quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O FAZ-DE-CONTA VERSUS A REALIDADE

Vivemos num mundo necessitado de reformas. A nossa realidade sociocultural, religiosa, econômica e política não passa de um escoadouro imenso de mentiras. O faz-de-conta, a aparência, tomou por completo o lugar da realidade.

Transferimos para a área do pensamento pragmático o núcleo de toda e qualquer verdade objetiva. A técnica orienta a pesquisa científica. O Vaticano tornou-se centro e o critério último de verdade para os católicos. O que é bom para os Estados Unidos é bom para o resto do mundo. O que é bom para a União Soviética é bom para um terço da humanidade. A realidade do homem já não é mais critério moral, político ou religioso.

A verdade passou a ser uma ferramenta. Há muito que ela já não está mais a serviço da liberdade. A coisa que os autocratas religiosos, os ditadores e os banqueiros internacionais temem mais que o diabo é a verdade posta a serviço da liberdade. “Veritas liberabit vos”.

A verdade que liberta é substituída com o recurso de todos os meios de comunicação de massa pela liberdade de consumir sem freios nem restrições.

Não se eleva o salário do operário a não ser com a intenção de aumentar sua capacidade de consumo. A isto até a Igreja dá o nome de justiça social. Não é preciso penetrar mais a fundo na realidade social e cultural, política e religiosa de nossos dias para ter uma ideia da quantidade de mentiras que se escondem no bojo deste “Cavalo de Troia” chamado “Verdade”.
        
A mentira começa a tomar corpo e forma quando se passa a identificar a verdade com um corpo de doutrinas ou com um sistema ideológico. Toda formulação doutrinária é um leito de Procusto: nela só cabe uma parte da verdade total.

A formulação teórica do conhecimento é necessária para a ação. O que mais importa, porém, é a ação, pois é nela que a verdade se torna vida. Toda teoria é relativa em vista da ação. A fonte reveladora de toda verdade é sempre alguma espécie de ação.

A fonte de toda a doutrina cristã é a vida e são as obras de Cristo. Sem o testemunho de sua vida e sem a eloquência de suas obras a palavra de Cristo seria hoje tão morta quanto as palavras de Napoleão. A fé cristã se dirige de forma direta e imediata à Pessoa de Cristo e só de modo mediato à sua palavra. E esta não é discurso, sermão, doutrina ou fabulação teórica.

De um mensageiro do Amor Divino se espera mais do que sermões, milagres, pronunciamentos, sentenças. Cristo é o Messias, porque veio trazer aos homens uma energia nova, um novo poder. Veio acrescentar às faculdades humanas uma faculdade nova. Veio enriquecer o espaço social com uma dimensão nova.
        
Na Igreja católica, quando seus chefes falam em verdade, sempre se referem em primeiro lugar a um corpo de doutrinas. A salvação dos homens coincide sempre de modo tão hermético com a Sã Doutrina elaborada no Vaticano que Cristo já passou a não ser mais necessário. O lugar dele foi tomado por mestres e inquisidores. Sua palavra cheia de vida cedeu o lugar à Sã Doutrina, tão árida quanto a mente de seus patrocinadores.

Reduzindo o conteúdo da fé cristã a um corpo de doutrinas, os mestres da Igreja tornaram as coisas mais claras e até mais cômodas para o fiel comum. Ao mesmo tempo desviaram a fé do plano subjetivo e pessoal para o plano intelectual. O objeto da fé passou a situar-se fora do contexto subjetivo e pessoal.

Deste modo cavou-se um fosso entre a fé e o seu conteúdo. A preocupação pelos artigos de fé absorveu quase por completo as atenções do Magistério Eclesiástico. A própria fé enquanto atitude subjetiva e existencial não mereceu maiores cuidados.

Promover a vida de fé tornou-se preocupação da iniciativa privada. É neste terreno que deve ocorrer uma inversão de sentido. Padres, bispos e papas têm por missão primeira servir à promoção da fé.

Crer é um modo de se pôr em contato com uma fonte de energia vital e espiritual. A verdade e as verdades da fé não são fórmulas abstratas. Também não é o que chamamos simplesmente de realidade.

A verdade que abraçamos pelo ato de fé é sempre uma realidade trabalhada, modificada por um pensamento e uma intenção. Em suma, a realidade elaborada em vista de um propósito.

Crer na vida significa crer no sentido da vida. Crer na ciência e na técnica significa ter certeza de que ambas estão a serviço do progresso do homem. Crer no poder e na autoridade é estar convicto de que um e outra são indispensáveis para o desenvolvimento da humanidade. Crer no amor e na liberdade é estar certo de que não pode haver crescimento humano onde ambos não estiverem presentes.

Crer em Deus significa estar certo de que sem Ele a existência humana deixa de ter qualquer sentido transcendente.

Não crer em Deus é o mesmo que declarar o homem prisioneiro do tempo cósmico. Um homem preso aos ciclos de eventos que sempre voltam a se repetir: é este o homem sem Deus. Mas este não é o homem que mora no íntimo de cada um de nós.

Crer em Jesus Cristo significa viver na certeza de que o tempo cíclico foi substituído por um novo tempo humano, o tempo escatológico. A verdade é, portanto, sempre o aspecto promissor da realidade. Ela é, pois, um atributo da realidade. Algo que este tem a mais. É, em suma, a realidade física e histórica enquanto impregnada e fecundada por uma intenção e por um propósito.

Padre Marcos Bach

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