir de dentro. É, portanto, uma luminosidade que faz parte do ser de quem a emite. Não é uma luminosidade destinada a acrescentar algo a quem dela necessita, mas uma luminosidade que revela e manifesta o que se encontra oculto no interior tanto das pessoas como dos objetos que compõem o nosso universo.

Os americanos gastaram alguns milhões de dólares num projeto destinado a provocar num cometa uma explosão capaz de trazer à superfície o que o cometa mantinha oculto em seu interior. Todo ser humano, até mesmo aquele que morre antes de nascer, possui uma interioridade e com ela uma profundidade que não cabe em estatísticas e em análises científicas.

O ser humano é por natureza um mistério e como tal faz parte de um mistério ainda maior que é o universo. A esta compreensão do homem Jesus veio acrescentar esta outra: “O homem faz parte da natureza do próprio Deus”. Para compreendê-lo é preciso compreender a Deus. A recíproca é também verdadeira: “Quem quer compreender a Deus tem que compreender  primeiro o homem. Foi esta convicção que levou Santo Agostinho a dizer: “Conheça eu a mim para poder conhecer-te a ti, meu Deus”!

In: Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


LIBERDADE SOBERANA

Tanto Cristo como o apóstolo Paulo acabaram perdendo a vida por se terem colocado do lado dos pobres e dos fracos. “Quando sou fraco é que sou forte” (II Cor 12,10). O que levou a elite judaica a descrer de Jesus foi o fato de Ele não ser dado a demonstrações de força. Zombavam da sua fraqueza: “Se és o Filho de Deus, então desce da cruz” (Mc 15,30).

A liberdade dos filhos de Deus que Cristo veio prometer como dom divino a seus discípulos, é a mesma liberdade soberana que motivou todas as ações de sua vida aqui na terra. Nada impressiona mais a um observador honesto da vida de Jesus do que a incrível liberdade com que procedeu em todos os momentos da sua vida. “Minha vida ninguém m’a tira, mas eu a posso dar, se assim o quiser, e posso retomá-la, quando me apraz” (Jo 10,17). O Pai Celeste é Deus porque “possui a Vida em si mesmo” (Jo 5,26).

A vida que temos não a devemos a nós mesmos: “Vós não tendes vida por vós mesmos” (Jo 6,53). Jesus viveu a sua vida em perfeita liberdade, pois nunca encaminhou ao Sinédrio um pedido de licença para pregar. Viveu a sua curta, porém sofrida vida terrena da maneira como quis. Sempre “bebendo do próprio poço”, diria Gustavo Gutierrez.

Ser livre como Cristo o foi significa “não depender de ninguém e não precisar de ninguém”. Nem sequer de Deus podemos depender se quisermos ser tão livres como Jesus o foi.

Ninguém ingressa numa autêntica Comunidade Cristã porque tem necessidades que só um outro melhor e mais sábio pode atender. Quanto mais necessitado alguém é da ajuda de terceiros, tanto menos livre é. Livre só pode considerar-se aquele que basta por completo a si mesmo. Gustavo Gutierrez diria que “livre de todo só é aquele que encontra em seu próprio poço as águas de que necessita”.

Livre, segundo a liberdade dos filhos de Deus, é aquele ao qual o Pai Celeste tornou participante da sua própria liberdade sem limites. A alma verdadeiramente soberana e livre é aquela que “tudo julga, mas por ninguém é julgada”, como afirma São João da Cruz.

Faz parte da condição de escravo da lei ter que justificar o que faz. Verdadeiramente soberano como Deus é aquele que “está em condições de se julgar a si mesmo sem necessitar que terceiros o façam por ele”. Quando Jesus afirmou: “Todo o poder me foi dado no céu e na terra”, completa esta afirmação com outra, tão categórica quanto a primeira: “O Filho do Homem não veio para julgar”. “Eu não vim para julgar o mundo” (Jo 12,47). “Eu a ninguém julgo” (Jo 8,15).

In: Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj.


A IMPORTÂNCIA DO DESAPEGO

Nada corrompe tanto o espírito do homem do que o apego aos bens materiais. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mt 19,24). “Coais os mosquitos, mas engolis os elefantes” (Mt 23,24).

Ganância e avareza são vícios a que um cristão se encontra tão exposto quanto o banqueiro mais avarento. Ao morrer, cada qual, seja ele quem for, poderá colher apenas o que semeou. Não há indulgência plenária capaz de suprir eventuais falhas de natureza administrativa. De nada adianta ter em vista fins elevados se os meios empregados para alcançá-los não são adequados. Para ser adequado um meio tem que ser, acima de tudo, eficiente.

Nada impede tanto a eficiência espiritual de uma pessoa quanto o apego aos bens materiais. Não são os bens em si que dificultam a maratona espiritual de uma pessoa, mas o fato de ter-se identificado com eles.

Quando bens materiais são promovidos à condição de objetos de um culto idolátrico, quando a ausência de Deus já não é mais sentida como vício e como doença, as condições sociais de um povo estão atingindo um nível de degradação simplesmente irrecuperável. No campo religioso já atingimos este nível de degradação.

Como no campo da aviação, também no campo religioso existe a figura do controlador de voo. O controlador de voo é responsável pela segurança dos aviões em voo, nada mais que isso. Quem tem que cuidar dos aviões estacionados no aeroporto não são eles, os controladores. Se um avião parte em boas ou más condições de voo, verificar isto já não faz mais parte dos seus deveres profissionais.

A Igreja católica é a que mais se dedica a tarefas relacionadas com a morte e o destino que aguarda os que estão para se despedir da vida mortal. O escritor inglês Aldous Huxley lhe dá este elogio.

Ao enterrar um morto tiramos de circulação tão somente o seu cadáver, nada mais do que o invólucro mortal é entregue à destruição. Tudo o que faz parte de seu Eu Superior o falecido levou consigo. O que acontece depois é tema de especulação, pois são escassas as informações que possuímos.

Ainda alguns decênios atrás se podia dizer: “Nada sabemos, pois ninguém voltou para contar”. Mas hoje aumentou significativamente a possibilidade de trazer de volta à vida pessoas que os médicos já tinham declarado mortas. A morte clínica não encerra o processo de morrer. Isto só ocorre quando o cérebro deixa de funcionar. A verdadeira morte é a morte cerebral. E esta geralmente só ocorre após a morte clínica. Deste modo o moribundo tem tempo para fazer uma avaliação da sua vida toda, e caso lhe for aconselhado por misteriosos seres de luz, poderá retornar ao corpo que acabara de abandonar. Este retorno é penoso e sofrido. A morte continua sendo um enigma e seus estágios derradeiros continuam sendo uma incógnita.

Viver para os romanos era o mesmo que estar entre os homens, “inter homines esse”. Morrer significava para eles deixar o convívio humano. No entanto, faz parte das verdades básicas da fé cristã a crença na comunhão dos santos. A morte abre espaço para novas e inusitadas formas de convívio e de comunicação.

Para que duas pessoas possam se comunicar desembaraçadamente entre si é preciso que possuam em comum o mesmo nível de consciência. “Simile simili gaudet” diziam os romanos, “igual atrai igual”, dizemos nós.

In: Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


A FÉ VINCULADA À CIÊNCIA

A Ciência Moderna nos está fornecendo hoje insights e pistas teologicamente muito mais confiáveis e aproveitáveis do que tudo o que o Magistério Eclesiástico tem para oferecer. Foi Einstein quem nos informou de que “a essência da matéria é espiritual”. Foi outro cientista, o físico David Bohm, quem descobriu que “a suprema natureza do universo é uma energia de amor”! Foram biólogos que descobriram que o corpo humano adulto é composto de cem trilhões de células e que cada uma delas tem conhecimento do que se passa com cada uma das outras. A teoria da biocomunicação nos diz que “todos os seres vivos formam um Todo holístico” e que cada entidade “individual” vive em comunicação permanente com as demais.

Até alguns anos atrás eram apenas os “místicos” e os “swamis” do Oriente que falavam estas coisas. Hoje é quase impossível encontrar um cientista de renome que faça pouco caso do que os “sábios” do antigo Oriente nos legaram como herança cultural. Einstein se dizia “crente” e admitia que a “fé” podia fornecer a um homem conhecimentos que a ciência sem fé não estava em condições de lhe conceder!

Uma fé religiosa que desconfia da ciência é tão míope e caolha quanto uma ciência que menospreza a fé. A fé, qualquer que seja o seu objeto, nasce numa esfera da mente humana que autores como Deepak Chopra definem como “não-local”. David Bohm a denomina de “insight” ou “mente superior”. O resultado de sua atividade é a inspiração, uma forma de conhecimento instintivo e supra-racional. Supra-racional e metacientífico, isto sim, mas não irracional.

A fé religiosa necessita da ciência tanto quanto esta necessita das luzes da fé. Chegou a hora de colocar um fim à inglória luta entre Ciência e Fé. Chegou o momento de elevar Teilhard de Chardin à honra de Doutor da Igreja!

In: Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


NOVA CRIATURA HUMANA

É com razão que se pode afirmar que o futuro da humanidade foi entregue a uma “Nova Raça” humana. A raça que atualmente domina o cenário histórico da nossa espécie já provou que não possui o necessário grau de consciência para tarefa tão complexa. Num mundo em que cada cidadão é incentivado a priorizar o seu próprio eu e a cuidar, antes de mais nada, do seu próprio interesse, só pode ser visto como radicalmente impermeável à Lei do Amor. Isso só não percebe quem não tem olhos para ver!

Uma sociedade capitalista e competitiva só pode tolerar uma faixa bem reduzida de amor. Uma sociedade organizada segundo princípios autocráticos só consegue produzir um tipo de cidadão e de fiel do qual nada se pode esperar além de conformidade e de submissão.

O futuro da humanidade, como o do universo todo, depende essencialmente da capacidade criativa dos seus responsáveis. Tanto cientistas como teólogos estão começando a perceber que o futuro do universo não pode ser dissociado e separado do futuro da humanidade. A “Nova Criatura Humana”, da qual Cristo é o protótipo, já está começando a tomar o seu lugar no processo evolutivo geral através da consciência de que é cidadão do universo todo, e não apenas habitante casual de um planeta perdido na imensidão do espaço! A palavra “consciência cósmica” exprime este fenômeno.

Será que quem não é capaz de perder-se na imensidão dos espaços exteriores terá condições de compreender o que ainda resta a ser feito em seu próprio interior? A sua natureza espiritual torna o homem tão infinito e insondável quanto o universo. É evidente que o homem, criado no Jardim do Éden, não saiu da mão do Criador aparelhado para o desempenho de tarefa tão gigantesca. A vida e a pessoa de Jesus devem ser vistos como momento inaugural de uma Nova Era e de um novo tipo de homem e de mulher!

