quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A MORTE E O ENCONTRO COM A VIDA

Durante milênios a morte foi identificada como momento final da vida de uma pessoa. Cercando-se de luto, chorava-se a morte de uma pessoa. A cor do luto era o preto e o sentimento mais adequado ao estado de espírito dos sobreviventes era a tristeza. Rir num enterro ou num velório era tão inadmissível e impróprio quanto blasfemar o nome de Deus.

A morte exigia e impunha respeito. Um respeito que a vida parecia não impor. A morte e tudo o que tinha alguma ligação com ela era cercada por uma aura de sacralidade. Faltou, porém, estender esta aura de respeito sagrado à vida e das suas manifestações mais significativas.
        
Num campo de batalha dá para perceber a distância que separa o respeito pela vida do respeito pela morte. Nem sequer é preciso ir a um campo de batalha, basta sentar-se ao volante de um carro e pôr-se a dirigi-lo em meio ao trânsito infernal de uma rodovia.
        
Temos a cada passo que damos oportunidade de constatar a trágica distância que separa nosso discurso sobre a morte do discurso hipócrita com que enaltecemos a dignidade infinitamente maior da vida.

A relação da morte com a vida, geralmente definida como luta, a palavra grega para caracterizar esta luta é a palavra agonia. Em condições normais é agonizando que as pessoas se despedem da vida. Dois são os equívocos que poluem esta concepção. Primeiro erro: a morte não põe fim à vida de uma pessoa. Segundo erro: a agonia não representa o estágio derradeiro do processo de morte.
        
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, após um desmaio descreveu a experiência com o seguinte comentário: “Como deve ser agradável morrer”!

O fariseu conseguiu bulir com a paciência de Jesus porque teimava em atribuir a si e a suas boas obras o mérito exclusivo da sua justiça. É evidente que não podiam concordar com Jesus, quando o Divino Mestre se referiu a eles dizendo: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20).
        
A morte é um acontecimento em que a pessoa não dispõe mais de si mesma. A morte não se experimenta nem se vive. A morte se sofre.
        
Teilhard de Chardin faz uma distinção entre o que ele chama de passividades de diminuição e passividades de crescimento. Os que viram Jesus expirar na cruz provavelmente saíram do Gólgota convencidos de que tinham assistido ao fim de um belo sonho. Devem ter sido bem poucos os discípulos de Jesus que ainda depositavam alguma fé em suas promessas.

Para o apóstolo Paulo Cristo seria o maior impostor que a história conheceu “se não tivesse ressuscitado dos mortos, pois toda a nossa fé seria vã no caso de ele não ter ressuscitado” (I Cor 15,17). Tão vã como a nossa fé seria a ressurreição de Cristo, caso o universo todo não tivesse ressuscitado com ele. Foi Santo Ambrósio que carimbou a expressão segundo a qual o universo inteiro deixou de ser o mesmo depois que Cristo ressuscitou. “In eo surrexit mundus”, diz Ambrósio.
        
A dimensão cósmica da ressurreição de Jesus, envolvendo por igual místicos e cientistas, poetas e historiadores, antropólogos e teólogos é tão fundamental, que qualquer concepção antropológica bairrista deve ser descartada a limine, como defeituosa e viciada. Não é somente o teólogo que precisa tratar o cientista com mais respeito. É também o cientista que precisa de mais humildade. O “Cogito, ergo sum” de René Descartes, só expressa a metade de uma verdade maior. O místico se põe em combate com esta verdade maior através de oração. Pois é além das fronteiras determinadas pelo pensamento que o Logos Divino se encontra à espera da consciência do homem.

A palavra mortificação não encontrou espaço no vocabulário científico. Só encontrou espaço no vocabulário teológico. A morte faz parte da vida. Ela não ocorre só uma única vez, como acontece com o nascimento. Ela, a morte, acompanha a vida desde que esta teve início.
Morte e vida não são antônimas, são sinônimos. A morte sempre foi interpretada e vista como inimiga da vida e como fim de vida. Mas quem familiarizou seu pensamento com o de Cristo e do apóstolo Paulo, concebe a morte como um avanço na vida. A morte não põe fim a nada, exceto a um cativeiro, que com o passar do tempo, ia se tornando cada vez mais insuportável.
        
A moderna tanatologia científica ainda patina em terreno escorregadio porque continua vendo a morte como a viam Sócrates e Platão, Sêneca e Cícero.

O falecido cientista americano David Bohm acusou o mundo científico de estar sendo vítima de uma colossal autofraude, achando que o mundo real coincide com o mundo formal do cientista. Que não existe mais nada além do horizonte determinado pela mente do observador científico. É do mesmo autor a tese de que além da realidade formal existe outra realidade que ainda não teve tempo nem sequer foi solicitada a se manifestar.

A crença de que a nossa razão e nossos sentidos nos colocam em condições de nos manifestar o universo por inteiro deve ser descartada como infantil. A ciência nunca nos vai revelar tudo o que ainda não sabemos. Até hoje o pensamento científico ainda não encontrou um lugar para Deus. A fé que nos leva até Deus é tão confiável quanto a razão. Einstein não se envergonhou da sua condição de crente.

O Apocalipse menciona repetidas vezes a existência de uma “segunda morte” (Ap 21,8), dando com esta afirmação a entender que a morte faz parte de um processo que se estende para além do tempo histórico.
        
A egolatria é um vício do qual só poucos conseguem livrar-se completamente antes de morrer. No terreno do desenvolvimento espiritual não há lugar para respostas automáticas. A morte não nos vai levar a um mundo povoado de painéis, cada painel repleto de chaves e teclas, bastando apertar a tecla certa para obter a resposta correta.

