sexta-feira, 26 de setembro de 2014

JUSTIÇA CONSCIENTE

Entre bandidos o que vale é a força, a astúcia e a boa pontaria. O gatilho rápido é a marca registrada do bom bandido. Se queremos cantar vitórias dignas de um ser inteligente como o ser humano, temos que ir à procura de um modo mais evoluído de organizar nossos relacionamentos sociais.

Os demais membros da biosfera parece que ainda não o descobriram, mas o homem já descobriu o nível de organização social, que é o jurídico. Um bando de babuínos não se preocupa com este detalhe, mas um corpo social humano deixa de ser humano quando nele não existe a preocupação pela justiça. Para ser humana, uma organização social tem que ser justa.
           
Nela a distribuição de direitos e deveres deve ser equitativa. Quem tem mais direitos, tem também mais obrigações; e quem tem mais obrigações, tem também mais direitos. A esta forma de distribuir as responsabilidades sociais damos o nome de justiça comutativa ou justiça distributiva.
           
Pode-se considerar justa uma organização social em que o exercício do poder e a autoridade de impor a sua vontade aos demais é definida de tal maneira que todos tenham acesso a ela. Numa organização social em que isto não acontece, não pode ser considerada justa no sentido jurídico do termo. Pode ser eficiente, mas é estruturalmente injusta.  

Onde o exercício do poder é privilégio reservado a poucos, onde a transmissão deste poder é feita a portas fechadas e sem a participação da comunidade, o que nos é dado ver é um tipo de organização social que só consegue sobreviver em ambientes sociais em que o nível de consciência dos indivíduos é o mesmo que assegura a um bando de babuínos a possibilidade de sobreviver.
           
Existe uma diferença essencial entre a liberdade de viver a vida e a luta pela sobrevivência. Quando um chimpanzé bonobo se deita na grama e passa a contemplar o firmamento, não estamos presenciando um espetáculo relacionado com o passado, mas nos encontramos defrontados com uma atitude tipicamente humana ou pré-humana, que é o “dolce far niente”. Nos momentos de lazer, dedicados ao “otium cum dignitate” dos romanos, tomamos consciência do que somos sem tomar em consideração o que fazemos ou deixamos de fazer.

A ordem moral representa um patamar evolutivo superior ao meramente jurídico. Para que se tenha um organismo social justo, basta “que se dê a cada um de acordo com suas necessidades, exigindo dele, em contrapartida, de acordo com sua capacidade”, como queria Karl Marx. Já a criança se irrita quando não a deixamos fazer o que ela quer e como o quer fazer. É preciso matar, por completo, a sensibilidade moral de uma pessoa se queremos que ela se submeta a um regime social como o que Stalin pretendeu impor ao povo russo.
           
A ordem jurídica, essa sim, pode ser imposta, mas a ordem moral não. Ou é aceita livre e espontaneamente, ou, então, perde sua identidade e baixa de nível, indo fazer companhia aos atos determinados pelo império da lei. A criança tem razão: “o brinquedo perde a graça na medida em que deixa de ser espontâneo”.
           
Do ato moral se pode afirmar o mesmo: “Ele só é bom se for o fruto de uma decisão livre e espontânea”. Se formos bons apenas porque temos a obrigação de sê-lo, nossa justiça ou nossa virtude merecerá o mesmo comentário com que Jesus se pronunciou em relação aos fariseus: “Se vossa justiça não for maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20).
           
É um erro crasso reduzir a moral a um código de leis, e reduzir o ato moral às dimensões de um simples ato de submissão. Um cristão adulto não concebe mais o erro de confundir maioridade ética e ordem moral com submissão a normas e leis. “Depois que tiverdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei: somos servos inúteis” (Lc 17,10). Ao cristão não basta cumprir ordens, fazer tudo o que é prescrito. Isto os fariseus sabiam fazer muito bem, e os de hoje são especialistas nesta arte de “tapar o sol com peneira”.

Por falta de conceitos claros a quase totalidade de nossos cristãos se dá por satisfeita quando atinge um nível moral geralmente mais modesto do que ousa admitir. Quando a sua consciência não os acusa de infração séria, já se dão por bons cristãos. Acham um exagero a afirmação do Pe. Häring quando diz que “hoje em dia, os piores pecados e os que mais se cometem, são pecados de omissão”.
           
O bem que se podia fazer, mas que não se fez, também pesa num balanço moral honesto e sincero. Para estar em dia com as exigências da fé em Cristo não basta estar em dia com os Mandamentos de Deus. Bons cumpridores da lei, isto os fariseus também eram. Mas seu comportamento foi criticado com veemência por Jesus porque era hipócrita. “Sois como sepulcros caiados, belos por fora, mas repletos de podridão por dentro” (Mt 23,27).
           
Seria injusto afirmar que o cristianismo é composto em sua quase totalidade por hipócritas. Que os monsenhores da Cúria romana ou os membros do Santo Sínodo ortodoxo são todos falsários. Mas o que se pode afirmar é que todos eles se encontram bem distantes do ideal cristão. Todos aqueles que se consideram superiores aos outros são hipócritas. No Reino de Deus não há lugar para classes e lá ninguém é maior ou menor que os outros, pois lá todos são irmãos e irmãs.
           
Numa boa Comunidade Cristã não há espaço para superiores e súditos. Numa boa família, o caçula não é apenas o irmão menor, mas é também o mais querido de todos. Não há, numa Comunidade de Fé em Cristo, lugar para a presença de quem pode mais que os outros.

Padre Marcos Bach

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