A “gratia elevans” é obra do mesmo Criador, mas pertence a uma outra categoria na ordem da Criação. A pessoa redimida por Cristo é uma Nova Criatura. 
In: Manuscrito de José Marcos Bach, sj


A PERFEIÇÃO NAS SUAS LIMITAÇÕES

O cristão autêntico não representa a última palavra. Seu cristianismo ainda carece de um complemento, que é a perfeição. “Sede perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5,48). O cristão perfeito só pode ser definido como tal com base nos mesmos critérios usados para definir a perfeição de Deus. Como em Deus tudo é indescritível, também a perfeição cristã se furta a qualquer tentativa de descrição. A ideia de que um monge ou uma freira encarnam o ideal da perfeição cristã resulta de um equívoco. Quem o cometeu não foram teólogos, mas juristas. O “estado de perfeição” não pode ser identificado com um determinado modo de viver a sua fé em Cristo. Não pode ser associado a regras ou a um modo peculiar de se vestir.

O mundo criado por Deus é perfeito, mas esta perfeição permanece oculta e só se manifesta sob a roupagem da imperfeição. O místico cristão possui a capacidade de perceber o lado perfeito da realidade, mesmo quando este lado coexiste com o lado imperfeito das coisas. Para o perfeccionista a imperfeição é um mal. Não sabe como enquadrá-la em sua “Weltanschaung”, em sua “cosmovisão”.

Um místico cristão, como Teilhard de Chardin, não se escandaliza com a presença de tanta imperfeição no mundo. Para ele a imperfeição faz parte de um esboço de um mundo a caminho de se tornar perfeito. A perfeição representa um ponto final absoluto, além do qual não é possível ir. O que ainda pode ser mais perfeito é porque é imperfeito. O cristão perfeito não é alguém que não pode ser mais perfeito do que já é. 

Uma larva é perfeita quando possui todas as qualidades necessárias à sua condição de boa larva. Mas falta-lhe muito para chegar a ser um dia a borboleta que traz dentro de si. Assim como a larva já traz em si a borboleta que irá ser um dia, do mesmo modo, cada ser humano traz, em seu íntimo mais íntimo, uma “centelha divina”, como a denomina o filósofo Platão.

In: Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


A CENTELHA DIVINA

A crença na existência de um órgão espiritual destinado a pôr o espírito do homem em contato com o divino é anterior a Jesus Cristo. Já o filósofo grego Platão, que viveu três séculos antes de Jesus, fala da existência de uma “centelha divina” presente no interior de toda pessoa humana. Jesus apenas regou com as águas abundantes da sua Graça o que Platão e outros pensadores gregos tinham semeado.

A ideia de que o interior do homem é terreno devastado pela ação de um hipotético pecado original é incompatível com a mensagem otimista de Jesus. “Se alguém me ama e crê em mim, Eu e o Pai viremos a ele e nele faremos nossa morada” (Jo 14,23). Para que isto venha a acontecer só há um único requisito a preencher: abraçar, sem reservas, a causa de Cristo. Além do Amor que Deus nos oferece não existe mais nada que se possa classificar como exigência.

O amor é gratuito e incondicional, por isso ele é inegociável. Quando após uma briga um casal volta a fazer as pazes, isto não quer dizer que voltou a se amar novamente como antes ou até mais do que antes. Não há no terreno afetivo briga que não deixe sequelas.

Quem atingiu no terreno afetivo o nível de um amor perfeito como é perfeito o amor incondicional de Deus, pode fazer o que bem entende. O amor é o limite que separa o que é inegociável do que pode ser objeto de negociação. Deus não castiga ninguém. Menos ainda pensa em privar alguém do seu amor e da sua amizade. 

In: “O Despertar do Eu Divino” – Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


O REINO DE DEUS, UM IDEAL.

O Reino Messiânico não era para ele (povo judeu) um ideal a ser posto em execução imediata, mas uma medida, um paradigma (diríamos hoje), um critério de avaliação moral e política. Toda vez que o povo se afastava de Deus e sempre que o rei se distanciava tanto de Deus como do povo, surgia o profeta para recolocar o sistema nos seus devidos eixos.

O Reino Messiânico dos profetas não fazia parte do mundo das realidades escatológicas. Não era, portanto, um sonho destinado a encontrar sua plena realização numa outra vida. O judeu, via de regra, pouco se preocupava com o que vinha depois da morte. Para ele o Reino Messiânico era uma promessa de Deus destinada a se cumprir em tempo histórico.

Aos poucos os profetas foram rareando e o último do qual se tem notícia viveu no século VI a.C. O sonho do Reino foi se apagando, ou então passou a ser usado por aventureiros políticos, pouco escrupulosos. Depois do ano de 133 d.C. os romanos se encarregaram de esvaziar, em caráter definitivo, de qualquer chance política o sonho messiânico do povo judeu. Foram dispersos pelo mundo inteiro e, contudo, permaneceram unidos, alimentando em suas sinagogas a esperança de um reencontro com o ideal messiânico.

A ideia de um reino ideal se apoia em três pressupostos:
       - Primeiro, uma realidade presente, se não intolerável de todo, ao menos distante do que qualquer cidadão consciente e civilizado considera como requisitos mínimos de uma sociedade humana justa, digna de seres racionais.
    - Segundo, por trás desta esperança de dias melhores deve haver uma certeza, pois sem ela, a esperança deixaria de existir e seu lugar seria ocupado pela ilusão.
     - Terceiro requisito: deve haver um modelo a partir do qual é possível dimensionar os contornos fundamentais do Reino Messiânico.

            O povo judeu sempre foi um povo sofrido. Sempre teve que lutar duramente por tudo o que conseguiu conquistar e realizar. É só pensar na Terra Prometida, sua pátria, onde o “leite” e o “mel” eram, na época de Moisés, tão escassos quanto hoje. 

Onde o judeu põe o pé, a perseguição se lhe gruda no calcanhar. Mas uma certeza o judeu sempre tinha: “Deus está do meu lado!”. Deus (isto é, Javé) precisa de nós como nós precisamos dele! A relação de um judeu com seu Deus é tudo, menos servil. Um judeu religioso não se sente diminuído pelo fato de estar às ordens de seu Deus. Pelo contrário, sente-se dignificado pelo fato de poder obedecer a tão excelso Senhor. 

É possível que em nossos dias seja difícil encontrar um judeu que deposite em Deus a mesma fé que desde séculos se acostumou a depositar no poderio financeiro e militar. Toda vez que o povo de Israel cometeu o mesmo erro, acabou pagando por ele um alto preço. Recebeu por ele um castigo correspondente ao de “Alta Traição”.

Resta uma pergunta que merece atenção: “Donde o povo de Israel tirou a ideia de um Reino Messiânico Ideal?”. Faz parte do credo religioso do judaísmo a crença num estado inicial em tudo oposto à situação do momento histórico atual. O homem primordial foi criado por Deus em primeira mão (e não por intermédio de terceiros). Depois de tê-lo criado, Deus viu que tudo o que tinha feito era bom, incluído o homem. Das páginas iniciais da história humana fazem parte o Jardim do Éden (ou Paraíso), a mulher, sua extraordinária intimidade com Deus e uma forma invejável de viver em harmonia com a natureza.

Tudo isso se perdeu. Mas ficou no Inconsciente Coletivo de cada ser humano a saudade e o desejo de um reencontro com este estado de comunhão íntima com Deus e com a natureza. Foi provavelmente sob a influência dessa nostalgia do Paraíso perdido que Isaías escreveu essas palavras enigmáticas e aparentemente pouco dignas de figurar num escrito tido como sagrado e inspirado por Deus: “Habitarão juntos o lobo e o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarão juntos... A vaca e o urso comerão na mesma pastagem... O leão e o boi comerão igualmente palha...” (Is 11, 6-7).
In: “O Reino de Deus” – Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


DA ANTROPOLOGIA À TANATOLOGIA

Um dos ramos mais recentes da Antropologia tem o nome de tanatologia. A palavra tanathos é grega e significa morte.

O progresso da medicina permite reanimar e devolver a vida a pessoas consideradas mortas. Um médico moderno sabe que a morte é um processo complexo e que ocorre aos poucos. A chamada morte clínica representa apenas um estágio de um processo que necessita de certo tempo para ser concluído. O processo todo só se torna irreversível após um determinado tempo. Pessoas que passaram pela assim chamada “Experiência de Quase Morte” (EQM) afirmam ter se defrontado com uma espécie de barreira que as impedia de ir adiante. Algumas afirmam terem sido aconselhadas a voltar atrás, de retorno à vida. Foi lhes dito que sua hora de morrer ainda não chegara.

Todos os que após a morte clínica voltaram à vida confessam que o fizeram a contragosto. Admitem que havia muito mais, além daquilo que lhes foi permitido experienciar. Declararam que em momento algum se sentiam como “mortos”. Mas que em toda a sua vida nunca se tinham sentido mais cheias de vida, mais lúcidas e mais autoconscientes do que naquele curto lapso de tempo de sua passagem pelo tão mal compreendido mundo dos mortos.
           
A morte não existe. Ao menos já não pode mais ser vista como castigo e como fim de vida. A moderna tanatologia aconselha-nos a não tratar o assunto como antes. Uma quantidade considerável de experimentos científicos confirmam a tese de que a morte é uma forma de metamorfose semelhante a que faz de uma crisálida uma borboleta.
           
Todos os que passaram pela “Experiência de Quase Morte” descrevem a sua experiência, ao menos a sua fase inicial, como de separação do corpo físico. Viam o próprio corpo deitado numa mesa de operações, ou no meio dos ferros retorcidos de um carro acidentado, enquanto outra parte de sua personalidade flutuava no alto sem a menor ligação com “aquela coisa estranha”, cuja sobrevivência tanto preocupava os médicos.

O corpo físico parecia não fazer parte da sua autoconsciência. O fato de se verem separados do corpo físico não era sentido como falta ou como ausência ou como perda. Antes, pelo contrário, tudo era sentido como parte de um processo de libertação. É, sem dúvida, causa de estranheza a indiferença do “quase morto” pela sorte do seu corpo físico. Ao ler seus relatos, tem-se a impressão que para eles o corpo não faz parte substancial da personalidade humana. O corpo físico mais se parece com uma gaiola, cuja finalidade principal consiste em manter a alma prisioneira dos sentidos. É crença comum que é ao seu cérebro que o homem deve sua maravilhosa capacidade de produzir pensamentos, de criar imagens e de raciocinar. Mas os que retornaram à vida após sua breve passagem pelo mundo dos mortos, não dispunham de um cérebro e, contudo, continuavam a manter uma atividade mental verdadeiramente assombrosa.

In: “RUMO AO INFINITO” – Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, sj


MUNDO PERFEITO

O mundo em que vivemos é perfeito. É o que nos atestam tanto cientistas como pessoas que passaram pela “Experiência de Quase Morte” (EQM) ou Morte Clínica. Livros como o do americano Kenneth Ring “Rumo ao Ponto Ômega” – Ed Rocco – tratam deste assunto com base em depoimentos de pessoas que tiveram morte clínica, mas acabaram retornando à vida. Nem todos voltaram de lá impressionados com a beleza indescritível e a perfeição do mundo que tinham tido a ventura de ver. A imperfeição só existe lá onde o amor divino é impedido de penetrar. Por isso pode-se afirmar que o “pecado mortal”, por excelência, consiste em trocar o “primado da caridade” pelas tímidas seguranças de um regime disciplinar.

