quarta-feira, 27 de agosto de 2014

AUTOCONSCIÊNCIA PURA  

Reduzido ao essencial, um ser humano pode ser descrito como autoconsciência pura. Este fenômeno é experimentado raramente. Comigo aconteceu anos atrás quando aguardava num hospital, após uma cirurgia, a hora de poder voltar ao quarto. Durante a cirurgia não tive consciência de nada nem de mim, nem do que acontecia comigo ou fora de mim. Blackout, apagão total: é assim que posso definir o estado de anamnese em que me encontrava. Nem sequer a consciência de não existir me tinha restado. Não só não sabia quem era, mas sequer sabia que era ou não era alguém.

Durante o período pós-operatório de recuperação da consciência continuei a não ter consciência de nada, com uma exceção: eu sabia que existia. Que me encontrava no centro de um “halo opaco de luz”. Era uma luminosidade crepuscular. À pouca distância de mim este crepúsculo era absorvido por uma espessa parede de trevas impenetráveis. Eu era apenas autoconsciência, isto é, consciência de mim mesmo. Nem medo, nem preocupação me impediram de aguardar tranquilamente o retorno à vida normal. Tanto os sentidos como a razão tinham entrado em licença para que eu pudesse entrar mais plenamente na posse de mim mesmo. Naquela hora eu só pertencia a mim e a mais ninguém. Eu só era eu e nada mais do que o único ser do mundo com quem tinha que aprender a conviver com dignidade e em pé de igualdade.

Mais tarde descobri que esta experiência, além de ser fundamental, pode ser reproduzida em gabinete. Já os antigos sábios da Índia recomendavam a prática da meditação como meio de ajudar uma pessoa a se descobrir e a se encontrar consigo mesma.
           
Onde um budista preconiza os méritos da meditação, São João da Cruz passa a indicar outro caminho, o da contemplação. Faz questão de eliminar do seu conceito de contemplação qualquer interferência das faculdades inferiores de natureza humana, como os sentidos e a razão. De acordo com o seu modo de ver, a relação da alma com seu Bem-Amado não é o fruto de um cálculo bem feito e não resulta de um modo equilibrado de distribuir tarefas. Segundo ele, o amor não é o resultado de um pacote de contas bem feitas.
           
O amor eleva a alma e a coloca acima de tudo e fora do alcance de outra tentação que não seja a de se perder cada vez mais neste oceano de Amor sem limites que é o Amor Divino. “E assim a ditosa alma que tem a grande ventura de ser tocada por este Amor, tudo saboreia, tudo experimenta e faz tudo quanto quer, com grande prosperidade, sem que alguém possa prevalecer diante dela nem coisa alguma venha a atingi-la, porque a essa alma se aplicam as palavras do apóstolo: “O espiritual julga todas as coisas e por ninguém é julgado” (I Cor 2,15) -  (São João da Cruz – Obras Completas p. 853).
           
É extremamente perigoso tratar como doença um fenômeno como o da “Emergência Espiritual”. Não são doentes os que entram em crise de “Emergência Espiritual”. São, pelo contrário, os que estão por descobrir uma nova dimensão da saúde total.
           
A fé, como a entende João da Cruz, não é nem distinta da noite em que opera, mas ela é esta “Noite Escura”. É assim que se deve entender o pensamento de João da Cruz. A fé nos oferece um conhecimento que em tudo se assemelha ao que nos proporciona uma noite escura. A escuridão de uma noite nunca é total. Animais noturnos se aproveitam deste fato para cuidar da sua sobrevivência.

A fé não mergulha a pessoa em trevas, mas oculta e esconde parte da verdade, dando assim à inteligência do homem tempo de avaliar e integrar em sua vida concreta a parcela da verdade revelada acessível. A fé está a serviço da ação mais do que do conhecimento teórico. Ela enriquece a vida toda de uma pessoa e não apenas a sua inteligência. De um cientista não costumamos exigir que seja um homem de fé. De um político, sim, exigimos que creia no que diz e faz. Dele também exigimos que deposite em seus eleitores e auxiliares a mesma fé que deposita em si.
           
A fé nasce não da ignorância, mas resulta de uma forma superior, mais arguta de compreensão da realidade. Representa, portanto, mais que o fruto de raciocínios exaustivos, conduzidos com rigor. O ato de fé é um ato de inteligência, tão digno de respeito e de confiança quanto o raciocínio lógico mais bem feito.

Padre Marcos Bach

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