quarta-feira, 20 de agosto de 2014

LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA
Epikéia é uma palavra que não ocorre no texto da encíclica papal Veritatis Splendor. O conceito como tal não é rejeitado, mas é tratado de forma implícita e com grande reserva. Um grupo de moralistas alemães publicou um livro onde põem a nu o medo que os homens do Vaticano têm da liberdade de consciência do Povo de Deus. Nos documentos oficiais do Vaticano o povo é tratado com suspeita, como se no campo moral não houvesse condições de tomar decisões sem o apoio maternal da Igreja de Roma. Até mesmo teólogos moralistas de notória competência e comprovada fidelidade à Igreja foram contemplados por Roma com um claro “puxão de orelhas”.
O Magistério Romano teme a ignorância do povo católico muito menos do que a possibilidade de perder a autoridade sobre a consciência deste povo. As massas são volúveis e podem trocar de partido a qualquer hora. Todo burocrata tem medo de tudo que possa baralhar os seus esquemas consagrados. Para ele nada mais sagrado do que a tradição. Nenhum sistema autoritário admite que alguém possa pensar em depositar menos confiança na palavra do grande guia e condutor do povo do que em sua própria consciência. É próprio de sistemas totalitários estabelecer normas rígidas tão claras e precisas que não sobra espaço para a exceção.
Desde os tempos de Aristóteles os estudiosos da Ética se acostumaram a opor ao rigor da lei o princípio da Epikéia. Pode-se definir a Epikéia como inclinação a tomar sempre o partido da liberdade e da caridade toda vez que as circunstâncias o exigirem.
A justiça, a caridade e o respeito à liberdade de consciência não permitem que alguém tome sempre o partido da lei. Toda lei é relativa a uma situação e a um determinado conjunto de valores. Por isso não é lícito cumpri-la de modo mecânico e cego. Não é função do legislador detalhar estas circunstâncias. É tarefa do súdito discerni-las. Cabe a ele definir em última instância se lhe é permitido cumprir a lei ou não. Ser-lhe-á mais fácil optar pela resposta correta se tiver em mente que toda lei possui um espírito e uma letra. Nenhuma lei cai do céu tão perfeita que não necessita de eventuais corretivos.
A lei que proíbe o uso dos métodos artificiais do controle da natalidade não partiu da mente de Deus, nem direta, nem indiretamente. É uma lei humana. Apoia-se em argumentos filosóficos, já que neste campo a Palavra de Deus Revelada é omissa. Ora, em filosofia uma verdade vale o que valem os argumentos em que se apoia. O lado frágil e problemático de toda a doutrina da Igreja sobre planejamento familiar é a ausência de apoio teológico e escriturístico. 
Se os argumentos são discutíveis, a tese que se destinam a sustentar também é discutível. Aí vem a pergunta que raramente aflora nas discussões: pode o papa impor em nome da lei de Deus como obrigação moral uma tese filosófica tão discutível quanto a que sustenta a imoralidade de uso de métodos contraceptivos, arbitrariamente taxados como artificiais, isto é, como antinaturais? E a razão, que lugar lhe resta em tudo o que se refere ao uso dos meios mais apropriados de controle da natalidade?
Uma lei não se pode aplicar ao pé da letra. Por trás de cada lei está a intenção do legislador que é a de proteger ou promover os interesses do bem comum. Depois vêm os termos em que é formulada. Estes podem ter um sentido claro. Mas podem ter também um significado ambíguo. O sentido das palavras pode muito bem mudar com o tempo. Permanece a palavra, mas o seu sentido já não é mais o mesmo.
Por fim, vem a interpretação da lei. Quem pode interpretá-la? É só o legislador ou o representante da autoridade? E o súdito fica apenas com a obrigação de cumpri-la? São só os superiores que têm condições de saber o que é bom para o povo? O interesse pelo bem comum é privilégio reservado às autoridades? Será que se pode tratar o povo como se no meio dele não houvesse ninguém capaz de se governar por si mesmo?
O bom filho não é necessariamente aquele que pede a bênção do pai para tudo. Não devemos cometer o erro de identificar os interesses da Igreja com os de um determinado papa. Cada um deles tem o seu modo peculiar de ver o mundo, que não é necessária e obrigatoriamente o único certo. Há papas que se inclinam mais para um conceito hierático e hierárquico de Igreja. Outros como João XXIII e João Paulo I preferiram a imagem da Igreja Povo de Deus. Este último conceito, consagrado pelo Concílio Vaticano II, desloca o acento do vértice para a base. Amplia-o dando-lhe uma extensão que inclua todos os seus membros. O batismo, que é o mesmo para todos, gera uma igualdade tão fundamental para a vida da Igreja quanto a diferença entre hierarquia e povo, clérigos e leigos.
Por isso tudo, um casal católico consciente e adulto não se coloca em oposição à Igreja. Procura corrigir e melhorar o que lhe é proposto ou imposto pelos seus pastores. Se nossos leigos católicos tivessem a consciência de que também são Igreja, haveria espaço  e condições para um diálogo muito mais adulto e promissor do que a atitude resignada e servil que a maioria deles adota.
O que caracteriza o conceito aristotélico de Epikéia é a preocupação pela justiça. A aplicação de uma lei não redunda necessariamente em ato de justiça. Mesmo a mais justa das leis pode tornar-se fonte e causa de injustiça. Basta exagerar-lhe o rigor e a severidade. “Supremum jus, suprema injustitia”! Assim reza um dos axiomas fundamentais do Direito Romano. Tudo indica que, ao condenar todos os métodos artificiais sem exceção, o Magistério da Igreja católica abriu as portas a muita injustiça. Injustiça social e moral. 

Padre Marcos Bach

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