Evidentemente ainda não atingimos um estágio evolutivo que nos permita um grau muito elaborado de originalidade e de expansão mais ampla dos planos superiores e mais personalizados da nossa autoconsciência. Não temos o direito de excluir os retardatários do futuro da nossa espécie, mas também não estamos obrigados a emparelhar o nosso passo com o deles.

Numa sociedade organizada segundo princípios totalitários, cabe aos donos de poder determinar os limites dentro dos quais cada indivíduo pode exercer a sua liberdade. Numa sociedade liberal, este direito cabe a cada indivíduo em particular. Numa sociedade mais afinada com as tendências do processo evolutivo, esta tarefa caberá nem a um nem a outro dos dois contendores, mas a um personagem novo. Este personagem utópico chama-se Comunidade!

A comunidade é um organismo social constituído por pessoas. Isto é, por indivíduos que entraram na posse plena de suas potencialidades. O psicólogo suíço Carl Gustav Jung os define como indivíduos que moram em si mesmos, ocupando todos os espaços habitáveis do seu interior. O psicólogo italiano Roberto Assagioli os define como indivíduos plenamente identificados com o seu Eu Superior.

Pessoa é, portanto, um indivíduo capaz de se governar a si mesmo. Não tendo mais necessidade de se identificar com o que faz, pode identificar-se com o que é. Só depende de si mesmo. O único poder perante o qual se curva é a voz de sua própria consciência.


In: “Do ‘Bom Selvagem’ ao ‘Homem Noético’” - Artigo de Pe. José Marcos Bach,SJ em www.padrejosemarcosbach.blogspot.com.br – ARQUIVOS DIVERSOS.


A ENERGIA DO AMOR

O pão que nos alimenta já foi grão e já passou antes pela aventura da vida. Ao mastigar com carinho e amor a nossa fatia de pão, incorporamos em nosso ser tudo o que faz parte da experiência de vida de um grão de trigo. Transformamos o que era simples massa em energia. Espiritualizamos esta energia transformando-a em amor. Pensamentos, sentimentos e emoções sobem de categoria quando passam a fazer parte de um movimento de amor. Daí nasce a prioridade absoluta da Lei do Amor sobre todas as outras leis.

Todas as formas de energia do universo podem ser resumidas numa só energia que é a energia do amor. “A suprema natureza do universo é uma energia de amor”. Quem afirma isto é o físico David Bohm. Einstein achou que todas as quatro energias básicas, a nuclear forte, a nuclear fraca, a eletromagnética e a gravitacional poderiam ser apenas variações de uma única energia fundamental. Morreu sem ter chegado a nenhuma conclusão. Mas hoje existe neste campo a tendência de atribuir à energia gravitacional este papel.

Se esta tese for verdadeira, só existe uma única forma básica de energia. E esta seria, no caso, a energia gravitacional. Transpondo esta energia do plano físico para o plano espiritual, teríamos como conclusão que o amor é basicamente uma forma sublimada de energia gravitacional.

Ao assimilar um alimento não apenas o estamos incorporando ao nosso corpo físico, mas o estamos incorporando à nossa pessoa. E mais ainda: o estamos incorporando a um plano cósmico mais elevado.

Jesus soube, como poucos, dar valor a uma refeição em comum. Compara o Reino dos Céus a um “banquete” (Lc 22,30). Despediu-se dos seus amigos mais chegados oferecendo-lhes uma Ceia. Associou o sacramento da Eucaristia ao Pão e ao Vinho. Até entre animais o ato de alimentar possui uma espécie de sacralidade ritual.
In: “Rumo ao Infinito” Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, SJ


SANTIFICAÇÃO

O fato de ter sido reconhecido oficialmente como santo, pouco diz a respeito do efetivo grau de santidade do agraciado. A verdadeira santificação acontece no íntimo mais íntimo da alma. Por sorte ou infelicidade não temos como chegar até lá e assistir ao que está se passando. Não possuímos câmera que nos permita filmar o que Deus e a alma estão fazendo. Nem a alma tem consciência do que está acontecendo em seu íntimo. O Amor de Deus, como todo amor genuíno, é muito discreto, humilde e  cheio de “pudores”! Nada mais deprimente do que manifestações de amor indiscretas, espalhafatosas e destemperadas! O fato de ser tão misterioso e oculto, transforma a vida íntima da alma com seu Bem-Amado numa dura prova de paciência. A palavra paciência vem do verbo latino pati que significa sofrer e suportar. Todo amante apaixonado sabe o quanto o amor é capaz  de fazer sofrer. Quando o “amante” se envolve em silêncios misteriosos e teima em permanecer distante do “teatro de operações”, o “amado” só pode sentir isso como “abandono”, como rejeição. Tudo fica ainda mais penoso quando se toma em consideração que a santificação é obra exclusiva do Espírito Santo. Dele partem as iniciativas todas e é dele o mérito todo! À “pobre” alma só lhe resta “contabilizar” os fracassos, pois estes, sim, correm todos eles por conta da sua falta de generosidade!

Passar a vida sobrecarregado de dívidas, e muitas delas impagáveis; ver como os louros sempre terminam por ornar outras frontes, Deus, a Santa Madre Igreja, a Venerável Companhia de Jesus, por exemplo, é dose de paciência para muitos “Jós”! Ninguém se torna santo por mérito próprio! Todo santo é um “eleito” de Deus, e deve a Ele tudo o que é!
In: “Santidade” - Manuscrito de Pe. José Marcos Bach, SJ


O FENÔMENO DA EXPERIÊNCIA DE QUASE MORTE (EQM)

“Agora sei o que é amor! Agora sei o que é importante”! É com esta exclamação que muitos dos sobreviventes de uma EQM saúdam seu retorno à vida anterior. Implicitamente presente nesta exclamação está a confissão de que a vida como a tinham vivido até então era equivocada e ilusória. A EQM os tinha despertado para a apreciação de valores para os quais não tinham sido programados anteriormente. Estudos sobre os efeitos de uma EQM davam a impressão de que ela só ocorria em caso de perigo de vida e em pessoas que se encontravam na iminência da morte.

Estudos recentes, como os de Kenneth Ring, levantam a suspeita de que o fenômeno citado não é causado pela iminência da morte física, mas que é preciso ir à procura de outro fator capaz de determinar mudanças tão profundas nos aspectos valorativos da vida. A “Experiência de Quase Morte”, melhor seria associá-la à vida, e ver nela o renascer para uma nova vida.

Quem sai desta experiência mais morto que vivo é o ego. “Eu era uma pessoa mundana, materialista e superficial” são termos com os quais muitos dos sobreviventes descrevem o modo como viviam antes de sua EQM. Confessam que em algum patamar remoto da sua consciência ocorreu um violento “Tsunami”, um maremoto que abalou as bases mais profundas da sua “Consciência Total”. Impressiona, no entanto, o caráter espontâneo com que estas mudanças se impõem!

Não se trata de pôr em prática lições que a proximidade da morte despertou. O que parece ter acontecido é um despertar de níveis mais sutis da consciência. A psicologia moderna não se contentou com o “mapa psíquico” de Freud cujas descobertas não foram “além do ego”. Termos como “Eu Superior” (Assagioli), como “Self” (Jung), “Eu Transpessoal” (Grof) começam a ser empregados para descrever níveis e planos da “Consciência Total” para ao quais Freud e Adler ainda não tinham encontrado espaço.

Devemos a Khalil Gibran a definição dos planos superiores da consciência como Eu Divino. De acordo com esta concepção da consciência cada pessoa possui em seu íntimo não mais um aparelho, mas um órgão psíquico que o põe em comunicação direta com Deus.

As igrejas estão ficando vazias e as sacristias estão ficando desertas. Cresce a impressão alvissareira de que Deus está mudando de residência. Numa catedral cabem milhares de pessoas. Ainda hoje há quem mede a vitalidade da fé religiosa tomando como base da sua avaliação o número de fiéis reunidos num templo.

A alma humana é um templo, é verdade, mas um templo sui generis, pois é obra do amor divino. A natureza espiritual da alma humana não permite que alguém a trate como propriedade sua. O “Deus de amanhã” insiste em se autodefinir não mais como Senhor, mas como servo e servidor dos homens (Mt 20,28). “Já não vos chamo servos, mas amigos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor” (Jo 15,15).

Lendo o testemunho de sobreviventes de uma EQM tem-se a impressão de que Deus está batendo à porta (Ap 3,20), pedindo para entrar na vida dos homens de uma maneira totalmente nova.
Do manuscrito “O DESPERTAR DO EU DIVINO”  de Pe. José Marcos Bach, SJ


ORAÇÃO EM ESPÍRITO – NO  S E R

Como o meu intento não é o de ajudar banqueiros e empresários a ganhar mais dinheiro, contento-me, por ora, com a constatação que em seu tempo Jesus já fizera: “Os filhos das trevas são mais inteligentes e lúcidos do que os filhos da luz” (Lc 16,8).

Ao escrever este texto o faço com o pensamento voltado para os que se dizem “filhos da luz”, mas se comportam como toupeiras, como representantes de uma Igreja que a história e a consciência dos homens mais livres já não se dispõem mais a aceitar como obra da Vontade Salvífica de Deus. Mais do que de uma Teologia da Libertação a humanidade começa a sentir a urgente necessidade de passar de um sistema moral legalista para uma Ética da Libertação. À mania de regulamentar tudo é preciso opor uma Nova Ética, baseada no mais absoluto respeito pela liberdade de consciência de cada pessoa humana, em particular. É dentro deste contexto evolutivo extremamente dinâmico e imprevisível que quero colocar a oração.

Do lado de fora das pessoas nada mudou. Se alguma coisa mudou, então foi para pior. Quem está evoluindo não são as estruturas sociais ou políticas. A evolução é um processo seletivo. Ora, qual é o animal mais propenso a fazer escolhas, a criar alternativas? Quer levar um ser humano ao desespero total, condene-o a permanecer sempre igual a si mesmo!

Assim como Davi jogou fora a couraça e a lança de Saul e escolheu enfrentar o gigante Golias de tanga e de funda na mão, do mesmo modo o ser humano só poderá evoluir se for capaz de jogar fora todos os dispositivos de segurança que lhe são oferecidos.
           
A segurança do homem espiritual lhe vem do seu próprio interior. Assim como a vida de um casal se realiza no mais absoluto segredo, da mesma forma a união da alma com seu Deus se realiza no silêncio e na obscuridade de longas e dolorosas noites. É dentro desta perspectiva evolutivo-dinâmica que devemos analisar a oração se quisermos ter uma ideia do seu verdadeiro significado.

A oração é, em sua essência, uma forma de captar e transmitir energia. Esta energia, objeto da oração, é de origem divina. É uma forma de se comunicar com o Senhor Supremo do Universo, fonte de todo o ser, de todo o conhecimento. Pela oração o espírito do homem volta a tomar contato com a Fonte Suprema e Última do seu próprio ser. A oração leva a alma humana a se encontrar com as raízes interiores e subjetivas do seu ser.

Os antigos egípcios não adoravam o Sol como afirmam historiadores mal informados. O sol era para eles apenas um símbolo religioso, uma imagem do Supremo Senhor do Universo. Sabiam que o nosso sol não é a única fonte de luz, de energia e calor do cosmos. Sabiam muito bem que o universo era povoado por um número muito maior de sóis e que o nosso é apenas um entre muitos outros.

