terça-feira, 7 de outubro de 2014

REVISÃO DO CONCEITO FAMÍLIA

Nenhuma instituição social, seja ela política, cultural ou religiosa se dispõe a admitir sua parcela de culpa numa determinada situação. Seus porta-vozes não admitem que a situação da família seja tão desastrosa quanto dão a entender as estatísticas. Basta verificar os números para chegar à conclusão de que é preciso pensar em fazer mudanças, mudanças profundas, capazes de abalar a estrutura e até a própria base cultural do atual conceito de família.

À crença ingênua de que estas mudanças vão ocorrer à revelia do homem e de sua disposição de operá-las, é preciso opor, não apenas outra crença, mas uma atitude de como a que Jesus exigia de seus discípulos. O homem crente transfere à competência de terceiros o que na verdade é de sua responsabilidade pessoal.

Atribuindo à autoridade dos pais sobre os filhos uma origem divina, esta passa a ser exercida em nome de Deus e sob a jurisdição da Igreja, representada no caso por sua classe dirigente. A autoridade dos pais é de inspiração divina, não resta dúvida, mas seu exercício não pode ser terceirizado, isto é, não passa pela jurisdição e intermediação da Igreja ou de outra entidade religiosa qualquer.

O casamento é muito mais do que um simples contrato social. A simples definição do quadro jurídico-moral através da distribuição de direitos e deveres passa ao largo do essencial.
A família que vamos precisar, ainda não existe. Por ora não passa de ideal utópico. Os modelos existentes, o patriarcal, o doméstico e o atômico contêm elementos aproveitáveis, mas cada um deles por si é incapaz de prestar a uma humanidade mais evoluída a contribuição social que só ela é capaz de oferecer. Seria rematada estupidez pensar em substituir a família por outra instituição qualquer: política, ideológica ou religiosa.

É preciso ter a ousadia de pensar em algo de novo, em algo que pela primeira vez está procurando um lugar na história dos homens.

Utópica é toda realidade que ainda não encontrou um lugar (topos, em grego) na vida social humana, mas que o está procurando.

A família humana não é uma invenção da natureza, mas é obra do espírito humano. O tempo em que a luta pela vida se resumia na luta pela sobrevivência física e biológica, está cedendo lugar a outro tempo, o tempo da luta pela sobrevivência espiritual. É mais que evidente que o tipo de organização social centrado na luta pela sobrevivência física só pode dar origem a um modelo de organização familiar do mesmo tipo.

Hoje nos defrontamos com uma realidade em que a sobrevivência física é mais precária do que nunca. As armas nucleares nos deram de presente a possibilidade de nos autoextinguir como espécie biológica. Sem falar nas armas químicas e biológicas. A água que bebemos vem de longe e a comida que colocamos em nossas mesas não é fruto do nosso trabalho. Não foi produzida por nós, nem sequer por alguém que nos ama.

O ambiente urbano não é o mesmo que o ambiente rural. A maioria dos que vivem nas cidades é composta de pessoas que nasceram no campo e ainda trazem a roça em suas almas. Existe em suas consciências uma dicotomia, um fosso que as impede de encontrar a unidade interior. A necessidade as prende à cidade, mas a saudade as mantém presas ao mundo rural. Sentem-se deslocadas, divididas e incapazes de morar plenamente em si mesmas. “Quem quer ser normal deve saber morar, sem restrições, em si mesmo”, afirma Carl Gustav Jung.

Não são apenas os indivíduos que podem tornar-se esquizofrênicos, mas é possível que o mal atinja uma família inteira. É óbvio que não se pode esperar de uma família urbana o que se pode exigir de uma família campesina.

Muita capacidade de discernimento é necessária para impedir que se jogue fora o que não pode faltar numa visão verdadeiramente inteligente do papel da família numa sociedade para a qual não apenas o passado histórico, mas até o planeta Terra se tornou pequeno demais. Além deste, de jogar fora o que deve ser conservado, existe o perigo de conservar o que deve ser abandonado.

Discernir significa separar, julgar. E tem como objetivo possibilitar uma escolha mais inteligente e racional. É no terreno dos valores que se pretende operar uma triagem.

Num ambiente social conservador o antigo vale sistematicamente mais do que o novo. O moderno é visto com suspeita. Uma verdadeira teia de preconceitos e uma vigorosa onda de desconfiança cercam, ainda hoje, tudo o que integra os valores do mundo moderno. Os preconceitos mais robustos e as suspeitas mais arraigadas contra o moderno provêm dos setores religiosos. Um dos valores mais destacados do mundo cultural moderno é o processo de secularização ou laicização.

Tem por objetivo restabelecer a autonomia do profano em relação ao sagrado. Atinge os setores religiosos institucionalizados na medida em que estes procuram proteger seus interesses, abrigando-os sob o manto do sagrado.

A tutela religiosa de que a família é alvo, é amparada pela tese de que ela é uma instituição de origem divina, cabendo, por isso, aos representantes de Deus a missão de zelar por ela. Este zelo envolve mais do que simples cuidado, pois envolve também poder e autoridade.

Qual a religião em que a família não é considerada domínio religioso? Sujeita, portanto, à autoridade de superiores autopromovidos à condição de tutores da família.

Nada há no homem que seja mais livre e soberano que a sua consciência. Ninguém tem mais respeito por esta liberdade que o próprio Deus. A extensão deste respeito chega a ser escandalosa, pois inclui a existência de um inferno e de ambientes sociais em que é permitido rejeitar Deus.

O amor de Deus não é um amor que não é permitido renegar e desprezar. O amor é sempre muito maior do que a capacidade humana de compreendê-lo e de lhe corresponder. Jesus sabe disso melhor do que ninguém. Nossos amedrontados pastores ainda estão por descobrir a diferença que os separa da Pessoa do Bom Pastor.

Pastor inteligente e digno da confiança de suas ovelhas é aquele que sabe consultar o instinto de suas ovelhas.

Autonomia não é o mesmo que independência. O homem é um ser social não porque necessita da companhia de semelhantes seus, ou porque dependa deles. Aquele que ama não renuncia à sua liberdade, mas a funde com a de outro. Só o amor consegue esta façanha.

Fusão é mais do que simples soma. É síntese. A soma de um (1) mais um (1) é dois (2). Mas o resultado da multiplicação de um por um é um.

Aplicando esta técnica ao amor pode-se dizer que o amor não soma, nem divide, mas multiplica. Não destrói a unidade existente, mas a eleva a um plano superior, mais rico em potencialidades. A condição de ser social não torna o homem um necessitado, um indigente, um indivíduo incompleto e que a única resposta que lhe resta é a atitude de submissão e o sacrifício de parcela da sua liberdade em proveito do bem comum.

Nem dependência nem independência, mas interdependência, é este o laço que uma relação de amor costuma gerar.

Na medida em que uma dependência passa a ser recíproca, ela deixa de ser humilhante e injusta e passa a ser libertadora.
Simone de Beauvoir, em sua autobiografia, atribui a sua conversão ao ateísmo pela ideia de que Deus não precisava dela, ao passo que ela dependia em tudo de Deus. A verdade é, no entanto, outra: “Deus, cansado de se ver servido por escravos amedrontados e pusilânimes, resolveu dar início a um novo capítulo da história humana em que o homem é elevado à condição de sócio de Deus. O próprio Deus, assumindo o homem como sócio, tornou-se, Ele mesmo, ‘Sócio’ do homem”.

Se é verdade que o resultado desta nova sociedade é lastimável sob tantos aspectos, também é verdade que este é o único modo de tornar o homem sujeito da sua história e não mero espectador.

Padre Marcos Bach

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