O objeto da fé é o mistério. A fé, mesmo a fé em Cristo, não se destina a fornecer explicações. Apenas diz o que é, mas não diz porque é assim. A única verdade com relação à morte é esta: ela não ocorre no termo final da vida, mas representa apenas o início e o momento inaugural de uma nova fase da mesma vida que aparentemente chegou ao fim. Está na hora de pensar seriamente em substituir a concepção terminal da morte por outra mais condizente com a realidade. Esta outra concepção podemos defini-la como inaugural.
        
Se alguém dissesse que a vida das pessoas só começa a se tornar real a partir do momento em que ela morreu, poderíamos concordar com ela, desde que atribua não à morte, mas à ressurreição o destino ulterior da sua vida.

Devemos ao apóstolo Paulo esta preciosidade teológica: “Assim como uma estrela difere das outras, do mesmo modo os corpos ressuscitados diferem uns dos outros” (I Cor 15,15).
        
A destinação inicial dos que morrem é determinada pelo modo como cada pessoa viveu a sua vida. Quem viveu sua vida servindo à corrupção, não deve esperar outra coisa após a morte a não ser um prolongamento da forma como viveu sua vida até então. Quem quer participar da gloriosa ressurreição de Cristo tem que ter vivido como Cristo viveu e ser tão livre como Ele foi.

Nada corrompe tanto o espírito do homem do que o apego aos bens materiais. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mt 19,24). “Coais os mosquitos, mas engolis os elefantes” (Mt 23,24).
        
Ganância e avareza são vícios a que um cristão se encontra tão exposto quanto o banqueiro mais avarento. Ao morrer, cada qual, seja ele quem for, poderá colher apenas o que semeou. Não há indulgência plenária capaz de suprir eventuais falhas de natureza administrativa. De nada adianta ter em vista fins elevados se os meios empregados para alcançá-los não são adequados. Para ser adequado um meio tem que ser, acima de tudo, eficiente.
        
Nada impede tanto a eficiência espiritual de uma pessoa quanto o apego aos bens materiais. Não são os bens em si que dificultam a maratona espiritual de uma pessoa, mas o fato de ter-se identificado com eles.
        
Quando bens materiais são promovidos à condição de objetos de um culto idolátrico, quando a ausência de Deus já não é mais sentida como vício e como doença, as condições sociais de um povo estão atingindo um nível de degradação simplesmente irrecuperável. No campo religioso já atingimos este nível de degradação.

O apocalipse menciona em três passagens a possibilidade de uma “segunda morte” (Ap 21,8). Menciona também a possibilidade de uma “segunda ressurreição” após a “primeira ressurreição” (Ap 20,5). Não conheço teólogo que tenha dedicado alguma atenção a esse aspecto da escatologia cristã. Depois da morte o que aguarda a alma do falecido é um julgamento severo. Primeiro será submetido a um juízo particular. Muito depois, no limiar do fim dos tempos, será submetido com os demais membros do gênero humano a um julgamento coletivo que na bíblia recebeu o nome de juízo final.
        
Pessoas que tiveram morte clínica e passaram pela “Experiência de Quase Morte” narram que tiveram que responder à pergunta feita por um Ser de Luz: “Que Fizeste da Tua Vida?” Responder a esta pergunta fora fácil porque tinham acabado de ver sua vida inteira numa espécie de filme o que lhes permitiu distinguir, sem possibilidade de engano ou erro o que nela fora positivo e o que não o fora. Ninguém mencionou algo que se pudesse definir como julgamento. Parece que na hora final cada qual é convidado a fazer seu próprio julgamento.
        
Ao iniciar sua vida todo ser vivo é incumbido da tarefa de construir-se a si mesmo. Dois biólogos chilenos, Maturana e Varela, deram a esta tarefa o nome de autopoiese. Assim como um poeta usa palavras para construir sua poesia, do mesmo modo cada ser vivo usa células para edificar um novo representante de sua espécie, semelhante a si mesmo. Como, porém, pode um punhado de células embrionárias ter uma ideia do que é preciso inventar para edificar um ser tão complexo, com órgãos tão diversificados, como é todo ser vivo?
Ao enterrar um morto tiramos de circulação tão somente o seu cadáver, nada mais do que o invólucro mortal é entregue à destruição. Tudo o que faz parte de seu Eu Superior o falecido levou consigo. O que acontece depois é tema de especulação, pois são escassas as informações que possuímos.
        
Ainda alguns decênios atrás se podia dizer: “Nada sabemos, pois ninguém voltou para contar”. Mas hoje aumentou significativamente a possibilidade de trazer de volta à vida pessoas que os médicos já tinham declarado mortas. A morte clínica não encerra o processo de morrer. Isto só ocorre quando o cérebro deixa de funcionar. A verdadeira morte é a morte cerebral. E esta geralmente só ocorre após a morte clínica. Deste modo o moribundo tem tempo para fazer uma avaliação da sua vida toda, e caso lhe for aconselhado por misteriosos seres de luz, poderá retornar ao corpo que acabara de abandonar. Este retorno é penoso e sofrido. A morte continua sendo um enigma e seus estágios derradeiros continuam sendo uma incógnita.
        
Viver para os romanos era o mesmo que estar entre os homens, “inter homines esse”. Morrer significava para eles deixar o convívio humano. No entanto, faz parte das verdades básicas da fé cristã a crença na comunhão dos santos. A morte abre espaço para novas e inusitadas formas de convívio e de comunicação.
        
Para que duas pessoas possam se comunicar desembaraçadamente entre si é preciso que possuam em comum o mesmo nível de consciência. “Simile simili gaudet” diziam os romanos, “igual atrai igual”, dizemos nós.

Padre Marcos Bach

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