Para nós, habitantes deste pequeno e modesto planeta chamado Terra, este relativamente pequeno astro a que damos o nome de sol, é, no entanto, tudo, pois sem ele nem eu estaria aqui, conversando com você, caro leitor, nem você teria condições de ler o que estou escrevendo.

Onde não há luz e calor, nenhuma forma superior de vida consegue medrar. A vida na Terra é possível porque o sol nos proporciona luz, calor e energia em superabundância.

Nossos astrofísicos estão descobrindo que no universo não existe espaço vazio. Comparadas com o universo, as crises energéticas provocadas pelo homem são ridículas. Energia é que não falta. Falta ao homem a capacidade de captá-la e de servir-se dela. Pois bem: é isto o que a oração lhe poderia proporcionar se não a tivesse excluído da lista dos instrumentos destinados a promover o progresso da humanidade, consubstanciado no progresso espiritual da sua própria alma. Quem ora em “espírito e verdade” como Jesus, eleva-se e “elevando-se, eleva o mundo todo”, na bela expressão da mística francesa Isabel Leseur.

Tudo o que os homens mais afoitos procuram conseguir escalando montanhas e abordando planetas distantes, um “homem de oração” procura alcançar em seus contatos íntimos com seu Criador.

Do manuscrito “TRABALHO, ORAÇÃO E LAZER” de Pe. José Marcos Bach, sj


CONHECIMENTO MÍSTICO

O místico não persegue a verdade à procura de provas. Sua visão da realidade se contenta com rastear pistas.

A distância que separa o teólogo do místico é brutal! O teólogo quer apanhar Deus na rede dos seus raciocínios! O místico se contenta com saborear o aroma que permanece no ar depois que Deus passou!

Um místico e um teólogo não falam a mesma língua. Assim como a linguagem do nariz não é a mesma dos olhos. Ambos os sentidos fornecem, no entanto, ao homem a mesma mensagem estética.

O Deus de Teilhard é o mesmo de Karl Rahner. Só que o de Teilhard tem “cheiro de terra” e o de Rahner carece de “cheiro”.

Durante séculos teólogos e cientistas faziam questão de sublinhar a pretensa incompatibilidade entre Ciência e Fé. Nos últimos cem anos foram dados passos gigantescos no sentido de pôr fim a esta guerra inglória.

Quando dizemos que o cristão não se apega a regras e que não necessita de outro poder além daquele que sua fé em Cristo lhe proporciona, estamos mexendo em “vespeiro”, pois é inútil ir à procura de uma religião que dispensa seus fiéis de alguma forma de obediência. E de alguma forma de disciplina imposta.

O místico é alguém que adquiriu grande familiaridade com os planos superiores da sua consciência. Com o seu Self, diria Jung. Com a sua consciência espiritual, diria Assagioli.

Os conhecimentos que o Supraconsciente lhe fornece não são iguais aos que sua razão e seus sentidos lhe proporcionam, pois são de natureza intuitiva. Por intuição se entende uma espécie de conhecimento em que o sujeito entra em contato direto e imediato com a verdade, a qual se lhe revela sem o concurso de intermediários.



O conhecimento místico é essencialmente visionário. É por isto que os místicos preferem servir-se de imagens e de símbolos, de comparações e de extrapolações e hipérboles para descrever suas experiências. O falso místico se apega às imagens como se elas fossem a verdade, assim como o mau teólogo se prende a dogmas e o mau cientista se escraviza a uma visão teórica da realidade.        
                                   
                                       Pe. José Marcos Bach, sj


LIBERDADE DO MÍSTICO

Uma das características do comportamento místico é a grande liberdade com que pensa, age, ama e atua no mundo em que vive.

Esta sua independência lhe causa problemas quando o meio social em que atua não permite que alguém faça as coisas sem pedir licença.

Para um cavalo liberdade é uma coisa. Para um passarinho ela é outra, bem diferente. O primeiro se sente livre quando pode correr à vontade por onde quer! Para um pássaro ser livre significa poder voar por onde quiser!

A liberdade do asceta é horizontal, como a do cavalo: só lhe é permitido correr dentro de um território fechado, limitado por cercas.

A liberdade do místico é essencialmente vertical e tão ampla e irrestrita quanto o firmamento.

O que pode complicar a vida de um místico é o modo extremamente generoso com que concebe e pratica esta liberdade espiritual.

São João da Cruz a define como soberana. Em  “Obras Completas de são João da Cruz” p.853, ele diz: “A ditosa alma que tem a ventura de ser tocada pelo Amor Divino tudo saboreia, tudo experimenta e faz tudo quanto quer com grande prosperidade, sem que alguém possa prevalecer diante dela, nem coisa alguma venha atingi-la, porque a essa alma se aplicam as palavras do Apóstolo:

‘O Espiritual julga todas as coisas e por ninguém é julgado’(I Cor 2,15).”

                                                Pe. José Marcos Bach, SJ


PODER E HUMILDADE

Quem já viveu muito fica desnorteado com a quantidade de problemas diferentes, de conflitos, de doenças e de crises que podem complicar a vida de uma pessoa ao longo dos anos. Os sintomas são tantos e a confusão entre eles é tamanha que chegamos ao ponto de oferecer no mercado farmacológico mais de 40.000 remédios patenteados. Mas o pobre “doente” que sente dores espalhadas pelo corpo todo, ao entrar numa farmácia, ao escutar a cantilena costumeira do balconista, ficaria feliz se este lhe dissesse:
          - Temos um remédio que cura todos os males, do corpo, da alma e do espírito! É este aqui! É infalível, é barato, mas exige que você tome parte num curso de filosofia!
           - Um curso de filosofia?
         - É isto mesmo: você vai ter que mudar por completo o seu modo de vida! A maior parte dos remédios que você está tomando só serve para agravar as suas “doenças”. A sociedade em que você vive está ainda mais doente do que você. Mas é a ela que você confiou o cuidado por sua saúde! As instituições mais representativas desta sociedade nada têm a lhe ensinar em matéria de saúde!

Doente, quando muito, sabe o que é “estar doente”. A respeito de saúde só pode falar de modo convincente aquele que a possui. O oposto da saúde não é a doença em si, mas o modo como ela é tratada.

 Do ponto de vista metafísico pode-se conceber o fenômeno chamado “doença” como mal, como algo que não deveria acontecer. E que, portanto, é preciso eliminar, combater e erradicar, se possível. Mas é também possível percebê-la como “bem”, como meio de passar de um nível inferior de saúde para outro de nível superior.

O termo “saúde de ferro” é usado para caracterizar uma saúde inabalável, uma saúde que se pode permitir o luxo de zombar da doença e dos seus agentes causadores.

A doença não é um flagelo. Menos ainda o são os micróbios aos quais atribuímos a culpa. Há lições de vida que só aprendemos num leito de hospital. E muitas lições, que carnaval algum conseguiu nos dar, vamos aprendê-las no leito da morte! Melhor tarde do que nunca!

Seria maravilhoso (para os doentes) se fosse possível reduzir todos os fármacos a um só. Quanto possível barato e infalível. No entanto, isto só seria possível caso conseguíssemos reduzir todas as doenças a uma só.

Dethlefsen, autor esotérico alemão, tenta fazê-lo. Segundo ele, existe uma relação íntima entre doença e ânsia de poder.

Doente é basicamente todo aquele que diz: “Eu quero, eu desejo, eu fiz”! Todo aquele que se instala no alto de um trono ou de uma cátedra e diz: “Aqui quem manda sou eu” – é um doente! E aqueles que se lhe submetem, tornam-se tão doentes quanto ele.

Do livro “NO OLHO DO FURACÃO” Um testemunho de vida – de Pe. José Marcos Bach, SJ 



ORAÇÃO DO SILÊNCIO

            “Nas vossas orações não useis de vãs repetições, como os gentios, porque imaginam que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles” (Mt 6,7-8).

Há mais que uma única maneira de se dirigir a Deus e de tomar consciência da sua presença e do seu Amor. A mais primitiva e rudimentar é a chamada “oração vocal”. Nela nos comunicamos com Deus por meio de palavras. Fazem parte dela a oração de petição e de intercessão. Em ambas pedimos a Deus benefícios e favores para nós e para outros. É a modalidade de oração que o povo humilde costuma praticar por não ter conhecimento de outras formas de oração. Entre estas merece destaque a “oração contemplativa”. A palavra contemplação vem do termo latino “templum” templo. Quem contempla dirige-se à natureza como quem entra num templo, num santuário, com a intenção de descobrir nela os vestígios da presença amorosa do Criador. O fruto mais imediato deste modo de orar é a consciência de que no Universo criado por Deus tudo está interligado e que o elo que liga as coisas e pessoas todas entre si é o Amor Divino. Daí brota a consciência de fazer parte deste Universo como agente ativo e criador, e não como mero expectador passivo.

Uma das modalidades da oração contemplativa é a que com o apóstolo Paulo poderíamos chamar de “oração mental” (I Cor 14,15). Por meio dela procuramos entender os seus desígnios e compreender a complexidade da sua obra. É a forma de oração que mais se aproxima dos objetivos de um pesquisador científico. Ela tem por finalidade aprimorar o intelecto do homem através da inteligência do Universo visível. “Per visibilia ad invisibilia”.

Não é fechando os olhos ao mundo que nos cerca e nos envolve em seus braços que vamos descobrir Deus. É isto que Santo Inácio nos quer ensinar em sua “Contemplatio ad Amorem obtinendum”: ver Deus em tudo e tudo em Deus!

Já no Antigo Testamento encontramos passagens em que Deus se queixa da maneira como a oração era praticada nos santuários de Israel. “Este povo me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29,13). Em Jeremias deparamos com a mesma queixa: “Eles me tem em seus lábios, mas longe do coração” (Jr 12,2). É do coração e não dos lábios que parte a oração que Deus prefere! Esta maneira de orar “com o coração” é chamada, nos tratados de espiritualidade cristã, de “oração afetiva”. Seu valor supera, em todos os aspectos, o da oração “vocal” e “mental”. Ela possui um grau de interioridade que as outras modalidades não oferecem. Nela e através dela é Deus que fala à alma a partir do seu interior mais íntimo e profundo. Palavras e pensamentos já não são mais necessários. As emoções se aquietam e os sentimentos se juntam todos para formar um só: o da feliz união com o Amor Absoluto. Também é chamada de “oração do silêncio”, pois aquele que ora “em silêncio” concentra toda a sua atenção no que Deus lhe tem para dizer! Quer ouvir, escutar e aprender! É a alma que se põe em silêncio para que Deus possa ser ouvido.
                                                             Pe. José Marcos Bach, sj




O DESPERTAR

 O caminho que conduz do pessoal ao transpessoal é chamado também de processo de iniciação.

Toda vida mística pode ser inscrita num processo deste tipo, pois ela começa por um retorno às fontes primigênias da sua psique situadas num plano do inconsciente que Freud denominou de Id e que outros autores chamam de Eu Inferior. E que Jung chama de Inconsciente Coletivo.

“Na base da alma do homem está a própria alma da humanidade, porém uma divina, transcendente alma, liderando dos limites para a liberação, do encantamento para o despertar, do tempo para a eternidade, da morte para a imortalidade” (Jung).

A vivência mística e tudo o que leva a ela pode ser inscrito como parte de um projeto evolutivo mais amplo que Jung chama de “processo de individuação”.

“O processo de individuação consiste na integração dos aspectos conscientes e inconscientes da nossa psique, o que envolverá encontros com os arquétipos do inconsciente coletivo e resultará, idealmente, na experiência de um novo centro de personalidade a que Jung chamou de Self” (Cf. Gilda Moura em sua obra Transformadores de Consciência p.98). Este processo marca a passagem da infância à maturidade e a partir dele “pode se distinguir a personalidade madura da infantil” (Ibid.).

As forças que este processo desencadeia, Jung as define como “numinosas”. “O elemento responsável por esta transformação é o símbolo”, afirma Jung. E o símbolo arquetípico por excelência é o Mandala, o disco sagrado.

A linguagem simbólica difere de cultura para cultura e sua eloquência ou potencial “numinoso” passa por transformações ao longo do processo de desenvolvimento espiritual. O mesmo símbolo não “diz” sempre para todos a mesma coisa! Até no decorrer da vida de uma pessoa pode acontecer que um símbolo perca o seu valor!

É o arquétipo que confere a um símbolo o seu significado mais profundo. A cruz era considerada pelos habitantes do Continente de Mu como símbolo do homem muito antes que os fenícios a transformassem em instrumento de martírio! Um ambiente pode ser construtivo ou destrutivo: isso depende em boa parte da sua “carga simbólica”.

Texto do manuscrito “MÍSTICA E MISTICISMO” de Pe. J. Marcos Bach, sj




UNIDADE NA DIVERSIDADE

O Movimento Ecumênico Cristão é formado por pessoas que se deram conta de que o maior inimigo do cristianismo não são as divisões de Stalin ou Hitler, mas a divisão das Igrejas. O Papa João XXIII percebeu isto como poucos.

O Concílio Vaticano II não conseguiu convencer os setores mais ativos da Igreja católica que chegara a hora de saber morrer para poder ressuscitar. Sou católico e a mim me interessa o futuro da minha Igreja. Na minha vida a fé em Cristo é essencial. Minha fé na Igreja católica é condicionada à capacidade de seus “pastores” de se adaptar às exigências de uma sociedade sujeita a violentas transformações. Incondicional é a fé em Cristo, mas a fé numa determinada Igreja só pode ser condicional. A mais cristã das Igrejas é tão imperfeita quanto o são as estruturas da sociedade à qual se integrou.

Tanto a Igreja católica quanto as de rito oriental incorporaram em seus regimes de governo vícios do antigo Império Romano. Citemos um exemplo que fala por todos os demais: o poder de governar a Igreja está concentrado na vontade soberana de um único homem, o Papa. É ele a única pessoa que só é responsável perante Deus e à sua consciência. Além dele não há mais nenhum católico que tenha tamanha liberdade.

Quem acha que tamanha concentração de poder favorece a salvação das almas engana-se, tanto quanto aquele tipo de empresário da era industrial que ainda podia permitir-se o luxo de tratar sua empresa como propriedade pessoal.

Por toda parte começam a surgir movimentos políticos destinados a unificar determinados setores da vida humana. Fronteiras começam a desaparecer ou perder seu caráter de trincheira. Tudo isto é altamente positivo e desejável do ponto de vista cristão, desde que não se faça confusão entre unidade e uniformidade.

A uniformidade resulta de um processo em que só uma única medida se torna obrigatória. A palavra ideologia expressa muito bem o que os regimes totalitários têm em vista.

Idion é uma palavra grega e significa o mesmo. Daí vem o termo idiota: o homem de uma só ideia. Daí vem também o termo ideologia que representa a redução da multiplicidade de ideias e formas de organização social a um único denominador comum.

            “Ein Volk, ein Reich, ein Führer” proclamavam os epígonos do pesadelo nazista.

Uniformidade é unidade mutilada. Existe uma diferença fundamental entre a unidade que é imposta de cima para baixo e de fora para dentro e a que resulta de algo que se poderia definir como consenso interior.

A unidade orgânica e ecossistêmica que a natureza adotou é uma unidade consentida e livre, e se impõe por si mesma. Criar e organizar unidades sempre mais complexas: é este o objetivo último de todo processo evolutivo. Este objetivo o perseguem tanto os componentes da biosfera quanto os da noosfera. A natureza pode servir muito bem de modelo já que nela todo progresso resulta de uma síntese mais complexa do uno com o múltiplo.

Eliminar as diferenças é o mesmo que enfraquecer o elo de união que mantém vivo um corpo, seja ele biofísico ou social.

Sistemas sociais inspirados no conceito totalitário e autocrático de unidade são por natureza inimigos declarados da liberdade por serem hostis por princípio ao direito que cada entidade individual tem de ser diferente das demais. É este o lado fraco de qualquer religião, ao qual a Igreja católica sucumbiu tanto quanto o Islamismo.

Quem vai escrever daqui para frente a história da humanidade vai ser o homem. Quem vai escrever a história futura da Igreja de Cristo serão aqueles que descobrirem, por conta própria, que o cristianismo é em sua essência um modo desmesuradamente generoso e ousado de viver a vida sem peias nem restrições. O autêntico discípulo de Cristo dispensa leis, currais protetores e qualquer tipo de tutor. Quem é verdadeiramente livre como Cristo o era, mede a sua liberdade e o direito de vivê-la, tomando como critério sua própria liberdade. O verdadeiramente livre não precisa justificar sua liberdade. Ele obedece em tudo o que faz de certa forma a si mesmo, segundo impulsos que lhe vêm do íntimo da sua consciência livre.

Texto do livro “A IGREJA QUE EU AMO” de Pe. J. Marcos Bach, SJ - Edição própria.



O AMOR QUE É...


Também no campo do amor vale o axioma latino que reza assim: “non multa, sed multum”. Não é a quantidade que importa, mas a qualidade. E esta é, no caso do amor, uma questão de intensidade. Intensidade vibratória, como acontece no campo atômico.

Um amor demasiadamente bem comportado é como uma roupa demasiadamente justa. Tão justa que acaba incomodando.

O amor não se dá bem com regras, prescrições e proibições.

O amor de amizade tem sobre o amor erótico a vantagem de não nascer de uma necessidade e de não reclamar para si outro mérito que não seja o de existir por mérito próprio.

O amor de amizade só acontece em ambientes em que é proibido proibir, em que é maravilhoso ser e permanecer pequeno!

 A grandiloquência não faz parte de uma declaração de amor entre amigos! Amores muito declarados e apregoados costumam ser mais falsos que autênticos!

O oxigênio que respiramos, e ao qual devemos o fato de podermos continuar vivos, não tem o hábito de se autopromover como teria todo o direito de fazer. Tão discreta como a presença do oxigênio em nossas vidas é a presença do amor!

Jesus não aproveitou a última hora de sua vida mortal para fazer um discurso ou para lançar um manifesto. Morreu cercado de trevas. “Chegada a hora sexta houve trevas em toda a terra” (Mc 15,33). A sexta hora (três da tarde) é a hora da morte de Jesus!

O amor adulto, o da sexta hora, não é aquele pelo qual Romeus e Julietas se dispõem a morrer! Não faz parte do nosso discurso sobre o amor a ideia de morte! Ninguém quer comprometer-se com um amor que inclua a morte como consequência. “Amigo, amigo de verdade, é aquele que dá a vida por seu amigo” (Jo 15,13).

Texto do manuscrito “AMOR DE AMIZADE” de Pe. J. Marcos Bach, SJ.




                            MÍSTICA DA EUCARISTIA

                    “Onde as pessoas se amam Deus está presente”!
                                                                Pe. J. Marcos Bach, sj

Depois que Jesus Cristo lavou os pés dos seus discípulos, tomou o pão, partiu-o e deu-o para que fosse partilhado, dizendo: “Tomai e comei todos vós, este é o meu corpo que será entregue por vós”. “Do mesmo modo, no fim da Ceia, tomou o cálice com vinho em suas mãos e disse: Tomai e bebei todos vós, este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos em remissão dos pecados. Fazei isto para celebrar a minha memória”.

Pergunto: o que tem a ver estes gestos de Jesus com o dar uma hóstia branca na boca de uma pessoa ajoelhada? Não foi um gesto de irmanação de todos os presentes este partir e partilhar o pão e o vinho, tornando-os símbolos do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo, o “Pão Vivo descido do céu?”, sua Pessoa presente em “espírito e vida”?  “Fazei isto em minha memória” não evoca postura de relacionamento, gestos de fraternidade, de participação e de amor?

Dar a hóstia na boca da pessoa ajoelhada bem pode representar um gesto que evoca submissão e minoridade. É um gesto de quem se coloca acima de todos e todas e decreta o que é verdade, o que deve ser obedecido.

Não se coloca de igual para igual como o fez Jesus lavando os pés de seus seguidores;

Não convida à quem pretende distribuir o “Pão Vivo descido do céu” para sentar-se ao redor de uma mesa para partilhar deste Pão.

Jesus partiu o pão e o distribuiu. Apenas deu-o na boca de Judas, o traidor.

Receber o pão na boca é declarar incapacidade de distinguir quem é quem;

É ser passivo sem a menor ideia do que representa ser participante de uma Comunidade Cristã;

É trair Jesus e seu projeto de vida para todos e todas em abundância, conquistado pelas pessoas que atuam numa comunidade e se relacionam nela com total doação, desprendimento e amor!

Dar a hóstia na boca de alguém é submetê-lo a ser inferior, a receber tudo pronto e a não precisar fazer esforço em conjunto para conquistar os bens que nos esperam e nos fazem viver melhor.

Por que é tão dramática a falta de pão na mesa de alguém? É porque o pão nosso de cada dia em cima de nossas mesas alimenta também o nosso espírito.  A Eucaristia é plena e completa se incluir o pão nas nossas mesas!

Os primeiros cristãos se reuniam e tomavam as refeições em comum. Celebravam, desta forma, o partir e o partilhar do pão em memória de Jesus, a Eucaristia (Atos 2,42...). Será que o mesmo não podemos começar a fazer em nossas famílias, em nossas pequenas comunidades para nos lembrar da importância do alimento para nossa vida, para nossas almas, para nosso espírito? Numa época de inversão de valores, onde cultuamos o automóvel e a indústria de combustíveis em detrimento dos alimentos, não é oportuno lembrar o pão como alimento humano e espiritual indispensável?

 Que o partir e o partilhar do Pão da Eucaristia nos lembre a falta de pão na mesa de muitos de nossos irmãos e irmãs e nos leve a sermos solidários com aqueles e aquelas que não dispõem do pão de cada dia!  - Agosto de 2008.




DEUS ESTÁ PRESENTE
           
Quando um místico cristão fala da “ação do Espírito Santo” está se referindo à mesma inspiração a que Bohm dá o nome de Insight. Bohm não o diz porque não quer invadir seara alheia, pois é de opinião que a resposta a este tipo de interrogação ultrapassa a competência de um cientista. Embora admita o caráter atemporal deste processo todo, ainda o define como material. Ao fazer esta afirmação, Bohm não descarta a relação do homem como passageira. É o mesmo que afirmar que o espírito do homem será sempre um espírito encarnado e que esta vinculação não o empobrece nem o diminui!

Se a “essência da matéria é espiritual”, como sustentava Einstein, então a “essência do espírito é material”. Sendo assim, é preciso descartar como falsa qualquer forma de antagonismo, opondo espírito e matéria. Em sua dimensão mais profunda espírito e matéria convergem e se completam. Ao assumir a natureza humana na Pessoa Divina de Cristo, o próprio Deus entrou ativamente neste processo, que podemos definir como sendo de espiritualização do universo material.

Amorização é a palavra que Teilhard de Chardin emprega para definir este projeto monumental e de dimensões cósmicas. O nível de consciência que lhe corresponde é a consciência cósmica, pela qual uma pessoa toma consciência de si como parte integrante de uma totalidade tão ampla quanto o universo todo.

A consciência de um cristão autêntico é essencialmente cósmica, pois o Deus em que deposita sua fé se manifesta a ele através do universo material. O grande Livro da Natureza, desde o átomo até a galáxia, está repleto de informações, dizendo-nos quem é Deus. Para o apóstolo Paulo “quem não crê em Jesus, ainda pode ser desculpado, mas quem, ao contemplar o firmamento e os mistérios da natureza não crê em Deus, este não tem desculpa” (Rm 1,20).

Durante séculos o número de estrelas conhecidas não ultrapassava 6.000. Neste curto espaço de tempo o nosso conhecimento do universo cresceu “ad infinitum”, tanto em quantidade quanto em qualidade. Devemos este maravilhoso progresso a cientistas. A pesquisa teológica praticamente ignorou solenemente o que os cientistas iam descobrindo. Esta é uma situação deplorável pela qual os responsáveis principais não são os cientistas, mas os profissionais da “Doutrina da Fé” encastelados em suas fortalezas inexpugnáveis.

A presença de Deus na vida dos homens é elemento fundamental da fé em Cristo. O Evangelho de Tomé cita uma palavra de Jesus que realça a importância desta tese. “Levanta uma pedra e debaixo dela me encontrarás”.

Quem não aprendeu a encontrar Deus nos pequenos detalhes da vida cotidiana, também não vai encontrá-lo na Basílica de São Pedro. O mundo que nos cerca está repleto de maravilhas que na sua simplicidade nos falam do Amor de Deus de forma mais convincente do que o mais eloquente sermão.

Texto do manuscrito “RETIRO DE SANTO INÁCIO – À Luz da Ciência” de Pe. J.Marcos Bach, SJ.



PROGRESSO ESPIRITUAL

O que significa progredir? Significa avançar, caminhar para frente. Significa sair do lugar, mudar de espaço. Significa mais: significa mudar o espaço em que se vive. Tanto o espaço exterior, quanto o interior. Mudar tanto os seus relacionamentos quanto o modo de se relacionar. Decisivo é o grau de intimidade.

Como vejo o outro? Como estranho que preciso transformar em próximo? Ou como um próximo que preciso transformar em alter ego meu?

É impossível progredir sem sair de um tempo e passar para outro. Há no caminho do progresso espiritual momentos de calmaria, de paz e tranquilidade e momentos de tempestade. Períodos de tranquilidade têm o mesmo sentido que o espaço de tempo entre duas batalhas ou duas ofensivas. Quem atravessa um oceano sempre está mais perto do perigo do que da segurança. “Tudo o que vale a pena é difícil” (Platão).

A paz que Cristo veio trazer não é a mesma que o mundo promete. “Militia est vita hominis”, diz a Escritura. “Combati o bom combate” (II Tm 4,7). “Combate o bom combate da fé” (I Tm 6,12). O povo de Israel, protótipo do Povo de Deus da Nova Aliança, só conheceu raros momentos de verdadeira paz. “Não vim trazer a paz, mas, sim, a espada” (Mt 10,34).

Jesus não excluiu a violência, isto é, a força, do seu projeto de desenvolvimento espiritual da humanidade. O emprego da força (= violência) não é condenável, desde que não venha a ferir a liberdade da pessoa humana. O amor e a beleza são forças que arrebatam, cativam e conquistam! É a elas que Jesus se refere quando diz que o acesso ao Reino de Deus é reservado aos que se dispõem a lutar por ele. Lutar não significa tanto tentar arrebatar o Reino dos Céus, quanto deixar-se arrebatar por sua beleza.

O progresso espiritual representa mais do que um simples avanço horizontal e linear. Progredir tem aqui o mesmo sentido que subir, ascender. Subir significa partir de um plano inferior e mais baixo para um outro mais alto. O que é mais alto e o que é mais baixo? Do ponto de vista topográfico, mais alto é o que só se consegue perceber erguendo a cabeça. Subir uma montanha sempre exige mais esforço do que descer a um vale. A lei da gravidade favorece os que descem e dificulta a vida dos que pretendem subir. O mesmo princípio é válido para o campo do progresso espiritual. As dificuldades que encontramos pela frente em nossa caminhada para a perfeição espiritual são a prova de que estamos indo no rumo certo e de que estamos em condições de progredir.

            “Céu de brigadeiro”, todo azul e sem nuvens, é ótimo para quem quer voar sem correr riscos. Mas a vida humana não foi feita para passeios e para a distração de “brigadeiros”! Conhece coisa mais arriscada e perigosa do que a vida de um antílope? A vida de um ser humano conhece perigos que um animal desconhece. Aos perigos e ameaças que rondam sua saúde e segurança física, o homem deve acrescentar uma lista de perigos de ordem psicológica, ética e espiritual. Infeliz daquele que se dá por salvo antes do tempo. Mesmo o cristão mais identificado com sua fé em Cristo não tem o direito de se colocar do lado dos que já estão definitivamente salvos. Também para um cristão a salvação é um horizonte. A humildade cristã consiste precisamente na aceitação desta realidade. Até o apóstolo Paulo confessa que não sabe se pode ter-se na conta de amigo ou inimigo de Deus!

Texto do manuscrito “A PERFEIÇÃO CRISTÔ de Pe. Marcos Bach, SJ.




MEDITAR

O instrumento destinado a desbloquear o caminho que leva do eu ao interior do inconsciente é a meditação, uma forma de reflexão consciente sobre o inconsciente. Ela parte da crença de que o inconsciente tem a tendência de se revelar a quem o deseja.

No entanto, o desejo por si só não basta. É necessário empregar para tanto o método de introspecção apropriado e a disposição de ânimo adequado. A mera curiosidade pode levar a desvios e devaneios perigosos. Nem a simples boa vontade é suficiente.

Constância e perseverança são indispensáveis, mas o mais devotado esforço é inútil quando falta o essencial. E o essencial é a vontade de crescer e o correspondente impulso interno. Quanto mais poderosa for a sensação de estar em débito com a lei da evolução, tanto mais frutífera será a meditação.

O primeiro passo consiste em esvaziar o eu consciente de tudo o que habitualmente o povoa: pensamentos, imagens, preocupações, conflitos emocionais, etc. Mais que tudo é necessário expulsar de dentro de si o maior inimigo do progresso espiritual humano, que é o medo. Nesta primeira fase até pensar em Deus deve ser evitado.

Parece perda de tempo ficar assim, “sem fazer nada”, na expectativa de escutar um dia uma “Voz” que teima em permanecer silenciosa, e em ver algum dia uma “luz” que treva alguma do mundo parece ser capaz de gerar. Mais que tudo, parece absurdo esperar que daquela “noite escura” possa surgir um dia um rosto, o “rosto” divino de Deus!

No entanto, é isto que aguarda o contemplativo caso tiver a paciência de aguardar a “chegada do Altíssimo”.

Esta primeira fase da passagem pelo vazio é a mais problemática de todas. É como vasculhar meses a fio uma floresta sem topar sequer com o mais leve indício de caça! Só aos poucos o contemplativo começa a descobrir que o problema não era falta de “caça”, mas a sua própria incapacidade de “ver no escuro”.

Se você quer aprender a meditar deve tornar-se capaz de passar ao menos meia hora por dia neste “dolce far niente” que é a atividade contemplativa!

(Texto do artigo Mística e Misticismo de Pe. Marcos Bach, Sj – in memoriam).



 A RESSURREIÇÃO DE JESUS

Após a sua morte Jesus ainda ficou com os seus durante 40 dias. A intenção era clara: além de prepará-los para viverem sem a sua presença física, as aparições tinham a finalidade de eliminar de sua fé qualquer dúvida referente à sua ressurreição dentre os mortos. “Irei adiante e preceder-vos-ei na Galileia” (Mc 14,28). Foi na Galileia dos gentios que Jesus iniciou sua vida pública e é lá que queria encerrá-la. Longe de Jerusalém e de tudo o que a Cidade Santa simbolizava no imaginário popular. No meio da natureza, à beira de um lago com o Monte Hermon, a montanha mais alta da região à vista, é ali que Jesus se sentia verdadeiramente em casa.

 O apóstolo Paulo atribui à Ressurreição de Jesus um caráter primicial. “Ressurgindo dos mortos Jesus tornou-se o primogênito de uma nova humanidade. Ele, Cristo, é o primogênito dentre os mortos” Cl 1,18).A Ressurreição de Cristo é uma das verdades angulares da fé cristã. O apóstolo Paulo não se cansa de associar à ressurreição de Cristo a ressurreição de todos aqueles que nele depositaram a sua fé. O apóstolo Paulo chega a afirmar que se Cristo não ressurgiu dos mortos, também nós não vamos ressuscitar (I Cor 19,16). Chega a inverter o raciocínio ao afirmar: “Se os mortos não vão ressurgir, então Cristo também não ressuscitou” (I Cor 15,16).

Para o apóstolo Paulo Cristo seria o maior impostor que a história conheceu “se não tivesse ressuscitado dos mortos, pois toda a nossa fé seria vã no caso de ele não ter ressuscitado” (I Cor 15,17). Tão vã como a nossa fé seria a ressurreição de Cristo, caso o universo todo não tivesse ressuscitado com ele. Foi Santo Ambrósio que carimbou a expressão segundo a qual o universo inteiro deixou de ser o mesmo depois que Cristo ressuscitou. “In eo surrexit mundus”, diz Ambrósio.

A dimensão cósmica da ressurreição de Jesus, envolvendo por igual místicos e cientistas, poetas e historiadores, antropólogos e teólogos é tão fundamental, que qualquer concepção antropológica bairrista deve ser descartada a “limine” como defeituosa e viciada. Não é somente o teólogo que precisa tratar o cientista com mais respeito. É também o cientista que precisa de mais humildade. O “Cogito, ergo sum” de René Descartes, só expressa a metade de uma verdade maior. O místico se põe em combate com esta verdade maior através de oração. Pois é além das fronteiras determinadas pelo pensamento que o Logos Divino se encontra à espera da consciência do homem.

 A palavra mortificação não encontrou espaço no vocabulário científico. Só encontrou espaço no vocabulário teológico. A morte faz parte da vida. Ela não ocorre só uma única vez, como acontece com o nascimento. Ela, a morte, acompanha a vida desde que esta teve início. Morte e vida não são antônimas, são sinônimos. A morte sempre foi interpretada e vista como inimiga da vida e como fim de vida. Mas quem familiarizou seu pensamento com o de Cristo e do apóstolo Paulo, concebe a morte como um avanço na vida. A morte não põe fim a nada, exceto a um cativeiro, que com o passar do tempo, ia se tornando cada vez mais insuportável.

A moderna tanatologia científica ainda patina em terreno escorregadio porque continua vendo a morte como a viam Sócrates e Platão, Sêneca e Cícero. Se alguém tivesse perguntado a Sigmund Freud o que Deus pensa a respeito de um assunto qualquer, provavelmente teria ouvido que “não interessa saber qual a opinião de Deus, se é que existe um Deus preocupado com os mesmos assuntos que nos preocupam a nós”.Tão inaceitável quanto a crença de que a morte é um castigo infligido por Deus à humanidade porque esta tentou apossar-se da imortalidade do seu Criador, é esta outra crença de que a morte não fazia parte do plano original do Criador. A morte não é uma calamidade, uma praga e como tal carece de qualquer sentido biológico. A morte não é nenhuma desgraça. As lágrimas que a morte de um ente querido nos leva a derramar, seriam com toda a certeza melhor empregadas se em vez de serem manifestação de tristeza, fossem manifestação de alegria. Certamente não foi uma inspiração divina que levou o Ocidente cristão a escolher o preto como a cor de luto. A figura da carpideira é anterior ao cristianismo, pois num enterro cristão ela destoaria por completo. Se trato nestas páginas a morte como a grande amiga e benfeitora da humanidade, o motivo que me leva a fazê-lo com tamanha insistência é a constatação de que tanto a ciência como a religião ainda continuam subsidiárias de uma tanatologia teoricamente superada e obsoleta, mas que na prática ainda continua em pleno vigor.

 O apóstolo que mais se empenhou em esclarecer o conceito de ressurreição dos mortos foi Paulo. É ele que na Carta aos Coríntios formula a pergunta: “Como ressuscitam os mortos?” (I Cor 15,35). Só pode ressuscitar o que morreu. Ora, o que morreu não foi a Pessoa, mas apenas o corpo. Logo, quem vai ressurgir dos mortos é o corpo, já que a alma nunca tinha morrido. É extremamente infeliz a ideia de dividir o homem em duas partes, uma incorruptível, o espírito, e a outra corruptível, o corpo. Ressuscitando dos mortos, Cristo devolveu ao corpo humano um privilégio que o espírito do homem nunca tinha perdido: a incorruptibilidade. “Semeia-se o corpo na corrupção e ele ressurge na incorrupção” (I Cor 15,42). O corpo com que nossos pais nos revestiram é sem a menor dúvida uma bela obra de arte, mas seu destino final é a corrupção. À perspectiva de ver também o nosso corpo apodrecer no fundo de uma cova o apóstolo Paulo vem contrapor a perspectiva luminosa da ressurreição. Cientistas costumam fazer pouco caso do que é afirmado em Livros Sagrados. Tratam como não científico o que é afirmado na Bíblia e em textos da antiga Índia como os Upanishades. Se tem razão Nietzsche quando diz que é oblíqua (Schief) a atitude do teólogo quando se põe a tratar aspectos da realidade concreta, então nada nos impede de estender esta afirmação também ao mundo científico. Conceitos como objetividade, imparcialidade, neutralidade podem ser empregados para camuflar e para dourar uma verdade ideologicamente determinada.

Há séculos que a história humana é determinada por pessoas que só se servem do hemisfério esquerdo do seu cérebro. Há quanto tempo a história é registrada da esquerda para a direita? Povos que escrevem partindo da direita e do alto, como os hebreus, parece que estão com os dias contados. O falecido cientista americano David Bohm acusou o mundo científico de estar sendo vítima de uma colossal autofraude, achando que o mundo real coincide com o mundo formal do cientista. Que não existe mais nada além do horizonte determinado pela mente do observador científico. É do mesmo autor a tese de que além da realidade formal existe uma outra realidade que ainda não teve tempo nem sequer foi solicitada a se manifestar.

A crença de que a nossa razão e nossos sentidos nos colocam em condições de nos manifestar o universo por inteiro deve ser descartada como infantil. A ciência nunca nos vai revelar tudo o que ainda não sabemos. Até hoje o pensamento científico ainda não encontrou um lugar para Deus. A fé que nos leva até Deus é tão confiável quanto a razão. Einstein não se envergonhou da sua condição de crente. O apóstolo Paulo, que tanto se orgulhava da sua condição gloriosa de ressuscitado em Cristo e com Cristo, mencionou a ressurreição, a nossa ressurreição, como fato já consumado: a “ressurreição já se realizou” (2 Tim 2,18). Já nos podemos considerar ressuscitados dos mortos. A morte já não tem mais poder algum sobre os que depositaram toda a sua fé em Cristo. “A morte não tem domínio sobre ele” (Rm 6,9).

(Texto do manuscrito “A MORTE” de Pe. José Marcos Bach,SJ – in memoriam).




DROGAS OU MEDITAÇÃO?


Drogas alucinógenas estão sendo empregadas em grande escala para suprir a falta de introspeção meditativa. Tribos indígenas do Oeste Americano costumavam usar o peiote, uma espécie de cactos da região, em seus ritos religiosos. Um vigoroso controle impedia a proliferação de abusos.

Existe uma diferença fundamental entre uma “viagem” provocada por alucinógenos e um êxtase místico. A experiência mística não gera dependência nem dificulta o desempenho profissional.

Para um toxicômano ou viciado em drogas o retorno à normalidade se torna cada vez mais difícil, ao passo que o místico autêntico não se defronta com este tipo de problema. Merece o nome de droga tudo o que cria dependência. Até a religião pode ser usada como droga, assim como o trabalho e o sexo.

A droga tem o poder de despertar no homem o que no inconsciente existe de mais primitivo que é sua instintividade. A experiência mística, pelo contrário, desperta o que nele existe de mais espiritual e de mais divino.

Ofereceram a um monge hinduísta uma dose de heroína. Ele a tomou, mas continuou como se tivesse acabado de comer um sorvete. Quadruplicaram a dose e mesmo assim ele continuou normal. Quando lhe pediram uma explicação, sua resposta foi esta: “Meditação é muito melhor!”.

Ou substituímos a droga por algo bem mais simples e barato do que o crack, ou acabamos perdendo mais esta guerra, como já perdemos outras muitas.

Quem não consegue perceber que estamos todos à beira de uma derrota total? Os sobreviventes do Dilúvio saíram das florestas e desceram das montanhas para dar início a esta nossa civilização. É do alto das montanhas que partem os criadores de uma nova civilização. Certamente não é em casas noturnas que esta nova geração está nascendo!

            Uma experiência mística é uma experiência de pico, ao passo que o máximo que uma dose de cocaína pode proporcionar é meia hora de euforia, seguida de algumas horas de inferno. Muito desapego é necessário quando se tem a intenção de sair ileso de uma viagem pelo interior da sua própria consciência.

Não fosse o inconsciente lugar de encontro da alma com seus piores demônios, Jesus não teria se empenhado tanto em “expulsar demônios”!

De que adianta, no entanto, contratar os serviços profissionais de um exorcista quando este homem é possuído por demônios ainda piores do que os do pobre possesso? E os piores de todos são os demônios que conseguem disfarçar-se melhor!

Da expulsão dos seus demônios cada qual deve encarregar-se por iniciativa e conta própria. Também nossos demônios sabem muito bem como cativar incautos e capturar ingênuos! “Vigiai para não cairdes em tentação” (Mt 26,41).

Penetrar no seu inconsciente é sempre o mesmo que “entrar em tentação”! Por isso a Igreja sempre foi tão cautelosa no trato com experiências e manifestações de natureza mística!

Se existem demônios postados ao pé do portal de entrada que conduz aos “andares” superiores da alma humana, também é verdade que lá é possível encontrar a presença de guias espirituais mais experimentados e infinitamente mais sábios do que o mais erudito dos teólogos. Lá se encontram à sua espera os que você tiver convidado! Só intervirão caso você assim o quiser. Nada do que acontece numa sessão espírita tem algo em comum com o tipo de ajuda que um autêntico guia espiritual se dispõe a prestar. Ele não atende você porque você o convocou! Ele não se comunica com você porque você é medium e possui o dom da mediunidade. Ele não lhe diz o que você gostaria de ouvir! Ele não exige de você o que você não está em condições psicológicas de executar! Ele sabe esperar! De mais a mais, não é do seu feitio fazer exigências e impor tarefas. Contenta-se com sugerir, inspirar, esclarecer. Será para você muito difícil encontrar por aqui outro diretor espiritual tão respeitador da sua liberdade quanto ele! “Se alguém crer em mim e me amar, Eu e o Pai viremos a ele e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23).

O cristão que tem medo de entrar em seu interior mais íntimo é o mesmo que tem medo de que Deus venha a diminuí-lo aos seus próprios olhos! Quem não quer entrar em luta com Deus disposto a sair dela “diminuído”, coxo e derrotado, o melhor que pode fazer é desistir dela de antemão!

O místico continua sendo um homem de fé. Alimenta-se da fé em Deus e não empresta muita importância a visões e vozes interiores. Crê em Deus não porque o tenha visto. Entreviu a sua presença, isto sim. Mas é suficientemente lúcido para perceber que o que viu não foi Deus, mas apenas uma imagem sua. Leva a vida como a leva qualquer pessoa comum. Evita chamar a atenção sobre sua pessoa. Não se tem na conta de pessoa especial, de agraciado ou coisa parecida. Estigmas, êxtases, levitações não provam que alguém é santo canonizável. Santa Teresa considerava tais fenômenos mais como fraquezas da carne do que como manifestações divinas.

Em virtude do seu elevado nível de conscientização o místico dispõe de energias poderosas e incomuns que só aos poucos aprende a canalizar de forma construtiva. Os maiores místicos eram sempre homens ou mulheres de muita ação. É no campo prático que se pode verificar a diferença que distingue o falso místico do autêntico! O pseudo-místico vive fora de si e do ambiente que o cerca. O autêntico místico foi à frente e foi morar além de si e do mundo em que vivia antes. Não é um alienado, um sonhador ou imprestável!

Texto do artigo: “MÍSTICA OU MISTICISMO” de Pe. José Marcos Bach, SJ

                    

ELEVAÇÃO ESPIRITUAL

                                         “Quem se eleva, eleva o mundo”.
                                                                       Isabel Leseur

O místico vê tudo numa perspectiva dinâmica, ascendente e convergente. Nada há no universo que se encontre parado. Tudo se move! Para um místico Deus não pode ser comparado a um “motor”. Menos ainda a um “motor imóvel”. A diferença atinge também a imagem de Cristo.

São João da Cruz, Teilhard de Chardin possuem de Cristo uma imagem totalmente diversa da de um hierarca eclesiástico.

O Cristo de Teilhard não é um Senhor sentado num trono dirigindo o universo e a história de longe e sem se envolver emocionalmente com o que está acontecendo. Pelo contrário. Cristo, o Cristo de Teilhard, não é apenas “fornecedor de energias”, fonte energética. Ele é a “alma” do universo. Ele é esta energia misteriosa que os físicos não conseguem explicar. “Eu sou a luz do mundo”, disse Jesus. Eu sou: foi o que Ele disse!

Se Cristo é a Luz do mundo, então não se pode separar o Criador do universo por Ele criado. Se Cristo é o “Redemptor Mundi” como afirma Santo Ambrósio, então o universo todo já foi redimido. Nele não há mais conta a pagar e nada a cobrar!

Se Cristo ressuscitou e “partiu para o futuro”, então levou consigo o universo todo. É esta a visão que de Cristo tem um místico.

O “Bem Amado” do Cântico dos Cânticos encarna muito mais apropriadamente a figura do Cristo Cósmico do que a figura do Legislador Supremo, tão cara aos devotos do poder absoluto!

Se “a suprema natureza do Universo é uma energia de amor”, como quer o físico David Bohm, então o melhor que podemos fazer é tirar a Cristo da lista dos “cobradores de impostos”!

Quem quer entender as diversas etapas de uma viagem deve ter em mente aonde o viandante quer chegar. O que motiva a vida toda e o esforço de um místico é o desejo de união com Deus.

 Todo ourives sabe que ouro puro só se obtém derretendo numa crisol o produto que resultou do processo de mineração. Assim como o aço, também o ouro se obtém submetendo-o à ação purificadora do fogo. O fogo obriga a ganga a separar-se do ouro. Por ser mais leve, a ganga flutua.

O processo de purificação mística obedece à lei semelhante! Não fosse a ação desagregadora do fogo, a ganga jamais viria à tona e jamais o ouro se iria separar dos detritos que o envolviam e protegiam até certo ponto da cobiça de olhares gananciosos.

Ao derreter o ouro ou o ferro, o fogo nada mais faz do que libertá-los de toda e qualquer forma anteriormente adquirida. Ao liquidá-los, o fogo lhes devolve a plasticidade original.

A palavra transfiguração é talvez a que melhor se presta a descrever este processo de mutação todo. Palavras como fogo, chama e labareda são usadas com frequência por místicos, como João da Cruz. Aparecem sempre associadas ao Amor Divino e identificadas com ele. É lhe atribuído sempre o poder de purificar, de transformar, de iluminar e de aquecer.

Assim como o ferro em brasa e o fogo que o penetra se tornam uma coisa só, do mesmo modo Deus e a alma por Ele abrasada tornam-se um. Esta alma “torna-se uma só coisa com Ele e, portanto, de certo modo torna-se Deus por participação” (S. João da Cruz, o.c.p.918).

Em seus “encontros (com a alma) o amor penetra sempre mais na alma, endeusando-se em sua íntima substância e tornando-a divina” (o.c.p.850). “Neste estado a alma não pode fazer atos, é o Espírito Santo que os produz todos, movendo-a a agir; por isso todos os atos dela são divinos, pois a alma é divinizada e toda movida por Deus” (o.c.p.830). “É elevada à operação de Deus em Deus” (o.c.p.830). O objetivo último da vida mística não é apenas a união com Deus, mas a transformação da alma em Deus.

A um teólogo bem pensante tal ideia pode parecer ousada demais, mas um místico não tem medo de tomar a Palavra de Deus e o seu Amor ao pé da letra!

Texto do artigo: “MÍSTICA OU MISTICISMO” de Pe. José Marcos Bach, SJ


                
ORAÇÃO:  RESPIRAÇÃO DA ALMA

“... Se não confessarmos Jesus Cristo, a coisa não anda. Nos tornaremos uma ONG beneficente, mas não Igreja” (Francisco – Papa, bispo de Roma).

1. Por que rezar? E como fazê-lo?

         A Bíblia nos conta que ao cair da tarde Adão e Eva se entretinham conversando com seu Senhor, passeando pelo Jardim Botânico em que passavam o dia trabalhando. Daí surgiu o conceito que define a oração como diálogo do homem com Deus.

            Orar é conversar com Deus, dizem os catecismos.

          A oração pertence à categoria dos atos religiosos. Por ato religioso entendemos todos os atos humanos (e angélicos também) que colocam o espírito do homem em comunhão com a fonte originária do seu ser. Mais que um ato isolado e esporádico, distinto dos demais, a oração é uma postura existencial, um estado de consciência pelo qual o espírito humano toma conhecimento da sua “união indissolúvel com o Todo: com seu Criador e Senhor, com a natureza toda, com seus semelhantes (vivos e falecidos) e consigo mesmo. É, pois, um estado de espírito pelo qual o homem completa o seu ser e a sua presença no mundo. Por isso tudo se deve concluir que a oração é uma atividade eminentemente espiritual”.

         A oração coloca a alma e o espírito de quem ora em contato com Deus. Mais do que isso: torna o homem (ou qualquer outra criatura de natureza espiritual) em certo sentido “igual a Deus”, seu Criador.

         Deus também ora. “Jesus ia para o deserto para orar” (Mc 1,35). “Passou a noite orando a Deus” (Lc 6,12).

         “Enviar-vos-ei o Espírito Santo e Ele vos ensinará o que tendes para aprender” (Jo 14,26). A oração é com certeza uma das lições mais importantes! “Senhor, ensina-nos a rezar” (Lc 11,1).

         As primeiras Comunidades Cristãs se reuniam, acima de tudo, para orar (Cf. Atos 12,12). Paulo e Pedro eram homens de oração (Cf. Atos 9,11 e 10,9).
         “Não sabemos orar como convém” (Rm 8,26). Esta queixa de Paulo quem dentre nós não a pode aplicar a si? “O próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8,26).

         Se há uma verdade que podemos haurir do testemunho de Jesus e dos Apóstolos é a importância da oração! A importância e o valor da oração é comparável ao ato de respirar.

         A respiração tem por finalidade eliminar resíduos inaproveitáveis e abastecer nosso organismo com energia nova. A inspiração nos fornece o oxigênio e a expiração serve para expelir o carbono, uma substância que nos seria prejudicial caso não fosse eliminada. A oração preenche a mesma função. É portanto justo defini-la como “respiração da alma”.

         Quem não reza prejudica a sua saúde espiritual por duas razões: por não se abastecer de energia; e porque não se livra de resíduos tóxicos.

         Se quisermos ser bem exatos, teríamos que distinguir a oração em dois tipos ou momentos: a oração energizadora e a oração purificadora. Ela nos energiza na medida em que nos fornece a mais poderosa das energias do Universo, a energia do Amor.

         Haurimos esta energia do contato com a natureza e com nossos semelhantes, através da contemplação e da comunhão. Mas só em parte, pois há uma  fonte de energia tão rica e poderosa quanto toda e qualquer outra. É a nossa consciência, em especial o nosso inconsciente, esta fonte inexaurível. E o meio de chegar até lá, é a meditação.

         Lá, neste Santuário mais íntimo da alma, Jesus está à espera caso tivermos feito do seu Amor objeto de nossa “Opção Fundamental”.

O poder energizador da oração vem acompanhado por outro poder igualmente importante, que é o seu poder purificador. Quem é que não sabe que até o mais belo e sólido edifício espiritual do nosso mundo interior se apoia em grande parte nas areias movediças do sentimento e das emoções? Sobre elas só conseguimos exercer um domínio bastante precário e indireto. Chama-se a este domínio de político porque exige diplomacia e habilidade!

         É quando “oramos como convém” que exercemos a arte de lidar politicamente com o mundo instável e movediço de nossas emoções e sentimentos. É quando os apaziguamos que conseguimos tirar proveito de sua turbulência.

         Jesus, quando atormentado no Horto das Oliveiras pela antevisão dos sofrimentos que o aguardavam, “retirou-se para orar”. Não foi comprar coragem numa taberna, nem fugiu do medo, mas enfrentou-o.

Texo do manuscrito “SANTIDADE” de Pe. José Marcos Bach, SJ.





SOMOS ECOLÓGICOS?

             O desastre ecológico que se avizinha a passos rápidos não é uma fatalidade inexorável, nem faz parte de um destino cego. Não é um castigo de Deus, mas é o fruto dos inúmeros erros. Não passaremos de hipócritas enquanto não admitirmos que a destruição dos ecossistemas do nosso planeta é fruto de uma mentalidade mórbida, irracional e imoral, encarnada tanto nas estruturas do capitalismo liberal quanto no capitalismo de Estado marxista. Quem olha para a natureza como se não fosse mais que fonte de matéria prima, passível de ser transformada em fonte de lucro, é culpado pelo que a humanidade está fazendo com o seu planeta Terra. Todos somos culpados: uns por ação, outros por omissão e condescendência.

        A crise ecologia está exigindo da humanidade muito mais do que uma solução política. O que está sendo posto em jogo com a deterioração das condições sanitárias do planeta não é apenas o direito dos indivíduos a uma vida confortável. O que está em jogo é o futuro ético e religioso da humanidade. É triste constatá-lo, mas é um fato: a crise ecológica não está sendo avaliada em toda a sua extensão e amplitude! A luta pela sobrevivência da biosfera de nosso planeta ainda não ultrapassou a fase do diletantismo. A Ciência, o Estado e a Religião ainda não atinaram com a gravidade da situação. Preferem, por ora, “deixar como está para ver como fica”!  






BELEZA, PERFUME, ALEGRIA, VIDA!

“Fica sempre um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas,
nas mãos que sabem ser generosas”!

Como não poderia ser diferente, ao recordarmos Pe. Marcos Bach,SJ de saudosa memória, fazendo este Blog para partilhar algumas reflexões dele, bem como valiosos escritos que nos deixou, usar como símbolo rosas que ele amava. Soube cultivá-las, preparando sempre com muito cuidado o terreno onde as plantava com muita dedicação e amor. Ele mesmo fazia todo processo, desde colher as estacas, prepará-las e fincando-as na terra. Após terem brotado e crescido as folhas, esperava a época e o tempo favorável ao enxerto. Escolhia as qualidades e as cores. Fazia o enxerto e transplantava depois as roseiras quando as queria em outros lugares e espaços. Sempre embelezava a frente da casa onde morava com suas lindas e perfumadas rosas.

Já no tempo de Professor Universitário enxugava algum canto de pântano e fazia dele um belo canteiro de rosas. Colhia uma ou outra rosa para presentear pessoas queridas mais chegadas. Assim era Pe. Marcos Bach. Unia prazer, alegria, amor, partilha e higiene mental.

Como fazem as abelhas, buscando o mel nas flores e retribuindo com o pólen para fecundá-las, temos, como seres humanos, um belo e lindo arsenal interior para partilhar: é a alegria e o perfume que nos vão na alma! É só cultivá-los! Uma rosa com um sorriso pode fazer a diferença!

Um comentário:

  1. Paz e bem
    Não conhecia esse autor. Por acaso fazendo uma pesquisa o encontrei em um artigo da revista Vida Pastoral. Parabéns pelo Blog e obrigada por nos presentear com essas pérolas. Quanta sabedoria, que cristianismo lindo! Que ele interceda or nós. Márcia Helena

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